Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 6 – Arco 5

Capítulo 108: Imperadores Recrutam 4 - "O Marcado"

As chamas poderosas tomavam conta de sua visão.

Apesar da grave ardência por diversas regiões do torso e do rosto, o garoto não conseguia se mover.

O traseiro grudado no solo maltratado e as mãos pregadas logo ao lado estremeciam com vigor.

Através dos globos cinza-azulados, esgazeados, encarava as labaredas responsáveis por lhe tirar tudo em tão pouco tempo.

Os dentes cerrados batiam uns nos outros; a demonstração cabal do respectivo choque.

Não havia mais o que fazer? Seu cérebro mal conseguia formular quaisquer cenários possíveis.

Estava entregue àquela imagem pintada pelo fogo dourado à sua frente, conforme rodeado por ruídos poderosos, que elevavam o momento de completo terror.

— Vá...

Uma voz sofrida surgiu em meio aos escombros rodeados pela combustão calorosa.

Só então o rapaz voltou à lucidez repentina.

As sobras da casa ainda cercavam a região derrubada, onde o soterramento inicial ocorrera.

Por um instante, pôde enxergar o sorriso de uma mulher direcionar-se a sua posição.

Foi o impulso necessário em prol de se levantar e, por fim, tentar fazer algo.

No entanto antes que pudesse alcançar, os pilares sobreviventes ruíram.

Todo o restante da construção veio abaixo, na iminência de esmagarem a mulher que ali residia, com mais alguém em seus braços.

Inapto a fazer mais algo, o garoto parou.

De repente, retornaram as agonias das queimaduras graves, que decerto lhe deixariam marcas por toda a eternidade.

Balbucios incompreensíveis escaparam num primeiro instante.

Conforme encarava o irreversível, os joelhos machucados tornaram a sucumbirem contra o plano horizontal.

Cerrou os punhos sangrentos com pujança.

Um nome escapou dos lábios machucados, indecifrável perante o crepitar intenso das chamas.

Não obstante a isso, pôde escutar em alto e bom tom o que sua boca empurrou com extremas dificuldades:

— Mãe...

À medida que as novas explosões se proliferavam por toda a cidade condenada, ele compreendeu a crueldade em seu estado mais puro.

Suas retinas gravariam muito bem aquele pedaço de tempo, no qual fitou o verdadeiro responsável por trazer-lhe à ruína.

— Eu...

Sobrevivente da tragédia, levantou o rosto até observar a extensão superior.

As estrelas mal podiam ser enxergadas, muito em conta da enorme quantidade de fumaça tóxica a levitar no espaço.

Não deixou que as lágrimas caíssem dos olhos entrefechados.

Aqueles seres tinham arrancado tudo de si, num singelo estalo de dedos.

Essa era a dura realidade a qual passava a ser imposto, na solidão envolta pelo incêndio avassalador.

Quando os olhos de tons frios se abriram, a escuridão rochosa foi observada logo acima da cabeça.

Em seguida, soergueu o torso deitado sobre uma pedra esticada. Levantou também o pano velho que usava como cobertor.

Logo conferiu a enorme marca que cruzava seu torso. Via-se incapaz de remeter ao sonho anterior toda vez que encontrava o símbolo de sua perda.

Aquela queimadura jamais seria removida do corpo.

E era melhor assim, ponderava. Tal era o símbolo responsável por fazê-lo seguir em frente.

Se ainda almejava qualquer coisa naquele mundo, a força motriz continuava gravada ali, em sua carne e pele.

Terminou de se levantar e, conforme caminhava até a saída da pequena gruta, amarrou o liso cabelo acinzentado num coque mediano.

Ainda deixava duas mechas laterais caírem à altura dos ombros, que dançavam suavemente a cada passo seu.

Chegou à ínfima aglomeração luminosa, de onde podia encarar o céu ser dominado por um mosaico azul-escuro e leve alaranjado.

Tinha acordado mais cedo do que estava habituado, ponderou consigo; o amanhecer ainda levaria algum tempo até se concretizar em sua totalidade.

O que se destacava, no entanto, era a bruma escurecida responsável por dominar seu campo de visão.

Parecia que toda a região se encontrava coberta por aquela anomalia, nada característico para uma neblina matinal.

