Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 4 – Arco 4

Capítulo 65: Um Outro Lado

Em um salão de cores frias, o garoto de cabelo prateado moldava a Energia Vital que se misturava ao ambiente gélido.

Responsável por criar uma leve camada de ar condensado por todo o recinto, elevou a concentração acima do previsto e fechou os olhos cor de mel.

Segurava a empunhadura escura com ambas as mãos. Projetou a mente, no intuito de criar o cenário ideal que pudesse remetê-lo aos respectivos costumes.

Quando voltou a abri-los, experimentou a sensação almejada. Era como se o corpo inteiro passasse a afundar em águas calmas e profundas.

Aos poucos, era levado a uma extensão de absorção hermética.

Os batimentos cardíacos em declínio, a respiração quase imperceptível — até para quem observasse de perto... Tudo fazia a energia fluir de forma límpida, desprovida de sinuosidades.

“Afunde... afunde...”

Aprofundou o consciente perante a luz refletido na camada superficial da água, ficando cada vez mais distante.

Deixava a região superior para adentrar a uma zona obscurecida daquele “oceano”.

No exterior, os membros reagiam conforme a mente se entranhava no frio do abismo.

As vistas, agora entrefechadas, reluziam no extremo foco e acompanhavam a separação diminuta dos lábios.

A audição ultra aguçada conseguia captar ruídos que não se limitavam aos seus arredores fechados.

Podiam ultrapassar as barreiras construídas pelas paredes do salão, os corredores e demais percalços materiais de todo o templo.

Seus ouvidos estavam conectados a toda a região dominada pelo Deus dos Mares.

Então, o estado de serenidade atingiu um nível inédito.

Mesmo quando a porta do recinto foi aberta, não esboçou alguma reação.

A mulher veio pela passagem e, de cara, foi recebida pelo fluxo gelado. As três franjas repartidas do cabelo aquático levitaram.

Um clima relaxante a dominou de imediato.

Envolta por tamanho reconforto, aproximou-se alguns passos do rapaz. A face pálida projetou um fraco sorriso defronte à postura concentrada dele.

Ela se manteve por algum tempo, até o campo de visão focado encontrar a nova presença.

No mesmo átimo, retraiu toda a energia difundida pelos arredores e delegou atenção à visita.

Os sons vindos de fora foram apagados. O corpo retomou a normalidade, lhe devolvendo a respiração audível.

O cansaço ocasionado pela exigência mental e vital despertou leves calafrios pelo torso.

— Vejo que está conseguindo bons resultados com seu treinamento. — Ela o chamou com a mão destra, alargando o riso plácido.

Silver respirou fundo, exalou um lamento e guardou a lâmina na bainha da cintura.

— O que deseja, mãe? — Virou-se por completo à posição dela.

— Seu pai está lhe convocando, como combinado.

Ao receber a informação, assentiu com a cabeça.

Anfitrite moveu-se de lado e estendeu o braço, em convite a sua procedência.

Por meio daquele gesto, ele aceitou acompanhá-la até a câmara do Deus dos Mares.

Saíram do salão e percorreram os corredores, alcançando o local desejado em menos de dois minutos.

Se apanhassem toda a extensão do Reino de Atlântida, não encontrariam clima mais denso do que em frente àquela porta, com um tridente dourado cinzelado no topo central.

Embora inquietos com aquela pressão, mãe e filho avançaram contra a passagem.

A mulher moveu a porta, causando um forte rangido metálico. A pequena fresta aberta liberou um ar congelante que atiçou suas nucas.

Mantiveram, contudo, o ímpeto à frente.

Silver deu o primeiro passo ao enxergar o homem moreno repousante sobre o trono. Seu tridente ao lado chamava tanta atenção quanto.

Mesmo de olhos oclusos e disposição relaxada, não impediu que o garoto se pronunciasse:

— Estou aqui.

Poseidon despertou vagaroso ao reconhecer a vinda do descendente.

Observou sua postura firme, alheia às sobrancelhas enrustidas que criavam um semblante inabalável.

— Silver. — O Deus dos Mares ergueu a mão dominante. — Como já debatemos, minha irmã me trouxe um requisito pessoal. Sua nova missão foi definida. Deverá se encontrar com outros dois jovens de sua Classe e partir.

