Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 6 – Arco 5

Capítulo 106: Para Recuperar o que Foi Perdido

Os dias se passavam numa velocidade imprescindível.

Com todos os treinamentos iniciados no Templo das Musas, a corrida contra o tempo se tornava cada vez mais assídua.

Obstáculos precisavam ser superados, em prol dos eventos vindouros.

Não havia mais como escapar do desafio lançado pelas sombras.

Damon foi derrubado com braços abertos no chão, repleto de hematomas e arquejando desesperado por oxigênio.

Os olhos forçavam-se a permanecer fechadas, em busca de suportar o cansaço que o despertava dores intensas por cada extremidade do corpo.

Incapaz de mover um músculo, os cílios se afastaram. Enxergou a filha de Hades, que o observava de cima, por meio de um semblante sisudo.

Portava na mão canhota um bastão de madeira. Mantendo o ar superior inabalável, ainda assim escondia certa fadiga sob a respiração acelerada.

— Hmpf! — resmungona, deu de ombros às condições dele.

Depois de dar meia-volta, apanhou uma capa de couro e guardou o armamento. Sem dizer qualquer coisa, seguiu até a saída do recinto estrelado.

Apenas Calíope e Urânia restaram, também silentes durante todo aquele desfecho.

Quando a porta foi batida, a Astrônoma se levantou de sua cadeira e correu até o filho de Zeus, com a respiração menos ofegante.

A Eloquente se voltou a outra parte do salão.

— V-você consegue se levantar!?...

Preocupada, a celeste se agachou ao lado do garoto.

Sem forças para sequer responder à pergunta, o garoto tentou relaxar a cabeça no solo.

Os olhos pesados focaram no teto. Ou o que imaginava ser o teto. Parecia um céu noturno, como sua íris...

De súbito, uma imagem bloqueou aquela visão. E, sem que pudesse perceber, sentiu um líquido ameno de sabor doce cair sobre sua língua.

— É ambrósia! Vai recuperar seu vigor!

Ela explicou, mas isso nem poderia lhe poupar do susto que sofreu, sem poder se proteger do derramamento repentino.

Quando o baque passou, concentrou-se em engolir o líquido refrescante.

Aos poucos experimentava os incômodos pulsantes desaparecerem. De fato revigorado, embora não completamente, reuniu forças em prol de se sentar.

Calíope, por conta disso, parou de derramar sobre a boca dele. E o ofereceu a jarra.

O olimpiano a tomou e terminou de beber, chegando a deixar filetes dourados escorrerem nas laterais da boca.

Segundos depois de recobrar parte dos movimentos, pôde se levantar.

A esmeraldina pegou de volta o recipiente vazio. Diferente dela, a irmã caçula estava abismada com o feito do convidado.

— Na real — ele mussitou, desviando o rosto com certa timidez. — Eu queria muito comer alguma coisa...

Com o pedido velado pela vergonha, foi até a toalha presa a um gancho, por meio de passadas ainda um tanto trôpegas.

Se secou e vestiu a camisa branca que repousava ao lado.

Tudo isso sem escutar qualquer resposta das anfitriãs.

Mas quando pensou em reafirmar...

— Posso pedir para que Erato e Melpômene preparem um banquete!

Pego de surpresa pelas palavras da Eloquente, o filho de Zeus torceu uma sobrancelha.

— Quem...?

— S-são nossas irmãs...

— Ah... — Ele ergueu os olhos. — São um monte, né?

Calíope projetou um sorriso interesseiro.

— Me acompanhe! — Abriu a porta, por onde a ctónica tinha acabado de passar. — Vou avisar minhas irmãs para enviarem os demais jovens, também!

Damon assentiu com a cabeça, aliviado. Enfim teria algo — bom, ele esperava — para comer após tanto tempo focado nos treinamentos.

Podia ser uma nova fonte de motivação para seguir adiante.

— Eu vou ficar — disse Urânia, baixinho. — Quando voltar, pode ir para seu cômodo... Podemos continuar amanhã.

O apóstolo franziu o cenho.

— Consigo fazer mais hoje — rebateu.

Ele estava em uma disputa contra o tempo, afinal. Perder meio-dia sequer seria ruim.

— Não... Você chegou ao limite da sequência que se impôs. — Mais séria e convicta, a Astrônoma foi irredutível. — E já avançou mais do que esperávamos... Então, foque em descansar pelo que resta do dia...

