Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 3 – Arco 3

Capítulo 44: Presa e Predador

Pelo Deserto da Perdição, a ventania voltou a percorrer as faixas de areia e cessar em intervalos aleatórias.

Quando isso ocorria, um único som emitido pelas redondezas se proliferava. Entre a sequência de enormes dunas, passos pesados atravessavam o rumo da imensidão.

Com eles, um machado enorme vinha sendo arrastado pela palma cheia de calos.

Os olhos vidrados no caminho à frente eram tão sombrios quanto o caminho adiante, parcialmente ofuscados pelas franjas repartidas do cabelo vermelho-escuro.

Suas extremidades alcançavam a cervical e espalhavam-se igualmente a ambos os ombros.

O corpo robusto pouco se esforçava a fim de avançar. O musculoso braço canhoto era o único que parecia depositar algum empenho em puxar a arma deitada.

Começou a subir uma elevada montanha de areia.

Tampouco suava. Não sofria com quaisquer dificuldades.

Na travessia de um pedaço considerável do deserto — apesar de nem mesmo saber o quanto tinha atravessado —, nunca interrompeu por descanso.

A lua iluminava parte de seu rosto avantajado. Os dentes se mostravam, unidos, em contraste com o tom escurecido de sua pele.

Só que tal semblante não era de exclusividade dele naquele momento.

Uma presença tão obscura quanto o observava por meio da feição de sorriso grotesco.

Bem adjacente ao andarilho, alargou a sinuosidade dos lábios no instante que os pés dele terminaram de deslizar pelo declive da duna.

Mesmo em meio à vastidão silenciosa, desapareceu como se fosse sua própria sombra.

Diminuiu a distância, as garras dos dedos em riste preparadas para o abate.

Na mira do pescoço rijo, coberto pelos fios afiados a caírem após a nuca, bateu as asas preenchidas em trevas.

“Morra!”, divagou no instante que executou a ofensiva fatal, arqueada em alta velocidade.

Entretanto, o sorriso do musculoso se alargou a exemplo do seu. Numa fração de um piscar, moveu o braço dominante e levantou o machado.

Por consequência de sua força estridente, fez subir a cortina de areia que surpreendeu a mulher camuflada. De quebra, a fez errar o golpe.

“Mas o quê!?”, assim que lacerou somente a camada de minerais, viu o alvo desaparecer de onde estava há menos de dois segundos.

A forma coberta pelas sombras se desfez. A lua lhe revelou, vulnerável.

Balançou a cabeça para todos os lados, fazendo as ondas cinzentas que tocavam os ombros dançarem juntas às asas escuras.

— Como ele...? — A harpia tinha as pupilas tão diminutas no tocante a sua braveza.

Antes mesmo de completar uma volta na procura, experimentou um arrepio indescritível a atiçar na retaguarda.

— O que foi!? — A grossa voz ressoou violenta. — Então é esse seu tipo, a que ataca pelas costas escondida nas sombras como uma covarde!? Pensou que isso ia funcionar comigo, sua merdinha!?

O tom áspero elevada a cada palavra esmagou rapidamente qualquer confiança reunida pela criatura.

Devido ao medo sublime, demorou bons segundos até usar as patas de ave para saltar à frente, girando no mesmo eixo em seguida.

Quando o fez, contemplou de cara a faceta selvagem escurecida sob o luar.

“Parece... um leão com... sede de sangue”, nem mesmo percebeu o próprio pensamento.

Mas estava consciente sobre as reais posições adquiridas à força para aquele cenário.

A presa não era ele.

Perante o temor doloroso que dominava seu peito, o viu inclinar o torneado torso à frente.

A diferença de altura entre ambas se tornou clara quando a mulher-pássaro, mesmo a metros afastada, precisou erguer a cabeça só para encará-lo nos olhos negros.

