Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 34: Agentes das Sombras

Castor capotou diversas vezes e só parou quando colidiu com um dos pilares brancos.

A força da colisão foi tão grande que toda a estrutura foi dominada por rachaduras fundas. Os braços ralaram sob a manta e o rosto, além de fraturado, estava com uma bela queimadura.

Passado o momento inicial de incredulidade, o alarmado Damon comentou:

— Belo golpe...

— Gahaha!! Esperei até o melhor momento para pegá-lo de surpresa!! — Gael estendeu o punho cerrado na direção do homem. — Agora podemos acabar com sua raça, vilão!!

A euforia do rapaz se alastrou até os aliados nos arredores. Mesmo Lilith e Elaine foram contagiadas de alguma maneira, vendo que, sim; era possível afligir um superior da Corporação dos Deuses.

Esse, inclusive, encarou o próprio sangue a pingar do canto do lábio sobre a terra.

Perdeu um breve período no silêncio, dominado pela perplexidade. Então, não resistiu em deixar uma gargalhada solitária escapar.

— Vilão, é?... — Tentou se levantar, mas cambaleou graças à perda de equilíbrio. Cada movimento simples na face lhe despertava uma dor pungente. — Agora você me pegou, seu maldito! Vou trucidar todos!!

— Vem com tudo, desgraçado!!

Ao gritar de volta, o filho de Apolo entrou em posição de batalha — os punhos fechados à frente do torso.

O filho de Zeus, já acostumado com o incômodo no ombro lacerado, também se preparou.

A diferença grosseira entre as partes diminuiu. Havia uma chance. Ainda ínfima, mas havia; uma chance de virar o jogo e conquistar a vitória inesperada.

Tal resposta impactante gerou uma comoção carregada, que induziu Pollux a largar as adversárias e correr para se juntar ao irmão.

“Não podemos deixá-los vivos”, avaliou ao exalar a aura fria, apertando as facas empunhadas.

O ar condensado começou a irradiar das armas, puxando a atenção dos jovens com a Energia Vital já conhecida.

A batalha total estava prestes a estourar...

Parem.

Entretanto, uma voz pesada surgiu em meio ao vazio.

O franzino interrompeu o avanço reativo de imediato. Toda a energia reunida sobre cada releixo esvaneceu, até ser varrida pela força do vento quente.

Junto ao irmão, virou metade da postura para encontrar o emissário da ordem.

O robusto, ainda sofrendo pelo golpe na face contorcida em puro ódio, sequer resmungou ao observar a figura coberta por uma capa escura.

Os descendentes divinos reagiram perplexos, cada um a seu modo. E o que veio em seguida foi ainda pior; uma influência congelante retumbou sobre seus corpos.

Dos pés à cabeça, foram preenchidos por uma intensa tremulação.

“Que aura poderosa”, Lilith engoliu em seco, incapaz de sequer relaxar as sobrancelhas.

“Quem diabos é essa pessoa!?”, Damon rangeu os dentes.

A assustadora e indecifrável presença o fez remeter às palavras proferidas por Helena, durante a fuga do templo.

Uma gota de suor escorrer por todo o seu rosto, até cair do queixo e pingar no solo.

Embora a faceta do respectivo não pudesse ser vista, graças ao capuz que lhe cobria até o nariz, podiam pressentir uma placidez de arrepiar.

Não condizia nem um pouco com aquela aura bizarra.

Ele percorreu toda a área da pequena vila, enquanto analisava a destruição e os sacrifícios causados pelos irmãos e seus soldados skeletós.

Passou segundos arrastados na inércia. Ninguém, contudo, lograva do ímpeto necessário para tentar o afligir.

Silencioso, tomou uma decisão. Portanto, dirigiu o foco aos gêmeos e, após soltar um fraco suspiro, enunciou:

— Já confirmei. Vocês são aptos. Me acompanhem.

E os dois pareciam ter sido tão baqueados quanto os garotos da Classe Prodígio.

— Ei, espere! — Castor gritou em protesto. — E esses pirralhos!? Vamos apenas deixá-los!?

— Também sou contra partirmos dessa maneira — concordou Pollux, abaixando de leve a cabeça. — Eles são testemunhas, oculares e físicas.

O ser encoberto os encarou por debaixo do capuz, mas nenhum dos jovens pôde verificar sua fisionomia.

A mesma aflição experimentada por eles foi direcionada à dupla frustrada.

Perceberam que não precisariam de qualquer resposta. A ameaça silente foi o bastante em prol de forçá-los a aceitar a ordem, sem novas objeções.