Quando a sentença final tomou forma, logo cogitou a presença da dupla com a qual se uniu na tarefa da Ilha Methana.

Então, deu-se conta de que pouco mais de dois meses havia se passado. Fazia tempo que não escutava sobre eles, por consequência.

Retraiu o olhar durante um instante.

— E qual é a missão?

O deus aguardou segundos em quietude.

Apanhou uma garrafa disposta sobre a mesa ao lado e derramou a bebida dourada em sua boca direto do gargalo.

Sentindo o gosto adocicado do néctar divino, deliciou-se ao soltar uma arfada contra o ar acima do rosto.

Toda aquela demora para uma resposta poderia arrancar uma pontada de irritação do prateado.

No entanto, ele sustentou a paciência como poucos. E isso fez o olhar pesado do progenitor se escorar nele outra vez.

Um mero e fútil teste.

— A Hidra de Lerna... em Argos... — Quando citou aquele nome, quem reagiu foi a mulher na retaguarda. — Segundo minha irmã, ela está se proliferando com suas crias e tomando sua cidade aos poucos. Nada contente ao ver seus mortais de estimação sendo “empurrados”, além de ter o próprio templo de adoração ameaçado...

— Espere um pouco! — Anfitrite o interrompeu, aflita. — Esta é uma dos...

Sete Grandes Monstros — completou o próprio filho.

— Acreditamos que vocês já são capazes de lidar com estas criaturas que há tempos não nos perturbavam. No entanto, se acredita ser incapaz de dar conta, poderá recusar à vontade. — O olhar do deus tornou-se afiado de súbito.

— Mas senh... Querido! — A esposa ficou ao lado do filho depois de se corrigir.

— Não interfira, Anfi. Ele deve se lembrar que é um dos herdeiros deste trono. — Bateu a garrafa na mesma mesa. — Sua decisão mostrará se ele está realmente apto a isto.

Silver devolveu a encarada, sem perder a compostura.

— Não precisa se preocupar. Eu vou. — A retruca veio unida a um corrupio inteiro.

— Meu filho... tem certeza?

Bastante preocupada, em contrapartida ao pai, Anfitrite recebeu uma encarada de soslaio do jovem.

Ciente de que não tinha muito o que fazer, ele prosseguiu à direção da porta entreaberta.

— Eu só queria confirmar.

Sem dizer algo a mais na presença dos dois, realizou um rápido aceno com o braço esquerdo e deixou o salão.

A Rainha dos Mares se retraiu e, em seguida, voltou a fitar o grande deus.

Ele tinha voltado a tomar um gole do néctar da garrafa, nada afligido pela situação na qual acabava de delegar seu próprio filho.

Diante daquele comportamento, ela fechou os olhos oceânicos e tomou o mesmo caminho do prateado.

Fechando a porta com cautela, por mais que quisesse batê-la com toda força.

Nada disso seria benéfico para ela ou seu filho.

Portanto, tratou de respirar fundo e controlar a efusão emotiva que voltava a ter após bastante tempo.

Nessa altura, Silver já estava em seus aposentos.

Trocou a roupa branca por uma de tom escurecido, cheio de adornos cianos nas bordas das mangas curtas e da saia.

Depois vestiu a manta característica, abotoando o pequeno oval com um tridente desenhado abaixo do pescoço.

Ajeitou a pulseira cinza com tipografias complexas e apanhou de uma mesa um arco azulado. Nele, encarou o símbolo central de uma esfera envolta por outras menores.

— Você continua usando... — O murmúrio repentino trouxe o olhar dele à porta. — Ainda se lembra de qual aniversário ganhou esse presente?

Ao ver Anfitrite encostada no batente, ele voltou a mirar o acessório e respondeu:

— Dez anos.

— Então lembra mesmo! — Ela sorriu com força. — Imaginei que deixaria de usar quando começasse a crescer, mas olha só. Ainda brilha como se fosse novo em folha...

Compreensível à tentativa implícita da progenitora em lhe tietar, Silver colocou o arco na altura da testa.

O cabelo caído foi levantado na nuca. Sua franja central acabava por ofuscar o símbolo do objeto.

Depois, pegou a lâmina que tinha deixado sobre a cama para se trocar e a colocou de volta na cintura.