— Você ouviu!

Apoiada pela caçula, Calíope continuou pela passagem ao corredor do recinto estrelado.

Sem ter mais o que rebater, Damon apenas aceitou a indicação da tutora principal.

De fato, tinha que aprender a se respeitar, ainda mais pelas circunstâncias nas quais chegou àquele ponto.

Caso colapsasse de novo, fosse física ou mentalmente, nada adiantaria.

Entendendo isso, ele respondeu positivo às palavras da cerúlea e foi atrás da mais velha.

Só não podia perceber a presença de Melinoe, na porta seguinte, apta a escutar boa parte daquele diálogo.

Ao notar que o trio estava se aproximando, ela bufou e deixou o cômodo cheio de névoa fria.

“Devo ser mais idiota do que pensava”, ponderou ao chegar em seu quarto, com o banho já preparado.

Despiu-se de olho no espelho, a refletir alguns hematomas por cima de cicatrizes antigas.

Ainda que quisesse ignorar tudo a respeito do amigo de sua irmã e desejar o pior a ele — até se esforçava em derrotá-lo só para o impedir de se recuperar —, não negava estar um pouco curiosa.

Curiosa acerca de como ele poderia ultrapassar as pedras dispostas em seu caminho.

— Amanhã vou acabar com a raça dele! — Jogou-se na água morna.

No fim, mesmo aquele sentimento contrário acabava a direcionando ao desejo de maltratá-lo sem piedade.

Depois de um tempo, Calíope e Damon deixaram a câmara enevoada e partiram rumo ao corredor.

— São quantas de vocês, mesmo? — Ele encarou-a de soslaio.

— Nove.

— Ah... Então tem tu, aquela outra... — Começou a levantar os dedos na contagem. — A dos livros. A que ‘tá com a Helena. A que ‘tá com as gêmeas. A que ‘tá com o Gael. E essas duas que vão fazer a comida. Oito... Falta uma.

— Você é perspicaz, mas não tanto, não é!? — Rindo ao provocá-lo, recebeu o silêncio de volta. — A “que falta” irá auxiliar todos vocês, gradativamente.

— Sei...

— Neste momento ela já deve estar auxiliando o jovem que está com Thalia!

Imaginando que ela não diria mais nada sobre o assunto, o se contentou em sustentar a curiosidade para quando o momento chegasse.

No meio do trajeto, pararam defronte a uma das portas com os símbolos chamativos no topo.

Nessa, situava-se a marca de uma face entristecida. Um rápido déjà-vu o preencheu.

E esse se tornou a rememoração de quando encontrou Urânia na primeira vez.

Era a mesma expressão da máscara que estava em sua face.

Sem ideia sobre o que expectar, apenas encarou a Musa da Eloquência dar duas batidas antes de abrir, sem nem esperar respostas.

O rangido desagradável se pronunciou durante o deslocamento moroso. Nenhuma luz escapou do recinto.

Logo ao entrar, porém, enxergaram uma mulher esguia.

A mão dela tocava uma pintura ainda mais sombria que o próprio ambiente, recheado de cores frias: a imagem de um esfaqueamento.

“Mas que merda...?”, as sobrancelhas do olimpiano se arriaram, tensas.

A curiosidade sobre a obra estampada na parede vinha na mesma intensidade da vontade de não saber nada a respeito.

De todo modo, a musa de cabelo carmesim virou-se para a parca luminosidade invadida do exterior.

O olhar seco o fez paralisar na hora.

Os fios eram menos ondulados, mas conforme chegavam à cintura ganhavam bastantes emaranhados de cachos. E combinavam com o rubi em losango no pescoço.

Por um átimo, cogitou recuar enquanto encarado por olhos azuis tão afiados.

Diferente dele, Calíope permanecia sorridente.

Acenou com o braço à ruiva e a saudou:

— Olá, Melpômene! Desculpe por ser tão direta, mas por acaso você conseguiu adquirir mais carne de cervo!? — Fitou, de canto, o olimpiano. — Gostaria que trabalhasse em uma boa refeição, com Erato, para nossos convidados!

A quietude voltou a permear o ambiente, o que trouxe mais desconforto ao apóstolo.

A esguia exalou um lamento recheado de melancolia e desviou o foco dos dois. O semblante contornado em desânimo.

— Irmã... por que não pedir apenas para a Era?

