Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 6 – Arco 5

Capítulo 119: Para o Estágio Final

— É isso!! Agora você pode controlar a liberação de Energia Vital sem problemas!! Meus parabéns, Gaelzinho!!

A Musa da Comédia ergueu o braço destro, em comemoração perante o triunfo do pupilo.

Encarava as próprias mãos, cobertas pelas luvas, estremecidas ao extremo. Ao reconhecer o próprio triunfo, abriu um sorriso confiante.

Apesar de ter sido “somente” o primeiro objetivo do longínquo treinamento, Gael considerava-se vitorioso ao extremo.

Só não contava com o intenso desgaste acumulado, responsável por derrubá-lo ao chão logo em seguida, com braços abertos e fôlego arfante.

Ao contemplar a imobilidade do jovem, a pequena se aproximou e o cutucou com um cajado de madeira do seu tamanho.

Ele despertou do choque; as vistas esbranquiçadas retomavam a coloração natural, arregaladas ao extremo na direção da sorridente.

Ela gargalhou, como sempre, até lágrimas se formarem no canto dos olhos.

Mediante um forte suspiro, o apóstolo forçou-se ao limite só para erguer o tronco e ficar sentado.

Thalia simpatizava com seu estado atual, portanto não pestanejou em lhe oferecer o Néctar dos Deuses.

Já ciente sobre a capacidade daquele líquido em recuperar seu vigor, aceitou a taça oferecida por ela e derramou tudo em uma só golada.

Foi o bastante para que pudesse parar de tremer, voltando a ficar de pé.

Girou os braços, esticou o corpo todo. Ainda sentia algumas dores, essas que só o tempo iria dar jeito.

A Festiva apanhou o recipiente pela haste e o cutucou com a extremidade do bordão no abdômen.

— Como se sente!!?

— Deve ser a primeira vez que me sinto tão cansado...! em toda minha vida! Isso é esplêndido!! — Ainda arquejava um pouco.

— Isso é ótimo!! Um sinal de ótimo progresso!! — A musa prosseguiu, sorridente. — Você batalhou por dois meses e meio até colher esses frutos!! Lhe darei de dois a três dias de descanso, para avançarmos ao passo conclusivo de seu treinamento!!

— Dá até começar agora! — O rapaz forçou um sorriso; até os músculos da face doíam, mas ele escondia. — Mas o que seria esse passo conclusivo!?

À pergunta, a tutora direcionou o indicador livre à vertente do rapaz, que aguardou a resposta com grandes expectativas.

Cada vez mais eufórica na feição, ela proclamou:

— Irei lhe ensinar a utilizar a aperfeiçoar sua Arte do Sol!! — Entre a pausa, veio o espanto dele. — E durante este aperfeiçoamento, te ajudarei a dominar uma das autoridades mais importantes desta Arte: a Luz da Cura!!

E, após a primeira impressão, o filho de Apolo foi domado pelo entusiasmo.

Num sinal de comemoração, cerrou os punhos ainda doloridos e os levou até próximos do peito.

Contudo depois de mostrar os dentes, outra dúvida permeou sua cabeça:

— Mas ‘pera, como você poderia me ensinar isso!?

— Pois nós, as Musas, somos as criadoras dos conceitos de todas as Artes que os deusinhos usam!! E fui euzinha quem criou os primeiros fundamentos da Arte do Sol!!

Colocou a palma delicada sobre o peito, exalando um sorriso triunfante.

Diante da piscada singular da musa, Gael soltou um:

— Oooh!

Saber que a mulher à sua frente, sua tutora temporária há mais de dois meses, era aquela que criou e ensinou as bases da Arte dominada por seu pai só o deixava ainda mais animado.

Era anormalmente esplêndido, pensou consigo, juntando os dentes num sorriso destemido.

Estava decidido a dar o melhor de si a fim de conquistar o importante objetivo.