Castor encarou os inimigos uma última vez. O olhar vingativo se misturava a um sorriso morno, encarregado de ajudá-lo a ignorar a agonia pelo rosto ferido.

Deu meia-volta e caminhou até o encapuzado, guardando a lâmina avermelhada na bainha presa à cintura.

Pollux o acompanhou. Saltava em um só pé, graças às queimaduras consideráveis no canhoto. Diferente do semelhante, nem olhou para trás.

Helena continuava sem aceitar o fato de que seus irmãos agiam daquela maneira.

Tão amedrontada em comparação aos salvadores, agarrou a barra do vestido na altura das coxas e remeteu ao instante no qual utilizou a Oração da Verdade.

“Eles realmente matariam a própria irmã?”, o cacheado não conseguia abandonar a própria estupefação. “O que eles querem com isso? O que eles ganham?”

“Se eles continuarem assim...”, a ruiva-alaranjada viu-se incapaz de completar o pensamento.

Já sabia qual seria o desfecho que aquele caminho criaria a favor — ou não — deles.

Ao perceber a expressão de pavor da mulher, Castor apenas resmungou com certo pesar.

Virou o rosto por cima do ombro e a fitou por alguns segundos, o bastante para que ela perdesse parte do temor.

Era como se, de alguma maneira, ela percebesse algo estranho nas vistas do musculoso.

— Esperem!! — gritou o filho de Zeus. — Pra onde pensam que estão indo!? Quem é esse de capuz!? O que vocês querem com tudo isso!? Respondam!

Ao correr com todas as perguntas por meio de um tom deturpado, raridade até mesmo para a filha de Hades, apontou à individualidade citada.

Seus olhos estavam arregalados. Arfava bastante, só de ter atropelado todas aquelas palavras em poucos segundos.

O homem se antecipou a fim de responder, mas acabou interrompido pelo misterioso.

Estendeu o braço à frente de seu torso, avançou dois passos de volta à vertente dos Classe Prodígio.

Então, revelou a palma escura com diversas cicatrizes e declarou:

— Não se preocupem. Em breve conhecerão a consequência para todos os seus pecados.

A voz soou como uma apunhalada não só no olimpiano, mas em todos os presentes. Mesmo os mortais delianos experimentaram o peso agudo lhes preencher o peito.

Impedido de se portar normalmente após a retruca, pensou em jogar tudo para o alto e atacá-los a fim de evitar a grande fuga.

Quando executou o primeiro movimento com a perna, a dor no corte sobre o ombro voltou a gritar. Ele sentiu o baque, junto à perfuração no braço canhoto, e manteve-se no lugar.

O trio deu a volta, livre para prosseguir.

Uma energia invisível torceu o espaço, até o surgimento de um vórtice negro defronte os homens. Sem pestanejar, ultrapassaram o círculo enigmático e desapareceram num piscar.

Criado provavelmente pela figura inidentificável, o portal se fechou após o complemento da retirada. A aura violenta foi embora na companhia deles.

Já os cinco Classe Prodígio, os mortais sobreviventes e os corpos que jaziam pela terra, permaneceram imóveis na vila de Delos.

A quietude irrompeu pelo local devastado.

A filha de Ártemis foi a primeira a ser “liberta” do congelamento corporal, caindo sentada no chão.

Lilith, por sua vez, só abaixou os braços. Suava frio. Não conseguia digerir a incompetência absoluta em derrotar os oponentes.

O filho de Apolo apertou os punhos trêmulos, enfurecido diante do resultado negativo do confronto. Escondeu o semblante ao virar o rosto aos fiéis de seu pai e sua tia, mortos brutalmente em batalha.

Era a primeira vez que se sentia daquela maneira.

E Damon, em virtude dos ferimentos latejantes, também tombou com um dos joelhos na terra.

“Essa sensação... estava muito acima”, mirou a palma livre, trêmula. E pensar que, de forma irônica, o encapuzado é quem tinha os salvado.

Consternado com toda a situação, relaxou a tensão como podia. O sangue cheio de Ícor já não escorria mais a esmo.

Pelo conjunto da obra, só os descendentes divinos podiam compartilhar o sentimento responsável por apertar seus peitos em igual intensidade.

A grande batalha em Delos chegou ao fim.

E eles foram completamente derrotados.

Findado o incêndio generalizado pela vila de Delos, o Sol voltou a se levantar no horizonte; o segundo amanhecer dos três dias de tarefa na ilha.