— Deixe disso e vamos trabalhar! Precisa mostrar uma boa impressão para nossos convidados! — A animada abriu os braços. — Eu vou convocar Erato, então se pudesse ir se adiantando, seria ótimo!

Encarou o filho de Zeus antes de complementar:

— Se quiser, pode se dirigir ao salão de estar e aguardar. Melpômene irá acompanhá-lo enquanto eu busco Erato!

— Beleza...

Sem tanta confiança na própria resposta, Damon assentiu a cabeça. E a expressão entusiasmada da Musa da Eloquência permaneceu.

Para ela, era como um passeio natural no parque.

Depois que ela saiu do cômodo, Melpômene resmungou até o limite, na tentativa de encontrar motivação a fim de ir para o lado de fora.

Sem ter muito o que fazer, afinal se tratava de um pedido de sua irmã mais velha, arrastou-se ao corredor e levou o filho de Zeus consigo.

Fitou-o nos olhos azuis outra vez, através de uma feição pesada de tão pensativa.

Em contrapartida, o cacheado estava impressionado com a altura esticada dela. Ainda assim, era esbelta e formosa.

Era a primeira vez, no que tangia suas memórias, que encontrava uma mulher daquele tamanho.

— Continue preocupado dessa forma. Assim falhará.

O súbito comentário da mulher o arrancou dos pensamentos.

— Hein?

Desconfiado, além de perplexo, Damon semicerrou as vistas noturnas.

Diferente do receito habitual, enfim a desafiou por meio de uma mera encarada.

Em clara retruca, ela afirmou:

— Eu sou Melpômene, a Trágica. Agora, uma pergunta: por que acha que tenho esse epíteto? — Parou a alguns metros das portas que entravam na sala de estar. — Eu apenas puxo tudo que há de negativo em primeiro lugar. Considerar só as situações ruins, depreciar todo tipo de confiança ou otimismo... Assim, é mais fácil me privar de vindouras contrariedades acerca de minha própria pessoa, ou daquilo que me rodeia. Creio que você também tenha certa familiaridade com esse tipo de pensamento...

Incapaz de rebater a filosofia um tanto deturpada da Trágica, Damon cerrou os punhos.

“Que mulher maluca”, guardou o devaneio, conforme um estranho aperto lhe envolvia o peito.

Após o encarar no fundo da alma, Melpômene usou ambas as mãos para empurrar as estruturas metálicas.

No meio do salão espaçoso, havia a távola da qual já tinha visto no dia que entrou no templo.

E duas figuras conhecidas pelo jovem estavam sentadas em seus assentos de mármore escurecido.

Chloe e Julie se atentaram igualmente à chegada da Musa da Tragédia e a saudaram por meio de uma mesura respeitosa.

Ela as ignorou.

— Que surpresa a Melpi sair da câmara dela. — Euterpe, em outra cadeira, murmurou. — Aposto que foi obra da Líope.

De pernas cruzadas e um pouco afastada da mesa, a Musicista limpava sua flauta dupla com um paninho.

Com a passagem taciturna de Melpômene, restou a ela e as aprendizes levarem a atenção ao filho de Zeus.

“Então é essa que ‘tava com as gêmeas”, pensou ao se dirigir até um dos assentos dispostos.

Ficou um pouco afastado das duas ao repousar na beirada da távola — elas se encontravam no exato meão, uma de frente para a outra.

Incomodada pela ignorância forçada pelo companheiro, Chloe buscou acenar até ele, lhe chamando a atenção.

Ainda intrigado pelos dizeres da Trágica antes da entrada no salão, Damon virou o rosto a ela.

Como sempre, o contraste entre a clara e a escura ressaltava aos olhos. Ambas prendiam os lisos cabelos num rabo de cavalo que alcançava o início das costas.

De relance, pôde ver as esferas esverdeadas da inexpressiva cintilarem contra a luz dos castiçais.

“Questionamento: Como vai vosso treinamento?”

A voz da mente ecoou em sua cabeça. Tinha se esquecido de como aquilo era, em partes, incômodo.

— Tirando as surras que eu ‘tô tomando pra’quela desgraçada? Acho que ‘tá indo. — Cruzou as mãos atrás da nuca. — E vocês?

As irmãs trocaram olhares durante segundos precisos.

A sincronia sem igual o deixou impressionado sem perceber as sobrancelhas erguidas.

“Resposta:”, a arqueira iniciou.

