Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 5 – Arco 4

Capítulo 96: Imperadores Recrutam - "A Primeira"

Cercada pela escuridão da pequena gruta, a garota fez seu caminho até a saída mediante passos bem curtos.

Um pouco raquítica, cobria-se com uma saia maltrapilha e panos esfarrapados na altura dos seios, deixando mais de metade da pele morena exposta.

Quando chegou ao lado de fora, encontrou os primeiros feixes luminosos da manhã, entrecortados pelas nuvens acinzentadas que flutuavam na abóboda.

Direcionou os olhos cor de avelã àquela vertente, levantando a palma canhota a fim de perseguir o inalcançável.

Parecia que ia chover a qualquer instante.

Ela pouco se importava; semicerrou as esferas oculares, exalou um fraco suspiro e, sem qualquer expressão vívida no rosto sombrio, avançou.

“Mais um dia”, pensou consigo, conforme ia em direção à floresta inabitada nas proximidades de uma grande montanha.

Amarrado em sua cintura e conectado nos punhos, elos metálicos unidos tilintavam a cada passo da jovem remota.

Atravessou a trilha entrefechada, por onde poucos raios solares conseguiam atravessar os espaços das copas das árvores.

Pela fraca brisa a uivar nos corredores da natureza, o cabelo vermelho-escuro dançava plácido sobre o espaço, característico pela separação dos fios na nuca, criando uma mecha curvilínea para cada lado.

Parou de caminhar ao perceber que estava mais do que embrenhada no meão da mata.

Esperou por alguns segundos na iminência de comedir perfeitamente a respiração, para então fechar os olhos num intervalo de curtos segundos.

Ondas sonoras diferenciadas passaram a invadir seus ouvidos aguçados, como se fossem ecos de distintos timbres graves e agudos.

A mistura incessante não foi o suficiente para lhe incomodar ou arrancar a concentração silenciosa.

Logo esgazeou os globos, quase a ponto de cintilarem em meio às penumbras.

Sem delongas, flexionou as pernas e partiu em altíssima velocidade, proveitosa da leveza carregada pelo porte físico franzino.

Atravessou uma distância considerável até que, no período de microssegundos, soltou a corrente metálica envolta à cintura e esticou os braços com força.

Tal deslocamento lançou as junções de argolas contra o cervo que se hidratava na beira do riacho.

Não ofereceu oportunidades em prol daquele animal, que foi enlaçado na altura das patas e puxado com violência para cair no solo relvado.

Num rompante montou acima dele e não o permitiu se debater; puxou uma adaga antiga e perfurou-o no pescoço.

Com ímpeto, girou a lâmina no intuito de finalizar sua vida o mais rápido possível.

Assim que os movimentos cessaram, ela relaxou os ombros e retirou a arma empalada na região vital.

Ergueu o rosto com lentidão, os lábios trêmulos se contraíam num sorriso de escárnio. Era seu pão de cada dia.

Levantou-se com cuidado, amarrou as correntes nos grandes chifres e começou a conduzir o abate pela terra. Durante minutos arrastados, cruzou o trajeto feito no sentido reverso.

Alcançou a caverna conectada ao monte extenso.

Jogou as correntes que trouxeram o animal morto a alguns metros, na área onde a ínfima iluminação exterior ainda alcançava.

Deu meia-volta para, em seguida, regressar à região inicial da floresta.

Com algum esforço, derrubou duas árvores e usou a Energia Vital.

A Autoridade Elementar do Fogo se manifestou, num tom alaranjado, em prol de separar a madeira em pedaços menores — tomando cuidado para não as incendiar.

Um trabalho de minúcia extravagante no tocante a sua aparência.

Todas as ações tinham como sustentáculo principal os grilhões conectados aos punhos.

Executou duas caminhadas de ida e volta no intuito de trazer consigo os fragmentos que pretendia utilizar como lenha.

Na sequência daquela manhã, preparou tudo na entrada da gruta.

Fumaça começou a escapar da cavidade natural, conforme o calor das chamas se alastrava.

Mordia violentamente a carne presa ao osso da perna, ao ponto de arrancá-la num rasgo estridente.

Mastigava a tudo apressadamente, como se urgisse a necessidade de encher logo a barriga.

Chegava a respirar ofegante assim que terminava de saborear uma parte do animal; às vezes tossia de engasgo ou fazia careta pelo gosto não tão aprazível.

Aquela era sua vida desde que o pior aconteceu.

Pegava-se inapta a evitar as relembranças incumbidas de lhe arrancarem o sono dia após dia. Cerrava os punhos sempre que ocorria.