— Ei. Você realmente achou que podia me vencer!? Mesmo me observando todo esse tempo, ainda teve a ousadia de tentar!? — Arregalou as vistas, sua influência grotesca crescia a cada sentença. — Você sabia? Eu notei sua presença assim que entrei nessa merda de deserto! Mas eu não te ataquei porque estava esperando pra ver como você tentaria me surpreender. Consegue sentir o desespero de ter sua melhor habilidade destruída sem dificuldades!?

“Esse cara...!”, a criatura enfim percebeu o suor frio acumular por sua face.

— E ainda assim você teve a ousadia de me atacar, mesmo sabendo da nossa diferença!! Por isso eu mudei de ideia. — Abriu a mão, de modo a trazer sua atenção aos dedos levantados. — Vou dar cinco segundos pra você correr. Prometo contar devagarzinho.

Com a “benevolência” oferecida pelo robusto, deleitoso por todas as regiões da expressão sorridente, a mulher retornou do congelamento.

Em protesto, contra-argumentou:

— C-como!? Eu não irei fug...!

— Cinco. — Ignorando a resposta dela, abaixou o polegar.

“Ele está sério!?”, a harpia recuou dois passos, rangendo os dentes e apertando os punhos cerrados até arranhar as palmas com suas garras

— Quatro. — Abaixou o mindinho.

“Eu não posso fugir! Seria uma vergonha!!”, tentou permanecer onde estava.

Todos os sentidos gritavam em alerta, porém ela continuava a lutar contra os instintos criados pela mente deturpada.

Na verdade, havia uma chance rara de o atacar enquanto se mantivesse na tal contagem.

— Três. — Dessa vez foi o anelar.

“Uma Harpia não se afronta ao confronto”, afiou as unhas, de novo abertas, para o golpear enquanto fosse possível. “Eu, Podarge, não poss...!”

— Dois.

Nem mesmo a divagação pôde ser completa quando o dedo médio desceu.

A voz distorcida que enunciou o último número antes do final fez questão de ratificar toda a superioridade e arrogância que ele trazia sobre os ombros.

Quando sua influência matadora se elevou por todos os lados daquele deserto, Podarge petrificou na areia.

Incapaz de pensar em qualquer alternativa, amaldiçoou a si mesma por ter sido tão teimosa.

Ela não podia enfrentar aquilo.

O desejo de permanecer viva gritou à plenos pulmões, a empurrando para fugir dali o mais rápido possível.

Contudo, três preciosos segundos não seriam perdidos sem cobrar-lhe um preço.

— Um!

Ao ouvir o fim da contagem, reuniu tanta energia à beira do limite. Retornou à camuflagem das sombras na velocidade do pensamento.

Quando foi abraçada por sua habilidade, experimentou uma fagulha de esperança reacender. Bateu as asas com força, findando o movimento de escape.

Mas foi inútil.

Quando o indicador dele enfim abaixou, Podarge foi surpreendida pela velocidade brusca que chegou ao seu lado num salto.

Embora tivesse um físico aparentemente pesado, a igualou com o impulso estrondoso.

Não somente isso, como a encontrou dentro da respectiva camuflagem de sombras.

Foi rápido o bastante para entrar na frente dela, bloqueando sua passagem. A partir dali, não havia mais qualquer rota para a debandada da harpia.

Ela só foi capaz de enxergar o riso selvagem de seu predador natural. Um medo excruciante subiu por seu peito e entalou a garganta que desejava esbravejar por socorro.

No entanto, mesmo tal semblante foi ofuscado. O homem se moveu em dois passos, desceu o braço junto ao machado.

A lâmina afundou no ombro direito da ave, sem que ela pudesse ver. Apenas sentiu a dor lancinante a arrepiar, seguido pelo dilacerar de seu corpo que fez todos os sentidos desaparecerem.

A potência de incisão foi tamanha que fez a arma afiada colidir com o solo.

O acúmulo de areia subiu ao ar, provocado pela explosão consequente. Mas esse logo se desfez, com os minerais puxados de volta pela gravidade.