— E, também... — A afônica voz, inabitual à musa, o chamou de volta. — Caso você consiga dominar a Luz da Cura, irei lhe contar um segredinho!

O novo interesse, transmitido pelo sorriso mais comedido da instrutora, que ainda colocava um dedo à frente dos lábios, fez o rapaz assentir com a cabeça no automático.

A curiosidade cresceu até induzi-lo a fazer um questionamento, mas, em antecipação, uma plácida influência invadiu o salão iluminado pelo sol.

Tanto ele quanto a musa sentiram uma súbita atração, envoltos pelo fluxo sereno proveniente de outra das diversas câmaras presentes no Museion.

Dada a interrupção inesperada, a mulher decidiu se adiantar ao corredor principal.

Gael a seguiu e, ao alcançar a passagem exterior, seus olhos perseguiram a origem da influência vital.

A anfitriã adiantou-se à esquerda, duas entradas ao lado de seus aposentos. Essa destacava o símbolo das mãos unidas.

Tomando conhecimento da semelhante que ali residia, a mais bem-disposta das nove não reconheceu a natureza daquela essência.

Por outro lado, o apóstolo em sua companhia projetou um novo riso de euforia, pois reconhecia traços dessa fluidez.

A reação trouxe o olhar periférico de Thalia, ainda desentendida quanto as circunstâncias inesperadas.

Um tanto boquiaberta em um misto de curiosidade e espanto, cogitou levar a mão livre à maçaneta redonda...

O mesmo semblante dominava a jovem de cabelo ruivo-alaranjado no interior do cômodo, incapaz de esconder a perplexidade.

Ao lado dela, a Musa da Oração levantava as sobrancelhas com leveza, o bastante a fim de transmitir o fascínio diante da bonita cena.

Ambas eram iluminadas por uma coloração cerúlea, responsável por preencher mais de metade do ambiente.

A origem estava ao redor do inerte filho de Poseidon, uma fina camada de energia que fluía da cabeça aos pés.

O cabelo prateado, de ondas levantadas pela tiara, parecia flutuar, no mesmo ritmo das vestimentas.

A peça inteira de manga curta, que alcançava as coxas presa por um cinto de couro, além da manta azul-claro que envolvia seu pescoço e escorria pelas costas.

Seus olhos, oclusos, não apresentavam oscilações.

O profundo estado de concentração levado a um inédito nível se difundia por boa parte do templo.

Já dentro de sua mente, o cenário das profundezas oceânicas apresentava-se muito mais fundo.

Havia ultrapassado a zona do meio, passava a ser tomado pela ausência de iluminação na zona profunda.

Era a primeira vez que conseguia descer àquela região, guiado pela figura feminina acima de seu corpo, como se fosse empurrado por ela.

Ao experimentar o novo limite no alcance daquele ponto, decidiu que era hora de despertar.

A íris cor de mel voltou a abandonar a escuridão, tanto no plano imaginário quanto na câmara real da musa.

Aos poucos, o fluxo crescente da Energia Vital também cessou.

Helena não encontrava reações cabíveis para o momento.

Conforme a iluminação oceânica desaparecia junto da influência serena, Polímnia levantou os lábios com leveza em aprovação à medida tomada pelo portador.

Retraiu toda a abundância energética que era dispersa de maneira exagerada por seu corpo.

Com tudo devidamente controlado, Silver admitiu o sucesso em alcançar o novo estado de equilíbrio interno.

Embora houvesse muito caminho pela frente, outras camadas de concentração a serem dominadas... já se tornava um passo agradável, propício a favor de obter a aprovação da mediadora.

— Meus parabéns. — Ela acenou ao falar. — Você conquistou, com sucesso, o objetivo principal de seu treinamento.

Mesmo ao ouvir as palavras da Sacra, nenhum ruído foi emanado em retorno. Fosse corporal ou vital, sustentava a placidez fora do normal em absoluta quietude.

