Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 4 – Arco 3

Capítulo 64: A Descendente do Abismo

Defronte à inimiga, a Deusa Fantasmagórica preencheu sua espada enferrujada com Autoridade Elementar do Fogo.

Além de trazer luz ao âmbito umbroso, fez a temperatura ser elevada gradativamente, a ponto de causar uma súbita transpiração pelo rosto da híbrida.

Acuada ante a imponência da mulher, a respectiva se sentiu contra a parede — literalmente.

Queria recuar, porém a estatura rochosa lhe bloqueava.

Exasperada, verificou as opções nos arredores. Constatou que a única rota de fuga disponível se encontrava na retaguarda da flamejante.

Embora restasse um pingo de confiança no coração, considerava as chances escassas. Num pensamento corrido, mal enxergava seu sucesso em despistá-la.

“Por que essa desgraçada veio logo hoje!?”, cerrou os punhos, enraivecida por ter os planos estragados. “Nem mesmo o Deus do Sol podia me detectar! Toda minha meticulosidade servia em prol de me alimentar quando sua essência adormecia!”

— O que foi? — A voz da deidade a arrancou dos devaneios num pulo. — Cadê aquela confiança em me atacar como fez assim que cheguei aqui? Vamos, não me faça perder o pouco de gosto que adquiri por essa tarefa chata.

“Ela tá brincando, né?”, os olhos marrons da criatura esgazearam afiados, outro indicativo das emoções deturpadas à flor da pele.

Queria atacar com tudo e passar o mais rápido possível para deixar aquele local.

Não importava aonde deveria ir, só queria fugir o quanto antes. Se alocar em outro subterrâneo seria fácil, embora pudesse levar algum tempo até se habituar.

A ruiva, no entanto, previu suas intenções mais íntimas e brandiu a lâmina de fogo, criando uma laceração de energia no espaço.

O ataque quase invisível, além de deliberar um rastro luminoso pelo ambiente, trouxe uma pontada arrastada ao braço esquerdo da híbrida.

Ela virou o rosto com lentidão, a observar o corte cauterizado na altura do bíceps.

Só então o corpo pareceu reconhecer o resto da ardência, fazendo-a entoar um grito ensurdecedor, quase a ponto de estourar as cordas vocais.

O eco estridente, porém, trouxe deleite ainda maior à deusa.

Só nesse movimento a lâmina da arma enferrujada quase se desfez por inteiro.

Mirou o resto do fio na chapa metálica, ciente de que só poderia usufrui-la por mais um ataque.

“Meu braço... meu braço!!”, a monstruosidade ainda demorou segundos para se desprender da paralisia mental causada pelo choque.

Estalou a língua e enfiou as garras da mão restante no músculo acima, de onde sangue escorreu.

Usando dor contra dor, pôde delegar o foco íntegro à ruiva.

Estava sem armas, mas ainda conseguia usar as três serpentes restantes nas pernas.

E assim o fez; enviou todas para atacarem a superior em simultâneo.

Elas só encontraram a morte, ao serem decepadas por um lanho veloz.

Consciente de que meros répteis jamais poderiam delegar qualquer problema à deidade, tentou aproveitar a brecha originada pela investida delas.

A espada terminou de se desfazer, restante só a empunhadura. Era o melhor momento em prol de forçar a passagem.

As patas de dragão quase afundaram no chão, tamanha potência imposta através dos membros inferiores.

O resultado veio na sequência, quando o corpo saltou por cima da apóstola num rápido mortal.

Caiu na retaguarda dela, com dificuldades em pousar graças ao ferimento grave.

De todo modo, foi capaz de se levantar na velocidade do pensamento para, enfim, correr na direção da única saída disponível.

Nesse ínterim, diversas serpentes avermelhadas se esgueiraram das ínfimas lacunas das catacumbas e se uniram às pernas apressadas da híbrida.

Ofegante, deixou os lábios formarem o sorriso distorcido do desespero.

Caso fosse atacada, mandaria diversos répteis a atacarem ao mesmo tempo.

Talvez fosse eficiente apenas para ganhar tempo, mas já bastava.

Quando deixasse para trás as catacumbas, estaria apta a despistá-la de vez.

Arte do Submundo, Terceira Morte...

O sibilo da Deusa Fantasmagórica foi crucial para que a criatura perdesse um mísero segundo, olhando por cima do ombro na hora errada.

Somente enxergou, de relance, uma navalha dupla de metal escuro se estender pela retaguarda dela.

E então, um mar de chamas avermelhadas que a fez arregalar os olhos, inapta a encontrar qualquer brecha possível no meio do extenso corredor de caveiras bem polidas.

A energia flamejante a atingiu e se mesclou com seu grito de puro sofrimento, queimada dos pés à cabeça em conjunto das serpentes nas pernas — e mais algumas que restavam no caminho.

Em seguida, a explosão destruiu boa parte daquela região, iniciando o colapso do subterrâneo.

O terremoto provocado pelos impactos se espalhou por um raio de distância elevado, a ponto de pegar quase toda a cidade.

Muitos dos mortais despertaram, assustados e desentendidos no que concernia a tal anomalia.

Alguns tiveram a coragem de deixar suas residências para, desse modo, encararam o clarão a ascender o espaço na região central da pólis.

O tremor foi interrompido alguns segundos depois e trouxe um misto de alívio e inquietação.

Quando o silêncio perdurou, resolveram se arriscar indo em direção ao sinal chamativo no horizonte não muito distante.

Parte das chamas restou da detonação, em virtude de ter atingido o relvado da superfície abarrotada na sequência do desmoronamento das catacumbas.

A deidade sequer teve a urgência de escapar; se protegeu com a arma especial e abriu passagem nos escombros para saltar, ilesa.