Recusava-se a deixar aquilo lhe amedrontar.

Seu objetivo real estava cravado em brasa no coração.

Apesar de ser utópico — e ela tinha ciência plena disso —, sonhava com o dia no qual poderia esmagar um por um em tributo a ela...

— Olha só. Não é que tem uma pessoa aqui mesmo? — A voz masculina repentinamente quebrou seus pensamentos, a fazendo arregalar os olhos com vagarosidade. — Tanto potencial desperdiçado... Os deuses são muito criteriosos, não é!?

Demorou segundos cruciais até a ficha da isolada cair.

Quando caiu, levantou num solavanco e já trouxe as correntes conectadas às algemas a um ataque inconsequente.

A silhueta não se amedrontou. Puxou correntes semelhantes de baixo do manto negro.

A grande diferença foi vista pela estrela da manhã que surgiu à sua vanguarda, capaz de bloquear as pontas afiadas das extremidades lançadas pela jovem.

Ela abriu a boca, impressionada com a velocidade de reação do rapaz sorridente.

Ao ter a investida direta rebatida, recuou dois passos preocupada.

Seria um deles?

Aqueles que tiraram tudo dela agora tinham ido até ali para terminar o trabalho?

Não conseguia parar de se fazer tais perguntas...

— Ei, vai com calma. Só quero conversar.

Segurou firme na base que carregava a esfera espinhosa.

Era a demonstração visual da superioridade.

— Saia daqui seu perverso! — A voz dela enfim ecoou, estridente na medida das cordas vocais arranhadas.

Só por aquele conjunto de fatores, que incluía o timbre da fala e a aparência nada favorável, o misterioso findou a compreensão de suas condições.

Seria uma conquista de valia imensurável para um começo, ponderou consigo.

— Eu já disse que só quero conversar, mas... — Levantou o rosto, imponente, a ponto de revelar o brilho afiado nos olhos amarronzados. — Parece que vou ter que te convencer na base da força bruta.

Os fios verde-escuros do cabelo bagunçado também se revelaram para a menina, que ficou boquiaberta sem nem notar ao ver as inúmeras marcas na face morena.

Cicatrizes que cruzavam diversas vertentes de um rosto assustador.

Keith não pestanejou em atacá-la caverna adentro, porém a ruiva forçou-se a recobrar a consciência da batalha para desviar do primeiro ataque direto.

Ele reagiu ligeiramente surpreso ao ver que teve seu golpe poderoso desvencilhado, mas girou na velocidade do pensamento para atingi-la nas costas.

O impacto da pesada estrela da manhã a fez grunhir entre os dentes, antes de ser lançada para fora da gruta.

Capotou diversas vezes até rodopiar no próprio eixo, suportando as possíveis fraturas em prol de suster a compostura.

No entanto ao fazer isso, encontrou com a figura do agressor a ínfimos metros de si.

Sem a permitir respirar, tentou lhe esmagar com um golpe descendente do mangual. A oprimida usou, no puro reflexo, as correntes acima da cabeça e impediu o pior.

Defletiu a esfera metálica à sua frente, fazendo-a atingir o chão para levantar detritos rochosos e terrosos no processo.

O ímpeto ainda a fez experimentar uma pontada de dor nos braços, mas foi a melhor brecha da ocasião.

Arte do Outono, Primeira Queda! — O esbravejo trouxe a proliferação da Energia Vital, dos elos metálicos até as pontas afiadas. — Ruínas de Fogo!!

As armas tomadas pelas chamas abóboras dispararam ao serem lançadas pelos braços doloridos.

Passaram nos flancos do rapaz inerte, até criarem encruzilhadas entre si de investidas consecutivas e, a priori, aleatórias.

Algumas chegaram a raspar em suas pernas, cintura e membros superiores num geral, deixando as marcas das queimaduras e cauterização imediata nos leves cortes originados.

Aquela, entretanto, foi a sentença definitiva para com as expectativas criadas sobre a adversária.

Os dentes amarelados surgiram no irromper do sorriso grotesco.

O capuz que o cobria recuou graças aos impactos do ataque da ruiva, deixando sua expressão agressiva se conectar aos olhos vacilantes dela.

Mas aquilo, por alguma razão... também a fez sorrir.

Recheada de ferocidade na boca e no olhar, a garota se desvencilhou da alavanca criada pelo inimigo e insistiu no assalto das correntes flamejantes.

— Eu não vou ser derrotada!! Não até eu matar aqueles desgraçados!! — vociferou como se no objetivo de elevar a própria resistência.

Keith ficava cada vez mais convencido de que ela era a pessoa certa.