Essa durou até que exalasse um leve lamento.

Vapor condensado escapou da boca, tamanho o impacto interno espalhado pelos canais vitais.

Com calma, ergueu as palmas abaixo dos olhos.

Estava apto a ter um controle consciente, ainda que fora da zona de introspecção.

Decidiu ir além e trouxe a mão destra à bainha na cintura.

Sacou a lâmina azulada numa velocidade surpreendente.

Os deslocamentos não carregavam algum traço de inquietação.

A totalidade fluía impecável, como ondas marítimas governadas pela mansidão.

A empunhou com firmeza e caminhou até a saída do aposento. Ao mover a maçaneta por dentro, trouxe a estrutura metálica de forma a revelar a passagem exterior.

No entanto ao invés de encontrar somente a parca luz dos lustres nas paredes...

— Esplêndido!! Imaginei que seria ele!!

O filho de Apolo ergueu o braço destro, seus dentes à mostra preenchiam o eufórico sorriso.

Além dele, fitou a pequena musa de cabelo de mechas redemoinhas, aparentemente prestes a tocar no puxador da porta pelo lado de fora.

Sem esboçar quaisquer reações através do semblante circunspecto, logo os envolveu com a incômoda influência, recheada por um ar gélido.

A singela encarada despertou uma postura defensiva impensada sobre Gael, como se um fator sublime o trouxesse uma ameaça intensa.

Em questionamento pessoal, encarou os próprios punhos e os posicionou em guarda.

A surpresa maior veio na sequência quando, sem oferecer indícios, o filho de Poseidon atacou por meio de um impulso veloz.

De tão silenciosa e natural, a célere incisão quase rasgou o peito do descendente solar, que evitou o golpe ao reagir no instinto.

Com dois passos para trás, ambos acarretados por um arrepio na espinha que pareceu puxá-lo, reconheceu as verdadeiras intenções do agressor.

— Então você quer lutar, é!!? Esplêndido!!

O sorriso alargou em aceitação ao convite do rapaz fleumático, que desferiu um segundo golpe.

O ar frio se espalhou por boa parte da passagem, mas uma nova camada de ar quente também se proliferou na sequência.

Próxima do conflito repentino, Thalia tremulou com os sequenciais choques térmicos.

— Ei, ei!! Não façam isso aqui!!

Sua tentativa de reprová-los foi em vão.

Gael aproveitou o novo desvencilho para socar o adversário com a destra.

O golpe observado nas minúcias pelo prateado o permitiu esquivar com o corpo inclinado contra o solo.

Projetou o revide por outro corte na ascendente, mas o rival também se livrou ao girar à esquerda.

Pegou impulso na parede ao lado e, após flexionar as pernas, disparou.

Um poderoso direto atingiu a face da lâmina, criando uma explosão de choque que chacoalhou o Museion.

Os fluxos de temperaturas opostas também colidiram, piorando a anomalia desconfortável a ponto de trazer choques térmicos às mulheres atingidas pela brusca variação.

Embora enrubescida na face, a Musa da Comédia foi acometida pelo entusiasmo em acompanhar o confronto.

O desejo de impedi-los se foi, durou menos de um minuto.

Era um choque completo de estilos e essências que não via há tempo.

Polímnia não desviava o foco de seu pupilo.

Mesmo pressionado pelas bruscas ondas do desafeto, não perdia o silencioso equilíbrio.

Seguindo com o embate, os dois se afastaram arrastando os pés no plano.

Levemente encurvados, levantaram as cabeças já na iminência das próximas investidas.

Silver respirou fundo, na busca por aprofundar a concentração.

A feição não apresentava fisionomias emotivas. Os olhos entrefechados e a boca minimamente aberta ofereciam o tom da atual frieza a permear seu âmago.

Toda e qualquer perturbação externa era desprezada.

Capaz de escutar os batimentos cardíacos acelerados e a respiração aquém do adversário, tinha ciência quanto seu atual nível de desgaste.