— Isso é importante pra você, não é? — Ele voltou a se projetar com o corpo erguido. — Mesmo se quebrar, eu vou continuar levando ele comigo.

— Silver...

— E não precisa se preocupar, eu disse. Eu não ligo pra isso de “herdar o trono”. Mas vou cumprir essa tarefa.

Silver deu a volta e passou pela mulher, deixando o cômodo para trás.

Notável à respectiva inquietação exacerbada, a rainha prendeu uma risada.

Além de achar graça de si própria, estava feliz com as palavras recebidas pelo filho. Isso a moveu para acompanhá-lo, através de passadas aceleradas.

O apóstolo percebeu a constante perseguição da mulher até a chegada à saída do templo.

Não estranhou tanto a atitude escolhida por ela.

Os olhos azuis não desgrudavam de sua cola, com exceção de certos momentos pessoais ou quando ia treinar às escondidas.

Era um costume da casa.

No instante que moveu a maçaneta para partir em busca da nova missão, encarou a expressão curiosa da protetora, uns poucos centímetros mais ata do que ele.

— O quê?...

— Vou te acompanhar!

Ele fez um breve momento de silêncio.

— É uma ordem dele?

— Não. É um desejo meu.

Anfitrite fechou as vistas junto a um novo sorriso benévolo.

— Tem certeza? Você disse que se sente um pouco desconfortável quando sai de Atlântida...

Ver a manifestação de inquietação vinda do olhar do garoto foi o bastante para renovar os ânimos da progenitora.

— Não precisa ficar preocupado. Voltarei antes que ocorra.

Com aquela resposta, ficou ciente de que seria inútil sequer se esforçar para convencê-la a permanecer no templo.

Também mal se lembrava de quando fora a última vez que tinha saído de lá com ela.

Quando as portas se fecharam num som retumbante, capaz de chamar a atenção de diversos mortais nos entornos do santuário, a dupla pegou as Passagens Espectrais.

Evitando uma aclamação infrutífera dos adoradores atlantis, chegaram à beirada da cidade que flutuava sobre o Egeu.

Terra firme já podia ser observada dali, não muito distante.

O Monte Olimpo, que cruzava as nuvens acumuladas e desaparecia da vista conforme se elevava ao céu, vinha na sequência.

— Aliás, queria aproveitar para lhe dar uma dica. — Anfitrite ergueu o indicador, chamando a atenção de seu filho. — A verdade sobre a Hidra de Lerna está fora do alcance.

À constatação um tanto enigmática dela, Silver ergueu as sobrancelhas.

Por alguma razão, uma confiança atípica irradiava da feição vibrante da mulher, diferente de mais cedo.

No crepúsculo derradeiro, as estrelas começavam a ganhar seu brilho sob a abóbada da cidade de Éfeso.

Após designar a próxima tarefa dos filhos de Zeus e Hades, a pedido da Deusa da Sabedoria, Ártemis regressou da reunião no Monte Olimpo.

Naquele instante deveriam estar se dirigindo às procedências do Deserto das Almas, imaginava. Ao mesmo tempo, Helena retornava à Delos por decisão própria.

Portanto, o que restava era...

— Seja bem-vinda de volta!

A voz um tanto trêmula do rapaz chamou seu olhar, à medida que se aproximava pela trilha envolta de um grande e denso bosque.

Deparou com o grandioso templo, cuja fachada carregava o símbolo de sua grande marca: a Lua.

Lá estavam os dois que lhe esperavam; o rapaz de cabelo dourado, que gritou com alguma dificuldade, e a jovem que tinha o penteado de um grande laço azul-escuro sobre a nuca.

E mesmo afetado por sua fobia do anoitecer, Gael entregava o melhor possível em prol de sustentar a euforia costumeira.

Elaine se levantou dos degraus de entrada do santuário e acenou timidamente com a cabeça para a divindade.

A lunar agradeceu as boas-vindas de ambos com um sorriso atencioso. Foi até eles com passadas calmas, portanto percebeu que por baixo de suas capas tinham mudado as indumentárias.

— Já que estão preparados — enunciou a deusa —, falarei com mais detalhes sobre a nova missão. Porém não pretendo me estender muito.