Sequer se importou com os ferimentos superficiais; poderia se deixar ser empalado nas costas em prol de conquistar algum tipo de atenção consciente dela.

No entanto seu plano suicida acabou por ser interrompido quando um vórtice negro surgiu no espaço.

A garota esgazeou as vistas, sem expectar pela consequência; uma dor excruciante atingiu sua lombar canhota, fazendo-a perceber a automutilação induzida por outro portal aberto na retaguarda.

O extremo afiado das correntes só não lhe arrancou sangue por conta da cauterização.

A recaída foi imediata.

Sofreu, mas conseguiu o mínimo de sustentar as pernas flexionadas, sem sucumbir ao solo com os joelhos trêmulos.

— Você sempre se desvia do foco da tarefa, Keith — rezingou o segundo indivíduo de capuz, recém-surgido de outro vórtice espacial.

O agressor inicial estalou a língua, consciente de que a diversão estava para ser finalizada.

Já a oprimida não encontrou qualquer maneira de reagir; o golpe inesperado a manteve inerte naquela posição desfavorável.

De certa forma, parecia ver a morte sorrir aos poucos.

Ainda que não quisesse desistir, em defesa da utopia armada na alma, via o caminho fechado para si.

— Temos que testar nossos alvos, não é!? — Rangeu os dentes e desviou o olhar.

O encapuzado preferiu se abster da resposta, levado a somente exalar um fraco lamento.

Encarou a ruiva de mechas pretas nas laterais, uma delas a alcançar o busto.

Embora quase resignada com o cenário contrário, carregava uma sanguinolência absurda nos globos arregalados.

Diferente do precoce, já considerava o bastante a favor de iniciar o verdadeiro processo...

— Você é a filha da Deusa da Discórdia, Éris... morta pelos filhos do Deus da Guerra. — As palavras comedidas transformaram o semblante odioso da garota, que abriu a boca e contraiu as sobrancelhas. — Consigo ver em seus olhos o desejo de destruí-los. Não só a eles, como todos os deuses que viraram as costas para você e te colocaram nessas condições.

O próprio Keith não conhecia as informações iniciais, fato responsável por deixá-lo desentendido — além de um pouco irritado.

Pensou em falar algo, mas foi interrompido pelos passos curtos do mais velho.

— Você pode fazer isso, juntando-se a nós. — Estendeu a mão destra a ela, se aproveitando de sua paralisia absoluta. — Para destruirmos esta Era de tirania, imposta por seres que se acham superiores, os donos da luz e da verdade. Precisaremos não só de sua força, como também de sua convicção.

O mais novo resmungou com escárnio ao escutar as palavras tão assertivas do veterano, conquanto a jovem se sentia seduzida por tamanha transmissão de segurança.

Da inevitável morte à melhor oportunidade recebida desde que fora deixada de lado pelos deuses.

Da água ao néctar, encontrou naqueles dois o potencial que precisava em prol de começar a pintar a própria utopia com novas cores.

Retirou a ponta de lança da área afetada.

Não deixou de sentir a agonia excruciante, porém manteve-se soerguida.

Os adversários também acuaram o ímpeto e abaixaram as armas.

— Nesse caso... — O rosto da menina, apesar do sorriso tirânico, se contorcia em pleno ódio. — Me deixem matar os filhos do Deus da Guerra!

— Se é o que deseja, poderá fazê-lo. — O misterioso se corrupiou, estalou os dedos e abriu um novo portal. — No fim, todos os deuses perecerão. Então, alimente seus desejos conosco... filha de Éris.

— Eu tenho um nome! — Apontou ao homem, sem pudor. — É Hazel!

Ele a encarou por cima do ombro, na iminência de permitir aos olhos marrons serem vistos por baixo da touca negra.

— Entendo. Você é nossa primeira recrutada. Bem-vinda aos Imperadores das Trevas, Hazel — mussitou antes de saltar pela circunferência negra e desaparecer.

Ainda debilitada pelo rápido conflito, a garota chamada Hazel exprimiu seu primeiro sorriso de felicidade após muito tempo.

Não conseguia conter as emoções esmagadas na escuridão do respectivo âmago, que agora se libertavam gradativamente.

Era pouco, por ter sido bastante rápido, mas sentiu dos pés à cabeça que jamais deveria deixar aquela oportunidade escapar.

A mente deturpada a guiaria até o maior desejo, agora ao alcance das mãos.

Com sua aceitação, começava ali o plano de recrutamento do grupo que, futuramente, abalaria as estruturas olímpicas.

Agradecimentos:

Gostaria de agradecer imensamente ao jovem Mortal:

Taldo Excamosh

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