Proporcionalmente a isso, sua evolução desde o início da estadia na tutela das musas fazia-se perceptível.

A soma dos fatores alimentava sua vontade de derrotá-lo.

Do outro lado, o filho de Apolo também reconhecia o claro progresso de quem enfrentava.

Imaginar quão fortes os demais também deveriam estar lhe despertou um resquício de vigor, capaz de empurrá-lo a reunir bastante energia sobre o punho canhoto.

De modo semelhante, o releixo do atlanti foi preenchido por uma camada de autoridade elementar da água.

Após unirem o máximo possível no intuito de desferirem o ataque derradeiro, avançaram um contra o outro.

Gael movimentou o braço como um gatilho, enquanto Silver puxou a lâmina como uma navalha.

O encontro destrutivo já podia ser enxergado pelos presentes.

— Podem parar, já.

No exato segundo da antecipação ao choque entre as armas, suas energias desapareceram num estalar de dedos... literalmente.

A dupla perdeu o ímpeto responsável por movê-los adiante, sendo derrubados pelo estridente desgaste mais uma vez.

Polímnia, Thalia e Helena, todas espantadas — em suas respectivas reações —, olharam na direção de onde a voz soou.

Ali estavam Calíope e Urânia, que escondia o semblante tímido ao encarar o solo, enquanto mantinha a pequena mão levantada.

Em companhia às duas anfitriãs, Damon encarava o cenário com certo sobressalto.

— M-me desculpem... me desculpem...

A voz da Astrônoma, repleta de vexação, quase não alcançou as incrédulas adiante.

— Não precisa se desculpar, Urânia. — A Eloquente, por sua vez, acariciou a cabeça da caçula. — Se você não bloqueasse a fonte de suas energias, eles destruiriam esse corredor. Ou até pior!

Passado o baque inicial, a Festiva contorceu os lábios com um sorriso travesso, embora contornado em culpa.

E coçou a cabeça no intuito de desconversar:

— O-oiii, Calíopezinha! Eu juuuuro que pretendia pará-los antes de se atacarem! — Desviava a atenção ao dissimular.

— Apenas dêem um descanso a eles! — Calíope seguiu em frente, delegando pouca importância à clara mentira da radiante. — Com todo o cansaço acumulado por dois meses seguidos de treinamento, é de se surpreender que estivessem de pé lutando!

— Nyahaha! E não é que é verdade!?

Ainda proferindo risadas desconcertadas, avançou até o filho de Apolo, que sucumbiu em definitivo à fadiga.

A exemplo dele, o jovem prateado encontrava-se no mesmo estado logo ao lado, sem apresentar respostas enquanto adormecido. Ainda assim não largava a empunhadura dourada da lâmina.

Helena seguiu o exemplo, indo até o local onde o curto confronto foi interrompido.

Deu seu melhor a fim de carregar o companheiro de treinamento, o levando até a câmara da Musa da Oração enquanto o amparava pela cintura.

Antes de entrar, ofereceu uma piscadela alegre ao meio-irmão mais novo, que reagiu levantando as sobrancelhas.

Em paralelo, Polímnia assentiu positivamente, um gesto de desculpas à irmã mais velha.

Ela seguiu em frente, sem qualquer intuito de reclamar com as semelhantes.

— Então, nos vemos mais tarde, hihi!

Em proveito do sorriso desenvolto da esmeraldina, a Festiva ficou mais tranquila.

As pernas tremulavam um pouco, mas mesmo sozinha foi capaz de carregar Gael ao corredor, e de lá para seus aposentos.

Com todos de volta a seus respectivos locais, o caminho estava livre mais uma vez.

Por um gesto dos ombros, a mais velha das musas liderou:

— Vamos continuar.

Damon, quieto do início ao fim na presença do ocorrido, somente aceitou o chamado e prosseguiu no encalço da anfitriã.