O corpo já morto da harpia partiu-se ao meio, à medida que sangue se misturava aos grãos diminutos e pintava o branco da superfície fofa.

Ergueu o tronco sem desfazer o sorriso deleitoso e sacudiu o machado, livrando-se dos resquícios do líquido sobre a chapa metálica.

Após levar menos de dez segundos para aniquilar a adversária, voltou a caminhar como se nada tivesse acontecido.

Tampouco se importou com o corpo da falecida. Em breve, as ventanias características daquele espaço a enterrariam sob a areia.

Só que, não muito distante dali...

“A irmã Podarge...”, uma segunda harpia desabou, incrédula diante do ocorrido.

Escondida atrás de outra grande duna, levou as mãos laceradas à frente da boca no objetivo de prender qualquer ruído.

Virou-se de supetão, com medo de ser vista. Depois daquilo, sabia que só correria para a morte caso agisse de forma descoordenada.

Ainda sentia as dores causadas pelos ferimentos no ombro. A flecha continuava atravessada em sua carne.

E mesmo após ter despistado as irmãs nas ruínas, Ocípete tirou a sorte grande de ter ido ao cenário onde um novo adversário se encontrava.

Pior, tão letal e amedrontador quanto aquelas duas.

Ver a morte relâmpago de sua irmã esmagou seu psicológico já enfraquecido.

Acima do desejo de vingança natural, a vontade de sobreviver a qualquer custo surgiu.

— Preciso encontrar a irmã Aelo — mussitou, rouca, ao olhar para os lados. — Ela deve estar patrulhando... a entrada Noroeste...

Visou os dois flancos, na busca da segurança para partir à vertente concebida.

— E aí, franguinha!

A voz animalesca ecoou pelo silêncio.

“Qu...!?”, a incrédula contornou o rosto, os olhos esgazeados.

O homem de cabelo escuro, acima da duna onde pensava estar escondida, lhe avistou sem dificuldades.

Seu machado, ainda com ínfimos rastros do sangue de Podarge, elevou o estado de choque da pequena ave.

Saiu de uma situação ruim para enfiar-se em outra pior. As chances de sobrevivência acabavam de reduzir drasticamente, em menos de um piscar.

Buscou vencer a grave ferida no intuito de bater as asas com todas as forças. Tentou usufruir dos resquícios do epiteto que lhe atendia por Vento Ligeiro.

Entretanto, ele acabou sendo mais rápido com um salto poderoso, caindo defronte à desesperada.

Em seguida, executou um corte veloz sem pestanejar.

“Impossível!!”, a fugitiva quis desviar, mas a incisão repentina a afligiu no ato.

O indivíduo retornou a tocar o solo de areia com as sandálias de couro. Logo experimentou que não teve sucesso em acertar a mulher por inteiro.

De todo modo, o deslocamento a fez tombar com força.

Encarou a derrubada harpia e voltou a levantar sua arma.

Quando o fez, contemplou a asa inteira dela, presa nos três “dentes” menores no centro do fio da lâmina levemente sinuosa.

O grunhido preso da mulher seguiu a percepção de ter arrancado seu apêndice plumoso durante a rápida laceração.

Sem pressa alguma, o retirou da arma ao balançá-la ao lado, de quebra criando um impacto de choque contra a areia abaixo.

Retomou a aproximação à criatura, através de passos pesados.

“Que dor!... essa não... eu vou morrer, eu vou morrer, eu vou morrer!”

O desespero assolou a harpia. Ela tremia por completo, dominada pela agonia excruciante de ter o membro mais importante arrancado no vínculo.

Rogou para que aquele ser imponente desistisse de cumprir o que pretendia pelo semblante sanguinário.

Contudo, a resposta dos céus resumiu-se a um impiedoso esmagamento sobre suas costas, o que a afundou na areia.

— Ei, sua maldita...

Retirou a sola do dorso da sofrível e a chutou pela barriga, fazendo seu pequeno corpo girar para o alto.

