Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 4 – Arco 3

Capítulo 63: Caminho Fantasmagórico

Quando a noite caía, duas das principais pólis helênicas ganhavam diferentes e peculiares contrastes.

Enquanto numa os mortais deixavam suas residências, em prol de festejarem e trabalharem por entre as ruas espaçadas, em outra eles se recolhiam para o descanso.

Tais características dividiam as terras do Sol e da Lua além da fronteira geográfica, cortada por um canal a desaguar no Mar Egeu.

A produtividade do dia e da noite eram invertidos.

Enquanto os cânticos à deusa lunar ecoavam, o silêncio perdurava não só por Delfos, como pelas demais cidades helênicas.

Era no meio dessa quietude que, sem quaisquer indícios, as víboras selvagens agiam.

Rastejavam freneticamente para fora da terra e, sem pestanejar, invadiam as casas dos moradores cansados no intuito de arrastá-los estrada afora.

Em seguida, regressavam para a mesma região de onde saíam, sem deixar vestígios.

Os desesperados tentavam gritar, mas eram estrangulados pela força colossal do corpo malemolente dos répteis carmim.

Isso tudo conforme conduzidos pelo trajeto, como se fossem puxados por algo ainda mais intenso.

Incapazes de se libertar, apenas afundavam na terra, aos confins sombrios dos quais ninguém fazia ideia.

A onda de desaparecimentos aumentava a cada dia, começando a preocupar os delfianos e estabelecendo uma onda de temor, dia ou noite.

Algo de errado residia naquele lugar, centro do culto absoluto ao Deus do Sol, Apolo — ocupado demais para lidar com problemas tão pequenos.

Isso, somado a seu filho com disponibilidade para outra tarefa, deixava a pólis ainda mais vulnerável, seja lá para o que fosse.

— Então é por isso que sobrou para mim? — A ruiva indagou, nada contente com a explicação que acabara de escutar. — Se é um problema pequeno, por que não chamam alguns dos pirralhos deles, hein?

— Tais desaparecimentos apresentam-se diferentes dos últimos com os quais os mortais de toda Hélade vêm convivendo. — A mulher ao lado respondeu solene ao ajeitar as mechas do cabelo bege. — Por isso senhorita Atena fez o pedido para que eu avisasse sua mãe, senhora Perséfone, para que avisasse a você... Apóstola de Classe...

— Tá bom, não precisa mais explicar o óbvio. — Balançou a mão canhota ao caminhar no declive da colina.

O corpo de etnia parda era coberto por nada mais do um pedaço de tecido de linho escuro, envolto em seus seios fartos.

A saia utilizada caía até a altura dos joelhos.

Logo, contudo, precisou se resguardar com um manto rubro que, apesar de aberto na fronte, cobria metade do rosto graças ao capuz.

Sobrava um resquício de fulgor através dos globos púrpuros, tão afiados quanto o semblante que se mostrava.

— Depois diga para sua Deusa da Sabedoria que a mandei...

— Certamente transmitirei seu juramento de triunfo!

A sorridente a interrompeu, fazendo-a dar meia volta e observar de soslaio.

Nem um vestígio da acompanhante restou. Somente a brisa fresca a farfalhar com a grama alta do grande relevo.

Isso fez a apóstola, agora solitária, estalar a língua.

Guardou a energia para os ressentimentos que planejava proliferar por entre a lábia suja, em nome da deusa responsável por requisitá-la àquela tarefa.

“Que chatice”, continuou a resmungar até descer à metade do declive, para enfim saltar sem medo ao plano rochoso da pólis deserta. “Vamos acabar logo com isso.”

Mirou o trajeto silencioso, as vistas semicerradas.

Andou pelas ruas sem pressa alguma.

Conforme verificava as passagens de todas as casas e anulava possíveis incongruências, mais o sono natural lhe atiçava, a ponto de fazê-la bocejar diversas vezes em sequência.

Modorrenta missão, pensava consigo, à medida que atravessava toda a região sem encontrar qualquer coisa.

Nem mesmo um traço de energia nefasta, ou singular o suficiente em prol de lhe chamar a atenção.

Caso permanecesse naquela inércia, de certo optaria por retornar para casa. Nem queria saber das consequências acarretadas pela irritabilidade dos deuses superiores.

De qualquer maneira, jamais poderiam puni-la.

Sua maior arma era sua descendência.

Ser afetada estava fora de cogitação. Por isso, tal incumbência não lhe delegava peso algum nos ombros.