O rapaz já aparentava estar acostumado com isso.

Apesar da dificuldade visual carregada por tamanha densidade, avançou tranquilamente a irromper a camada vaporosa mediante passos curtos.

Conforme se aproximava do meão, podia encontrar alguns resquícios de construções e residências bem antigos, todos inabitados e fadados ao colapso.

Não fazia ideia do que deveria ter causado aquilo, então imaginava algum cenário semelhante ao vivenciado há poucos anos.

Tudo fruto da destruição provocada por eles.

A caminhada durou num breve período, pois, de repente, foi interrompida pelo próprio.

Em completo silêncio, fitou o restante do percurso bloqueado pela névoa.

Não foi precipitado. Susteve a postura desprovido de temores.

Ele sabia o que tinha experimentado, num homogêneo fragmento de segundos.

Os pelos do corpo estavam ouriçados.

Lentamente, sem produzir algum sonido, relaxou o punho canhoto, de modo a forçar a taciturna energia para fora.

Uma ponta afiada de tonalidade alva escapou da conexão do carpo, crescendo em exponencial.

Tornou-se um espinho a alcançar o dobro da extensão daquele membro.

Com os olhos de canto, por cima do ombro, não hesitou em executar o giro veloz.

O braço se ergueu, trazendo consigo o afiado osso em exposição, no intuito de atingir quem estivesse no percurso.

O premeditado ocorreu, mas não na totalidade do desejado.

A colisão se fez valer quando um som tinindo escapou contra a quietude.

Quando se deu conta, tanto o membro superior quanto o restante do torso ficaram presos, imóveis ao relento.

— Isso foi interessante — resmungou a voz contrária, apesar do aspecto risonho. — Isso é seu osso? Que sinistro. Mesmo eu nunca vi nada igual até hoje.

De baixo do capuz negro, os olhos marrons encararam a face circunspecta do marcado, alheios ao sorriso que ia quase de orelha a orelha.

Nem um nem outro, todavia, espantou o jovem desbotado.

Foram as cicatrizes pela face ligeiramente morena, coberta ainda por alguns fios bagunçados do cabelo verde-escuro.

Aquilo o arrepiou de uma forma que nunca imaginaria, ainda mais em consideração ao respectivo fator incomum.

Isso o fez abrir distância num salto de recuo impensado. Os olhos semicerraram na mesma intensidade.

Sua ignorância quanto à atitude o assustou em novos níveis, a ponto de fazê-lo encarar o osso utilizado como arma.

Em contrapartida, o recém-chegado aliviou a tensão depositada no braço que segurava a extremidade das correntes.

Com a pequena adaga virada em prol de bloquear o golpe acarretado pelo anfitrião, usou a outra mão no intuito de retirar o restante da arma escondida na capa escura.

A grande estrela da manhã caiu com peso no solo, direcionando o foco do atacante abaixo.

Franziu o cenho perante a esfera espinhosa, só então tornando a encarar a faceta semicoberta do misterioso.

— Estou muito interessado em você, mas queria resolver a questão sem o uso de força. Senão vão reclamar comigo... seria possível? — Keith chegou a inclinar a cabeça à direita, em clara provocação.

— Não acha que começou com o pé esquerdo, então? — retrucou o acinzentado.

A atitude arrancou um novo sorriso do cicatrizado.

— “Começar com o pé esquerdo”!? O que seria isso? — exprimiu com genuína dubiedade.

— É uma expressão... — O rapaz levantou o braço que já portava o osso afiado, para então fazer o mesmo com o outro. Agora dispunha de duas armas pessoais. — Já que não a conhece, suponho que não fique muito próximo dos mortais.

— Oh, faz sentido! — Riu em desdém. — Então, o que foi? Acha que sou um deles!?

O desbotado se preparou para o embate, mas antes disso foi pego de surpresa por um toque frio em seu quadril esquerdo.

Voltou a esgazear as vistas no instante que as dirigiu à altura específica.

O releixo lilás o tateava na pele de maneira direta, porém não o cortava e tampouco ameaçava fazê-lo.

Estava virando com o fio da lâmina para o solo, fazendo com que somente a lateral da chapa gelada encostasse em seu corpo.