Junto deles, ainda remoída pelo que fez aos jovens apóstolos, Urânia os acompanhou.

O trio chegou à entrada da câmara da Musa da Astronomia, local onde o rapaz passara seus últimos dois meses.

O rosto cansado expressava as dificuldades, o cansaço acarretado por tamanho esforço durante tal período.

Sequer conseguia pensar em algum outro assunto senão o objetivo responsável por levá-lo até ali.

A porta se abriu e o ar congelante escapou.

A fina camada enevoada os recebeu pelo primeiro quarto, ao passo que a residente principal avançou na liderança dessa vez.

Os levou até o ambiente exclusivo, um cenário que se assemelhava ao próprio universo.

Ao acessar o recinto, Calíope reagiu satisfeita pela presença antecipada de duas importantes figuras.

— Fico feliz que tenha aceitado o convite, Melpômene!

A proprietária do cabelo carmesim corrupiou-se com a expressão de sempre na face; testa franzida, olhos pesados e lábios contornados negativamente.

Na companhia dela, estava a filha mais velha de Hades.

De mesmo modo, esboçava uma feição nada agradável, encostada numa das paredes com braços cruzados sob os seios.

Os olhos do olimpiano correram pela figura das duas, semelhantes em partes. Perceber isso lhe trouxe arrepios indescritíveis, então só preferiu desviar a atenção.

Foi na vertente da Trágica, pois era o que precisava fazer.

— Nosso jovem já conseguiu cumprir a etapa essencial dos treinamentos, a fortificação e evolução de questões físicas! — Calíope o conduziu, sempre desenvolta. — Estou correta, Urânia!?

— S-sim... — A astrônoma tentou elevar o tom de voz. — Agora ele está pronto para... o procedimento de restauração dos canais vitais... sem correr tantos riscos...

— Mas ainda há riscos — resmungou Melpômene.

— Não seja tão negativa, minha querida irmã! — Abriu os braços, sorridente. — De qualquer maneira, sei que Urânia fará um trabalho primoroso!

— E o que ela vai fazer? — Quem perguntou foi Melinoe.

Pela primeira vez durante os dois meses, ela demonstrava um pouco de interesse no que estava para acontecer.

Isso, inclusive, deixou o filho de Zeus perplexo.

A eloquente executou um gesto positivo com a cabeça.

Sem dizer uma sílaba, transmitiu o sinal à mais nova das musas, que devolveu o aceno e andou dois passos adiante.

Girou o corpo graciosamente, até ficar cara a cara com o rapaz.

— C-como seus canais vitais estão danificados, precisarei de um contato mais... interior — Olhou para ver se ele responderia, mas nada ocorreu. — Irmã Mel... preciso que faça um corte considerável em seu antebraço. Assim então eu vou poder... tentar recuperar a integridade de seus canais vitais...

A filha do Submundo escutou a elucidação em silêncio, a exemplo dos demais presentes.

Depois de dizer tudo que precisava, a Astrônoma fixou-se no rosto do apóstolo, à procura de alguma resposta por parte dele.

Ciente dos procedimentos necessários, ele engoliu em seco.

Desejava pensar, porém não havia outra saída. Tendo tudo prontificado há dois meses a fim de chegar neste cenário, concordou com os termos num único e lento balanço positivo da cabeça.

A partir dali tudo estaria nas mãos das especialistas.

— Com todo esclarecido, portanto — enunciou a Eloquente —, podemos dar início! Quando estiver decidido, meu jovem...

A decisão final era delegada ao debilitado. E não podia ser diferente disso.

Respirou fundo ao passo que fitava a palma canhota. Amarrado em seu pulso, o laço pertencente à Lilith ganhou destaque, lhe trazendo uma dose de acalento sem igual.

Conduzido pelos sentimentos que residiam naquele singelo tecido, fechou o punho e procurou pela coragem necessária a fim de seguir em frente.