— Obtivemos avanços significativos nestes últimos dias. — A voz de ambas soou em uníssono. — Contudo, continuamos a nos encontrar distanciadas de nosso escopo. Com o tempo, acreditamos que tal ideal seja alcançado, mediante empenho e paciência.

Damon paralisou. Sentiu-se completamente confuso por ter que ouvir as palavras verbalizadas por uma e mentalizadas telepaticamente por outra.

Balançou a cabeça para os lados. A enxaqueca foi inevitável com tantas informações simultâneas, embora a mensagem tivesse sido única.

Euterpe sorriu, do outro lado. Ela também pôde escutar, afinal, a Telepatia foi conduzida até sua mente.

Era fabuloso, para a musa, como o tom indiferente e desprovido de emoções da nívea podia se misturar com a expressão mais altiva e confiante da purpúrea.

Misturavam-se belamente em um som singular.

Como se fossem um só...

— Confesso que isto ainda é deveras custoso. — Chloe encostou-se no respaldo, cansada. — Em prol de extinguir quaisquer presunções, Julie partilhou singelas informações através de vossa Bênção...

“Explicação: Esta é uma condição para que possamos refinar nossa ligação, tanto em ações como em pensamentos.”

Diante das revelações nada simples das duas, Damon só conseguiu soltar uma risada de chiado.

— ‘Cês são muito estranhas — suspirou, com certa ironia.

Chloe abriu um forte sorriso, orgulhosa por receber tal declaração.

Novas pessoas passaram pelas portas do corredor — duas mulheres.

Uma já era bem conhecida pelos presentes, Calíope.

Por outro lado, quem vinha ao lado dela...

— Parece que a hora chegou, estava louca para os conhecer. — Todos olharam para a beldade magenta, com sua turmalina rosa brilhando no colar de esferas douradas. — Sou a Poetisa e aqui estou. Me chamo Erato, muito prazer!

O filho de Zeus assegurou a reação dúbia na própria mente. E parecia que as aliadas adotaram a mesma atitude.

De cabelo a esvoaçar pelo espaço a cada passada, sempre a regressar para onde alcançava na cintura, se aproximou da távola.

Pegou as barras do vestido e as ergueu, realizando uma vênia cortês e delicada aos visitantes.

— Bom, ela já se apresentou. De todo modo, tenham ciência de que ela é a mais animada dentre todas nós!

— Ah, ‘tendi...

Damon virou o rosto pela metade.

E encontrou, agora com entendimento, o olhar nada agradável vindo tanto de Melpômene quanto de Euterpe.

Mesmo as filhas de Atena se espantaram — cada uma demonstrando a seu modo. Era a primeira vez que encaravam aquele tipo de feição expressado por sua tutora.

Toda a leveza e tenacidade exaladas até então foram apagadas num piscar.

Em desprezo aos olhares direcionados a si, Erato rodopiou, no intuito de provocar e provar o ponto de sua irmã.

De fato, pensavam os apóstolos, ela carregava uma beleza superior às demais, que já eram bem bonitas.

Tamanha era a disparidade que os três demoraram a perceber que Calíope carregava uma grande bandeja.

— Por sorte, Erato já tinha preparado algumas refeições! — Levou-a até a mesa, onde foi ajudada pela Poetisa a dispor a comida.

Foi ela quem tirou o cloche de cada prato, revelando o que mais desejavam.

Para o olimpiano, uma grandiosa fatia de carne, que soltava um leve vapor abrasante contra seu rosto. O cheiro era encantador.

A boca salivou de imediato.

Para as atenienses, legumes, vegetais e frutas, dispostos em saladas e separados, eram o suficiente.

Sem mais nada a declarar, Damon seguiu os comandos do corpo e cortou a carne com uma faca.

A levou à boca e a mordeu. Experimentou o sabor salgado, a macieza que trazia o suco e tomava conta da língua.

O azul dos olhos brilhou em puro regozijo. Um gemido de satisfação foi solto entre os lábios, a cada mastigada de deleite.

Há tempo não sabia como era tamanho prazer, capaz de lhe trazer um intenso relaxamento sobre o respaldo.

Ao menos um pequeno prêmio por todo o esforço feito até então. E, como cogitado ao ser convidado para aquele banquete, estava confirmado.

Serviria como uma motivação a mais para seguir em frente e recuperar o que foi perdido.

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