Assim que fitou as estrelas inalcançáveis, encontrou o rosto escurecido do ruivo. Seus olhos negros a fuzilavam, entrefechados.

Sentiu os ossos serem partidos ao sofrer novos chutes violentos. Os órgãos esmigalhados ao ter a sandália prensada contra a boca do estômago.

Só podia cuspir sangue e agonizar. Nem a capacidade de gritar possuía mais.

O robusto se deliciava ao escutar os chiados que escapavam dos lábios rachados. A tortura perdurou até lágrimas verterem dos olhos já sem luz.

De alguma forma, aquilo interrompeu a orquestra agressiva dele. Antes de completar o pretendido, atentou à seta atravessada no braço canhoto dela.

Pensou ser o dia de sorte.

— Essa ferida perto do seu ombro. Essa perfuração... Parece que tomou um tiro ou algo assim. — Aproximou os olhos da face castigada dela ao encurvar o tronco. — Me responda. Quem foi que te fez isso aí?

Perante o questionamento áspero, Ocípete chegou a abrir a boca estremecida. A resposta não foi enunciada.

— Desembucha de uma vez, maldita!

“Só... me mate...”, não conseguia mais ir além dos próprios pensamentos.

Apenas desejava fechar as vistas e entregar a vida aos pedaços para aquela pessoa...

A tentativa posterior foi puxá-la pela franja do cabelo, quase arrancando seu couro cabeludo com tamanha força imposta no ato.

Trouxe o rosto dela até mais próximo. Seus globos matadores pareciam lhe invadir o âmago.

— Escuta aqui, sua merdinha. Se você me responder, eu prometo que te deixo viva e você vai poder fugir pra onde quiser. — Ao escutar tal negociação, a luz voltou à íris da mulher. — Me diga, quem fez isso com você por acaso foi uma garota arqueira?

Com a breve descrição feita pelo moreno, Ocípete balançou a cabeça na vertical de forma acelerada.

O que veio na sequência chegou a surpreendê-lo...

— S-sim... eram... d-duas garotas... extremamente parecidas... — murmurou rouca ao apertar as vistas doloridas. — Elas estavam... procurando uma passagem... para o subterrâneo...

Quando proferiu aquilo tudo, o riso do sanguinolento cresceu a um nível de revelar os caninos salientes.

— Sei. Viu como é simples? Agora, pode ir embora.

Forçando do fundo da alma um semblante feliz, soltou a ave, que ainda demorou alguns segundos até reconhecer sua liberdade.

Suas orações efusivas foram atendidas. Agora, deveria agarrar a nova oportunidade e sair daquele lugar.

Uniu o vigor disponível, levantou-se e começou a correr, em passos trôpegos.

A mente destruída não se atentava a nada além do objetivo anterior.

“Irmã Aelo... preciso encontrá-la... não quero morrer... não quero morrer!”

O pranto escorria pelo rosto e fluía ao ar, à medida que acelerava um pouco os passos cambaleantes. A asa restante nas costas feridas batia sem qualquer alento.

Mas antes que ela pudesse abrir maior distância, o machado rasgou seu corpo inteiro da cabeça à virilha. Sem qualquer empecilho...

Ocípete nem teve chances de enunciar suas últimas palavras. Fosse mental ou verbalmente.

— Foi mal. Eu não costumo cumprir promessas idiotas.

O murmúrio enfurecido sequer pôde alcançar os ouvidos da harpia. Desprovido de esforço, aniquilara duas delas em sequência.

Terminados os trabalhos de aquecimento, visou o novo sentido que deveria trilhar.

Retomou o arraste da arma pesada pela areia.

Criava o rastro derradeiro para o foco principal da noite.

“Agora... as próximas são vocês, suas merdinhas”, traçou, na mente insana, os alvos de um futuro não muito distante.

Agradecimentos:

Gostaria de agradecer imensamente ao jovem Mortal:

Taldo Excamosh

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