— Esplêndido! — O rapaz fechou os punhos. — E para onde vamos!? Enfrentaremos alguém poderoso!? Será uma nova tarefa em busca de reacender as chamas em nossos corpos e corações!?

Ao criar uma cena absolutamente paradoxal com o tom de euforia que sempre buscava transmitir, Gael socava o ar.

— G-Gael...

Nada segura sobre o que viria, a companheira ao lado buscou acalmá-lo.

Ártemis riu entre os dentes ao acompanhar a dinâmica dos dois. A fim de foca no que importava, cerrou as vistas, levou a mão à frente dos lábios e limpou a garganta com um pigarro.

Tal ruído interrompeu as ações conturbadas do sobrinho, assim como fez parte da timidez de sua filha ser varrida.

A seriedade irradiada do semblante soturna da mulher os prendeu por inteiro. Era tão intenso quanto o demonstrado por ela há algumas horas, no Olimpo.

Voltaram suas atenções e aguardaram pelas importantes palavras:

— Vocês serão enviados para a cidade de Argos. É uma importante cidade vizinha, embora possua um polo parcialmente fechado para os que chegam de fora. Ela é um foco imprescindível para mortais que devotam suas crenças na Rainha dos Deuses, Hera.

Gael e Elaine, embora absortos, reagiam aos poucos a cada sentença explícita pela Deusa da Lua.

— Argos, atualmente, está passando por alguns percalços. Há um bom tempo, um dos Sete Grandes Monstros, a Hidra de Lerna se estabeleceu nos Pântanos da Argólida, uma região pertencente à cidade.

— Hidra de Lerna... — Elaine mussitou, preocupada.

— Os fiéis devotos da Rainha dos Deuses rogam pela ajuda dos deuses. A Hidra esteve alheia à cidade enquanto não fosse perturbada, porém está saindo de controle ultimamente, a ponto de ir tomando a cidade aos poucos. Caso isto continue, levará tudo à ruína, o que causaria um dano inestimável não só à senhora Hera, como a todos nós.

De braços cruzados, o filho de Apolo assentia com a cabeça diversas vezes em sequência.

Já a garota continuava a apertar as mãos trêmulas contra o peito.

— No momento, não possuímos outros membros qualificados para que isto seja resolvido com urgência. Por isto, o retorno de Delos veio no melhor momento possível. — Ergueu um pouco do queixo. — Enviaremos vocês três, imediatamente.

Gael piscou duas vezes quando a lunar encarrou a breve explicação com aquela numeração específica.

Ao saber que mais um iria na missão, e que não era ou Damon ou Lilith, a insegurança atiçou Elaine de novo.

Com vagarosidade, levantou a mão canhota e indagou:

— E... quem é o outro?...

Por um momento, fez-se silêncio no local, deixando que apenas o assobio do vento e o farfalhar das árvores tomasse forma.

Mesmo para Ártemis e Atena, seria extremamente benéfico enviar o quarteto recém-formado, com a prerrogativa de que teriam passado por experiências importantes na missão de Delos.

Com um novo companheirismo criado entre eles, seria possível melhorarem ainda mais a fim de conquistarem o sucesso na incumbência a seguir.

Porém, a aparição daqueles dois casos não as deu escolha.

Por mais que separá-los tivesse sido necessário, ainda não estava terminado.

Com essa linha de pensamento, a única opção viável era apostar no que eles podiam oferecer.

Gael e Elaine trocaram olhares enquanto esperavam alguma resposta da Deusa da Lua.

Mas antes que a própria mediadora pudesse sanar a dúvida, a brisa amena tornou-se fria e até úmida.

O bosque inteiro foi dominado pela influência hermética, na iminência de congelar a tensão causada pela ansiedade sobre os jovens prodígios.

Ambos sentiram, ainda, uma leve e refrescante ressalga tomar conta do local em poucos segundos.

Seus olhares dirigiram-se à retaguarda da divindade, que também girou o corpo sobre o próprio eixo.

Duas figuras idênticas se aproximavam a passos curtos.

O clima marítimo que se proliferava por todos os lados só podia vir deles.

Agradecimentos:

Gostaria de agradecer imensamente ao jovem Mortal:

Taldo Excamosh

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