— Irene... peeeede desculpas — sibilou a segunda presença, de timbre afinado, também envolta pelo sobretudo maltrapilho.

Num rompante, o rapaz buscou corrupiar-se na velocidade máxima para atingi-la antes que pudesse fazer algo.

Entretanto isso não ocorreu.

Os ossos afiados chegaram próximos de atingirem o rosto dela, mas pararam a alguns centímetros do complemento.

“O quê!?”, diferente da ocasião anterior, na qual sentiu-se inerte por conta da colisão factual, experimentou uma paralisia invisível o afligir.

Bem adiante, podia enxergar o efêmero cintilar cerúleo que escapava detrás do tecido facial.

Os braços recusavam-se a avançar, à medida que a menina de tranças curtas recuou a arma com cuidado.

Diante da postura relaxada dela, pôde apenas andar alguns passos para trás.

Preocupado com a retaguarda, virou-se de modo a se posicionar com os flancos apontados a cada visitante.

A despeito disso, Keith exalou um fraco lamento, indisposto a proceder com a agressividade que o semblante indicava.

— O que vocês querem? — indagou, muito por não ter ciência sobre como deveria agir contra a dupla.

— O mesmo que você.

Quem replicou, dessa vez, foi um terceiro.

Ele surgiu da mesma névoa que os cercava, acompanhado de outra garota desinteressada em esconder sua aparência.

O cabelo ruivo-escuro com peculiares mechas pretas saltitava a cada passo.

Cada vez mais retraído, pois agora enxergava quatro adversários, o desbotado passava a imaginar as melhores rotas de fuga através dos poderes que lograva.

Nesse ínterim, Irene escondeu a lâmina e os olhos deixaram de cintilar.

Keith também puxou o mangual de volta, renunciando por absoluto ao desejo de lutar.

Hazel encarou a dupla com cuidado e exprimiu um lamento forte.

— Por que diabos eu vim mesmo!?

Encarou quem estava ao seu lado: o homem que nunca revelava sua identidade, mesmo ante os aliados.

Ele deu de ombros e aproximou-se mais alguns metros do recuado, que persistia a apontar os espinhos ósseos das mãos em defesa.

— Filho de Lena, Dante. Sobrevivente do Grande Incêndio de Tebas. — As palavras diretas do soturno congelaram a espinha do nomeado. — A cidade derrubada pelos Deuses Olímpicos.

— Como você sabe!? — Dante rugiu, uma efusividade inesperada por todos que o cercavam. — Por que eles fizeram isso? Por que... eu tive que perdê-las?...

O novo mediador tomou alguns segundos de silêncio, para responder com toda serenidade do mundo na sequência:

— Porque eles são deuses. — Simples e direto, trouxe o olhar deturpado do queimado de volta a sua linha de visão. — Não há motivo maior do que as próprias atrocidades que esses seres se tornaram.

Inapto a aceitar somente aquilo como resposta, o acinzentado preparou-se para uma nova contestação.

Foi brecado, contudo, pela mão esticada daquele que lhe ofereceu a mais óbvia das soluções.

Ele ainda estava longe de terminar, por isso pouco remorso experimentou em ter sido tão franco.

O que realmente importava viria a partir dali:

— Venha conosco. Por uma Era sem as crueldades impostas por estes seres, que se acham superiores e não se importam em justificarem os fins pelos meios. — O convite inicial fez Dante relaxar a tensão nos músculos. — Precisamos de sua rara aptidão e força. Só assim poderemos alcançar o destino de equilíbrio que sempre deveria ter existido.

Abalado pelas palavras do recôndito, aquele que teve sua vida drasticamente modificada pelas ações das ditas divindades engoliu em seco.

Não era tão difícil ser convencido a partir daquela posição.

O mesmo ocorreu para todos que se encontravam ali, em sua cercania intransponível.

Desprovido de quaisquer rotas de fuga, ele desistiu de enfrentar o inevitável; os ossos regressaram para dentro do braço, as sobrancelhas contraídas junto ao rosto cabisbaixo.

As garotas se surpreenderam ao ver aquilo.

Tratava-se da oportunidade de uma vida salva pelas sutilezas da fatalidade.

Após pensar por um breve instante, tornou a erguer o semblante enraivecido, pronto em prol de oferecer a resposta derradeira.

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