A grande maioria das residências envolta do pátio foram derrubadas. Os corpos dos delianos que deram a vida em confronto continuavam recolhidos pelos sobreviventes.

Familiares de algumas das vítimas podiam prestar os últimos tributos, os levando até o que restava das casas em prol de dedicar suas preces às almas.

Os membros da Corporação dos Deuses, embora abalados com a derrota absoluta na última noite, ofereciam auxílios aos residentes.

Entre eles, Helena se mostrava a mais afetada pela tragédia. E em contrapartida, se apresentava como a mais ativa nos afazeres.

Passava boa parte do tempo na correria, de um lado a outro da vila, na ajuda física e psicológica aos delianos em luto. Assim com auxiliava nos cuidados dos sobreviventes, fosse das batalhas ou do incêndio.

Diante disso, Gael acabou puxando Elaine para a acompanhar e acelerar os processos, antes do rito de passagem definitivo que precederia os enterros.

Lilith estava isolada do local movimentado. Enquanto todos se empenhavam pela reparação dos danos capitais e pessoais, ela se encontrava no litoral.

Apreciadora das ondas a quebrarem sobre as faixas de areia adiante, analisava a ferida aberta na perna destra.

“Não posso mostrar uma coisa dessas ao papai...”, entrefechou as vistas estremecidas.

Desceu à praia com uma bacia de madeira. Deixou a elevação natural envolver seus pés, se agachou e apanhou um punhado d’água.

 Conforme as caudas gêmeas dançavam com a fresca brisa do alvorecer, retorno à superfície elevada da orla. Sentou-se à beira da extensão de gesso, que construía a divisa do caminho até a vila.

Começou a lavar a perfuração com o líquido rico em sais minerais, visando sua cicatrização acelerada. Aguentou a ardência ao ranger os dentes, até contemplar uma leve melhora na ferida.

Em seguida, o cobriu com um pedaço rasgado da barra do manto roxo, finalizando os cuidados improvisados.

Levou os dedos a ajeitar os fios do cabelo vermelho a esvoaçarem sobre o rosto. Então, mirou a vastidão de água cristalina.

Dali, podia enxergar o minúsculo pedaço de terra na outra extremidade; o local de onde tinham partido. Mais próxima, havia a grande cidade flutuante.

Fechou os olhos rubis com delicadeza, a fim de experimentar o aroma singular da ressalga, acompanhado do ruído repetitivo das ondas.

Gaivotas se aventuravam sobre o tapete aquático, em busca de alimento.

De alguma maneira, o cenário trazia paz à menina, que carregava preocupações distantes da realidade atual.

— Aí ‘tá você.

Voltou a abrir os globos oculares ao escutar a voz do companheiro. Virou o rosto à vertente dele, que se aproximava a passos curtos.

Parou de andar próximo ao local onde estava sentada.

Os dois cruzaram os olhares em silêncio. As pontas do cabelo cacheado dele dançavam graciosas.

— O que ‘tá fazendo aqui, sozinha?

— Nada demais. Estava lavando a ferida na perna — Desviou o olhar. — Não quero mostrar isso ao papai...

Por meio do pesado murmúrio, quase inaudível, o garoto percebeu a bacia que ainda tinha um pouco de água do mar.

Com o canto da visão, a filha de Hades percebeu os ferimentos dele. Ambos eram cobertos por pedaços também rasgados de sua pequena manta, essa que atravessava seu torso.

— O animadão e a tímida ‘tavam ajudando a Helena e os mortais. — Voltou a mirar o horizonte. — Em breve, vamos estar prontos pra partir de volta a Olímpia.

— Entendo...

Ela contorceu as sobrancelhas, conforme tomava uma silenciosa decisão.

Ao perceber o estado pensativo dela, Damon girou de volta ao trajeto por onde veio.

— Acho melhor voltar. Pode ficar mais um pouco aqui antes de...

— Espere. — Seu chamado o fez parar e se virar, só para vê-la enrubescida. — Venha aqui...

Ela apontou o indicador para baixo.

O pedido foi compreendido de imediato pelo olimpiano, encabulado ao se aproximar e se sentar na fileira branca, ao lado dela.

Sentindo um nervosismo inexplicável lhe trazer embrulhos ao estômago, deixou as pernas pêndulas no ar.

A ctónica girou o mesmo dedo, agora pedindo para que ele se virasse. E assim o fez.

Quieto, no aguardo das próximas ações, sentiu as ataduras improvisadas sendo retiradas do ombro. O incômodo lhe percorreu por meio de um arrepio na espinha.