Levou poucos minutos até dar a volta em mais de metade do local. Sem qualquer achado relevante, optou por tirar um tempo para descansar.

Dirigiu-se ao campo mais próximo, entre o centro e a zona portuária, e subiu numa das árvores para relaxar no maior galho do topo.

Tirou o capuz e deixou que o curto cabelo de pontas onduladas sobre a testa recebesse o frescor da noite.

Dali podia enxergar a abóbada celeste, desprovida de muitas nuvens e tomada pelo pulsar das estrelas.

Não estava habituada a obter acesso à vista tão cativa, ponderava em silêncio. Embora não se importasse muito com tais detalhes.

Independentemente de ter oportunidades escassas, ainda assim já tinha visto aquele céu muitas outras vezes.

Sentia-se pouco confortável ante a escuridão do exterior.

Sempre que fechava os olhos, trazia à tona memórias nada agradáveis de um passado não tão distante.

Memórias do medo jamais experimentado em vida, que fora desperto naquele dia e a perturbava noite após noite.

 O maior ódio de sua vida impregnado nas trevas, incumbidas de dominarem-na...

Não conseguia suster as estribeiras emocionais ao ser preenchida pela enxurrada de lembranças.

As esferas oculares oclusas se forçavam, assim como os lábios se contorciam.

Balançou a cabeça para os lados, de modo a tentar se livrar das imagens sinistras.

Quase chegou ao ponto de golpear o arvoredo no qual repousava. Entretanto, um ruído estranho a puxou dos devaneios indigestos.

Na velocidade do pensamento saltou do galho e disparou rumo à vertente do sonido, sutil o suficiente para alertar o mínimo de pessoas possível.

Só não contava com a presença da ruiva ali, que tornou a cobrir a cabeça com o capuz conforme corria.

Chegou a uma das ruas ainda não averiguadas, onde encontrou o silêncio ensurdecedor.

Com pressa, avançou o quarteirão inteiro até se deparar com uma porta de residência quase rompida para fora.

Nenhum rastro existia, além do som bem fraco de rastejo à esquerda.

Foi veloz o bastante para chegar na virada da esquina e, enfim, encontrar a pista definitiva.

Enxergou de relance uma movimentação rasa, de algo que parecia ser um animal.

O sorriso brotou de maneira inconsciente no rosto, ao passo que as pernas pegaram impulso ainda maior e a fizeram cobrir a distância entre uma virada e outra em menos de dois segundos.

Tal disparo a permitiu contemplar a grande serpente carmim, envolta num mortal que se debatia sem sucesso algum enquanto arrastado pelo trajeto.

Cogitou matá-la de uma vez, porém resolveu segui-la cautelosamente antes disso.

Após alguns minutos de viagem, dando algumas voltas entre as ruas esticadas, encontrou a passagem derradeira: um buraco no chão.

Era mascarado por um altar que sustentava uma estátua do Deus do Sol.

Ao identificar sua procedência até aquela região bem escondida, avançou numa celeridade ainda maior.

Antes de a cabeça do animal adentrar a cavidade, a sandália escura da mulher a esmagou, a ponto de fazer o solo daquela área da cidade tremer.

Sangue quase negro e tripas esvoaçaram rasantes a um raio encurtado.

Os movimentos pararam em definitivo, restando os do mortal aprisionado pelo corpo do réptil.

O enrosco afrouxou, o permitindo se livrar aos poucos das amarras pesadas que esmagavam seus membros.

Libertou a boca em seguida, capaz de sugar o oxigênio perdido.

Desesperado, moveu os braços e pernas dolorosos, enquanto fitava a encapuzada logo acima.

Notou ser uma mulher, em detrimento das belas curvas que o manto negro não cobria.

— Vá logo para casa.

E foi confirmado por sua voz, que ainda assim carregava um timbre grave.

Parecia tão assustadora quanto a serpente morta.

— O resto eu assumo.

Incrédulo ante os olhos púrpuros que lhe encaravam à alma do alto, o delfiano deixou o turbilhão dentro de si o conduzir.

Quase tropeçou e caiu novamente, mas conseguiu disparar pela rua que levava de volta a sua residência.

A apóstola virou o restante da postura, à vertente da passagem terrestre. Desprovida de hesitação, acessou o declive terroso responsável por levá-la abaixo.

Não havia tanto espaço, portanto, deitou as costas e deixou-se deslizar por alguns segundos.

Chegou ao local subterrâneo, enfim. Os pés reconheceram o regresso do plano sólido e o torso voltou a se erguer.