Pisou na plataforma mais alta do topo, enquanto carregava na mão destra o corpo carbonizado da adversária.

Com a alabarda de lâmina dupla posicionada ao lado, apertou o botão central com o polegar e a fez regressar a um pequeno punhal.

— Situação resolvida, creio eu. — Guardou a arma ao notar a aproximação dos delfianos. — Bisbilhoteiros idiotas... no mínimo posso deixar um presentinho.

Jogou o braço lacerado da mulher, assim como alguns répteis queimados, na passagem principal que levava ao subterrâneo.

Desapareceu sem deixar rastros, momentos antes do primeiro homem alcançar a destruição.

Assustado, encontrou o membro partido e os répteis mortos.

Ao chegar mais perto, viu uma marca estranha brilhar em vermelho; queimaduras em pele e carne.

Tratava-se de uma cruz afiada com uma lua crescente deitada no topo, além da esfera no centro dessa curvatura.

O cetro, imagem representativa do Deus do Submundo.

Tomada por um nível de contentamento nada expectado, a deusa regressou pelo topo das casas sem ser vista por qualquer ser.

Fazia jus ao apelido do qual foi indiciada pela falecida monstruosidade, carregada consigo pelo caminho.

Desinteressada em tomar partido das Passagens Espectrais, a mulher percorreu todas as cidades helênicas a caminho de Olímpia.

Não se importou em ser encontrada, pois isso era impossível — tanto pela vigília dos mortais quanto pela própria capacidade de não ser detectada por outrem.

Tranquilamente regressou a pólis principal do continente, a primeira extensão direta com a grande montanha.

Torcia o semblante só de olhar para o relevo alado, mas não tinha outra opção.

Era o único caminho possível para sua casa.

— Agradeço encarecidamente por ter se dado ao trabalho. — A voz solene chamou sua atenção, na adjacência da entrada para as grandes escadarias. — Vossas ações de certo serão louvadas por todos nós, incluindo meu irmão Apolo, Melinoe.

— Que seja. Toma aí.

Jogou o corpo carbonizado da criatura no chão, bem à frente da Deusa da Sabedoria.

— Entendo... então era Campe, a Subterrânea.

— Por favor, não me perturbem outra vez pra missões tão enfadonhas.

Melinoe não pensou duas vezes em dar a volta à direita, no intuito de flanquear o sopé montanhoso.

— Creio que não será necessário, de fato. Porém... — Aquela palavra fez a ruiva levantar uma ínfima suspeita, que logo foi correspondida pela purpúrea: — Prometo que, da próxima vez, serás agraciada por uma incumbência de maior periculosidade, como indica vossa Classe Herói.

— Tomara que sim — resmungou, ciente da lábia poderosa daquela deidade.

Cerrou os punhos, enraivecida.

Levou alguns segundos até desaparecer frente a linha de visão da deusa, que realizou uma rápida mesura, um último agradecimento à Deusa Fantasmagórica.

O céu começava a trazer indícios do amanhecer, do qual a tonalidade levemente alaranjada passava a preencher a escuridão pontilhada de astros.

Ainda dava tempo de recuperar um pouco do sono perdido, entretanto perguntava-se o quanto seria capaz de fazê-lo.

Afinal, ela ainda estava em sua grandiosa tarefa, diferente de si, enviada a algo tão banal. Tomou o túnel arco-íris especial, responsável por levá-la ao acesso inferior ligado ao Olimpo.

Tateando a palma fria sobre certo ponto da superfície rochosa, levou a energia interior a forçar a abertura da respectiva, como se fosse um grande portal.

Saltou através dele, então de volta ao reino natal.

Desceu as escadarias escuras, rodeadas pelas tochas roxas que dominavam a grande maioria do extenso ambiente.

Em pouco tempo, chegou ao primeiro templo de acesso naquele mundo subterrâneo.

Como já estava bem tarde — apesar da chegada do amanhecer — tomou cuidado em todos os movimentos.

Abriu e fechou o portão principal com delicadeza, ultrapassou os cômodos de recepção a passadas lentas.

A pior coisa naquele instante seria despertá-los...

— Bem-vinda de volta, minha filha.

Tal pretensão foi derrubada num sopro, assim que a voz da mais velha a pegou desprevenida.

Já no corredor principal, olhou a sorridente deusa de longos fios avermelhados bem escuros, os globos oculares tão purpúreos quanto os seus.

— Mãe... — O mussito não soou nada aprazível, mas a Rainha do Submundo não aparentou se importar. — Não deveria estar em Elêusis nessa época?

— Adiantei meus deveres e resolvi fazer uma visita de alguns dias.

Perséfone alisou as pontas curvas das mechas laterais, a caírem sobre os ombros.

— Entendo... veio ver sua inútil favorita — mussitou através de um sorriso de escárnio, algo que tirou uma olhadela ríspida da genetriz. — Estou cansada, então vou dormir um pouco. Preciso recebê-la com a energia em dia, não acha? E depois ainda relatar tudo ao pai...

Nas últimas frases, já chegava ao ponto de falar sozinha no intuito de despistar o clima desagradável criado pelas palavras anteriores.

Regressou, portanto, ao cômodo pessoal mediante um rápido aceno de canhota para a superior.

Essa que, no fim, só restou ao suspiro cansado. Não importava quanto tempo se passasse, sua filha mais velha pouco mudava.

— Ainda é péssima em dissimular...

Exalou inquietação ao entoar para si, pensativa nas relações estabelecidas durante tantos anos no Reino dos Mortos.

Agradecimentos:

Gostaria de agradecer imensamente ao jovem Mortal:

Taldo Excamosh

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