O coração acelerou de leve, à medida que as mãos dela o tocava com suavidade.

Só que tudo mudou quando o corte profundo recebeu uma boa quantidade d’água. Experienciou a própria alma sair e retornar à casca por meio de um choque acentuado.

— Ai! Ai! Ai! — Cravou-a, ainda corada, por cima do outro ombro. — Calma aí! Isso arde!

— Essa água com sal ajuda a cicatrizar feridas. Fica quieto e me deixe cuidar disso. — Jogou ainda mais nos outros machucados, o fazendo ranger os dentes. — E antes que me pergunte como sei disso, foi sua própria irmã que me contou.

— Atena, é? Por que ela sempre sabe de tudo? — grunhiu.

A descendente do Submundo continuou a lavar suas lacerações. Com o tempo, ele se acostumou com a água salina e agradeceu ao gradativo esvanecer da dor.

— Já que é uma ferida profunda, vai dar um jeito, mas não vai fechar toda. Agora, me deixa ver seu braço.

Estendeu a mão e encontrou certa relutância do rapaz. Mas ele ignorou o fato de estar oferecendo a próxima fonte de sofrimento temporário e seguiu com a pedida.

O processo de lavagem foi repetido, assim como os gemidos iniciais do jovem.

Mesmo a conhecendo há bastante tempo, nunca tinha passado por algo parecido. Ela era bem habilidosa com aquele tipo de zelo.

E assim permaneceram durante toda a interação, sem trocarem mais uma palavra.

Assim que ela encerrou os cuidados, pegou os pedaços de sua manta e as lavou. Retirou as manchas de sangue e, ainda úmidas, voltou a amarrá-las nas regiões avermelhadas.

De repente...

— Você ainda ‘tá se culpando, não ‘tá?

O questionamento surpresa do olimpiano a fez interromper os movimentos num sobressalto.

Passou um curto período sem dizer nada. Abaixou o olhar ao curativo da respectiva perna, prosseguindo com a finalização do trabalho ao ombro do companheiro.

Só então respondeu:

— Não consegui ajudar em muita coisa. Estou tentando melhorar para que o papai me reconhecesse. Mas parece que nem isso adianta...

Num primeiro momento, o filho de Zeus só acompanhou o desabafo.

Remeteu aos eventos da Ilha Methana e construiu um paralelo à partida de Delfos, há duas noites.

Em ambas ocasiões, identificou uma estranheza nada esclarecida acerca das ações escolhidas por ela.

Portanto, voltou um pouco mais no tempo, a primeira vez que os dois se encontraram. E viu nela um traço radiante, capaz de lhe despertar uma gama de sentimentos jamais apreciados.

— Eu acho que você tem que ser você mesma. — Cruzou os braços, a fazendo reerguer o rosto. — Meio que... Como posso dizer?... Eu me sinto bem mais confortável quando você ‘tá sorrindo.

Os olhos dela brilharam, como as joias preciosas que aparentavam ser. Os lábios se afastaram aos poucos, revelando sua surpresa.

Mas a verdadeira resposta veio depois, quando projetou um tênue sorriso no rosto. E o escondeu ao desviá-lo ao lado.

“Você foi o único que me aceitou como sou, fora a mamãe...”, desejava dizer em voz alta, mas resguardou-se à própria mente.

E o sentimento mais afável veio à tona, junto de uma memória guardada com todo o carinho no coração.

— A-ah! Eu só disse o que achava e... bom... — Deslocado, o rapaz coçou a cabeça.

Tal atitude fez a garota prender uma risadinha divertida.

— Obrigada, Damon. Estou bem melhor agora! — Transmitiu seu melhor sorriso a ele.

E isso o fez corar ligeiramente, também reagindo um pouco boquiaberto.

Soltou um pigarro e levantou-se da faixa de gesso, ao ver os ferimentos cobertos. Estendeu a mão até ela, que aceitou e ofereceu a sua.

Os dois as juntaram e o garoto lhe puxou.

Ela ainda sentia pontadas dolorosas da coxa machucada. As dificuldades em caminhar fizeram-na ser abraçada pelo parceiro, tomando partido de ajudá-la no retorno à vila de Delos.

— Eu vou vencer na próxima... — Fechou os olhos, contente com aquele desfecho.

— Sim... nós vamos.

Com os ânimos renovados, na medida dos conformes, a dupla regressou ao local onde os companheiros de corporação esperavam.

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