O manto especial já fazia o papel de se livrar dos resquícios da terra.

Por fim, o ambiente ao redor.

— Catacumbas, hein?...

Estava escuro demais, mas não era problema algum para ela.

Os globos semicobertos pelo capuz cintilaram como um par de faróis, obrigando-a a abdicar da cobertura superior.

Passou a explorar as tais catacumbas mediante passadas pesadas.

Pouco se importava em chamar a atenção de um possível residente. Na realidade, essa era sua real pretensão.

Ecos provocados pelas solas das sandálias irrompiam contra o lúgubre silêncio.

Diversas sepulturas antigas enfileiravam as retas espaçosas. Já os corredores possuíam mostruários abertos de ossadas, a maioria de crânios.

Nada disso incomodava a descendente divina; sentia-se em casa.

O ar mortífero exalado por todos os cantos elevava seu prazer por continuar naquela missão, antes renegada pelos próprios princípios.

Pouco obstante a isso, continuou às escuras quanto a qualquer pista interligada à serpente pisoteada mais cedo.

Ela de certo rumava àquele esconderijo. Aparentava haver sinal algum de outra anormalidade entranhada ali.

Mas só aparentava...

Num giro de supetão, a ruiva alargou o sorriso.

Foram suficientes microssegundos até tomar a decisão de levantar o braço esquerdo, a palma aberta adiante, e mover-se alguns centímetros à direita.

A lâmina enferrujada passou quase raspando em sua bochecha.

Notou o refugo da responsável por ter desferido tal ataque, então antes que ela pudesse reagir de outra maneira, segurou o cabo do equipamento.

A oponente quase mascarada pelo breu, não fosse o brilho nos olhos roxos à frente, tentou se mover, mas ficou estática graças à força descomunal imposta pela iluminada.

Pensou logo em largar a empunhadura e se afastar, porém foi surpreendida por uma pressão violenta na altura do abdômen.

O joelho da invasora esmagou seus ossos antes de lançá-la a metros de distância, até colidir com a parede mais próxima.

A explosão causou outro tremor na superfície, a ponto de fazer com que fragmentos rochosos se desprendessem do teto e fossem de encontro ao solo.

— Veja só, veja só! Enfim algo de interessante! — comemorou ao girar a lâmina antiga. Achou que seria suficiente utilizá-la contra a própria agressora. — Então é você que tá infernizando a vida dos mortais dessa cidade!?

De súbito, duas serpentes tão grandes e ágeis quanto a assassinada há pouco se arrastaram por seus flancos e saltaram.

Com presas à mostra, buscaram abocanhar a mulher que, sem perder a compostura, girou de modo a cortá-las na altura do pescoço sem piedade.

“Acha mesmo que vai me atingir com isso?”, regressou à posição frontal, toda cínica no que concernia às tentativas da indivídua que ainda se levantava após a colisão.

— Quem diabos é você? — A rouca voz feminina atravessou os corredores, recheada de debilidade e ódio. — Como eu não te senti chegar!?

— Ah, isso é tão simples quanto enganar uma criança! — A ruiva, no intermédio de passos curtos, encobriu parte da distância que as separava. — Me diga... como poderia sentir um fantasma?

— O quê? — A incredulidade tomou conta, conforme sua imagem se tornava ainda mais clara à apóstola. — Não me diga que você...?

— Acho que nem preciso me apresentar, não é mesmo?

Os olhos brilhantes encararam o corpo da monstruosidade.

Metade superior humana — uma bonita moça, por sinal —, metade inferior... de dragão.

Isso sem contar as outras três serpentes restantes em volta de suas pernas, duas na direita e uma na esquerda.

O impagável naquele momento era sua expressão: as vistas esgazeadas, testa franzida e boca contorcida em puro temor.

— Vou terminar logo esse trabalho e voltar pra casa. Infelizmente não estou no melhor dos meus dias...

Apontou a espada quebradiça à monstruosidade, de onde camadas de fogo escarlate saltaram.

O âmbito, agora, era alumiado por completo.

Deusa Fantasmagórica... — O mussito arrastado da criatura soou do reconhecimento ocular ante a apóstola.

Era assustador...

— O prazer é todo meu, híbrida subterrânea!

Imponente em essência, a deusa criou sua vantagem no repentino conflito abaixo da terra de Delfos.

Agradecimentos:

Gostaria de agradecer imensamente ao jovem Mortal:

Taldo Excamosh

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