Afinal, tinha prometido que assim o faria. Para, no fim, devolvê-lo à garota, tal como os próprios sentimentos, guardados consigo até então.

— Vou fazer isso — declarou com firmeza, no tom de voz e no olhar altivo.

Com a permissão concedida, Melpômene exalou um pesado suspiro antes de levar sua máscara ao rosto.

Os detalhes da feição negativa na peça escurecida se conectavam com perfeição à própria portadora.

Preparada para dar início ao processo descrito pela irmã caçula, contou até três em silêncio.

Os olhos fechados detrás da cobertura de madeira deliberavam uma harmonia poucas vezes vistas por outrem; parecia até outra pessoa.

Guiado pelo meneio rápido do braço destro da líder, Damon diminuiu a distância da carmesim.

Não obstante à aflição sob sua presença, estendeu o braço canhoto.

Ela o tateou, de imediato, com seus dedos frios. O jovem se arrepiou de novo, dessa vez com maior intensidade.

No entanto, tudo mudou em um piscar.

A palma dela envolveu-se na altura do punho dele, com firmeza. A outra sacou uma pequena adaga da cintura.

Por trás das aberturas curvadas para baixo, os olhos afiados fitavam a ansiedade do filho de Zeus.

— Ainda há tempo de desistir. — Mirou a ponta da lâmina na região posterior do antebraço dele. — É o caminho mais fácil.

— É por ser o “mais fácil” que eu não posso desistir desse.

Perante a resposta decidida, a musa adotou a quietude.

— Como quiser...

Acatou à determinação e, sem pestanejar, afundou o releixo brilhante na carne do garoto, que grunhiu de dor.

Juntou os dentes e fechou um dos olhos, em demonstração à tentativa de suportar o incômodo.

Com muito cuidado, a Trágica passeou com a chapa delgada por debaixo do punho até a articulação do cotovelo.

Sangue com pontos dourados, luminosos de Ícor, escorreu pelo rasgo profundo ali criado.

Levou até mais tempo do que se imaginava para finalizar a incisão, algo que só podia ser explicado por uma ávida sensação de deleite por parte de Melpômene.

No fim, ela trouxe a lâmina até próxima ao rosto. Por meio de uma fungada forte, experimentou o aroma agridoce do líquido viscoso aderente à chapa metálica.

Só depois apanhou um pano e limpou o rastro do gume.

Livre da assustadora, Damon tentou controlar a respiração que se perdia aos poucos.

A agonia proliferada pela ferida não se comparava a todo o sofrimento vivenciado até aquele momento.

No entanto, a chegada de Urânia o fez, misteriosamente, relaxar.

Não sabia se por conta das linhas firmes no rosto dela, contrariando a insegurança e timidez de sempre.

Ou se por conta do brilho efêmero nascido de cada íris, para se assimilar, também, ao próprio cosmos...

O gotejar lento do sangue no chão foi o único ruído a se pronunciar em meio à quietude.

— Agora... daremos início...

Em repetição das atitudes planejadas no primeiro encontro, reuniu a frígida energia, à medida que viajava com as pequenas palmas ao encontro da abertura sangrenta.

Coube a Damon somente assentir e fechar as vistas, dando permissão ao destino para que agisse da maneira devida.

Sentia a densa influência emanada pela mulher, responsável por tirar o fôlego de qualquer indivíduo nas proximidades.

Tocou a ferida do rapaz.

Com cuidado, adentrou a carne, de maneira a experimentar o teor do sangue invadir as unhas.

Um choque sublime aferiu a alma dele.

Mas, ao mesmo tempo, a tensão se esvaiu.

“Veremos, agora, meu jovem...”, Calíope franziu o cenho, em desfeita ao sorriso de hábito. “Veremos se podes mesmo ir contra o próprio destino...”

A partir daquele instante, nada mais poderia ser feito.

A partir daquele instante, a musa e o garoto estavam conectados...

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