Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 32: O Desastre de Delos

Minutos após a partida, o grupo já tinha avançado mais de metade da trilha. As ruínas diminuíam e sobravam as árvores cerradas, indicando que se aproximavam da saída.

Lilith corria na frente. A visão noturna ativada visava evitar qualquer surpresa, por mais que não estivesse tão escuro quanto nas passagens do Templo de Astéria.

A precaução fora requisitada por Damon, que ia em frente carregando Helena nas costas. Elaine e Gael os acompanhavam nos flancos, um pouco mais recuados.

Os aromas que invadiam seu olfato ganhavam força durante a corrida. O sentimento de tensão crescia a cada metro avançado.

Só não estava pior que o estado da Classe Iniciante. A sentia tremular, enquanto a segurava abaixo das pernas e era abraçado no pescoço.

Logo a filha de Hades captou o primeiro sinal de destruição, responsável por anunciar a tragédia na vila. Os olhos rubis miraram a casa das aspirantes à ingressão na Corporação dos Deuses.

Assim que saiu da passagem de terra, conferiu o que todos iriam ver em segundos: a residência era tomada por chamas.

Helena reagiu com dose extra de apavoro, abrindo a boca e esgazeando os olhos. Sem expressar qualquer ruído, no entanto.

O clarão caloroso envolveu o quinteto, inerte à ocasião num primeiro momento. As labaredas estalavam com força, à medida que a estrutura interior ruía aos poucos, causando rangidos potentes.

Depois do baque inicial, o filho de Apolo avançou e derrubou a entrada com um soco. A pressão exercida pelo golpe fez a porta voar.

E isso ocasionou no colapso de boa parte do teto naquela região, caindo a poucos metros de onde havia passado.

Balançou o braço a fim de livrar a fumaça do campo de visão. Tampou nariz e boca, no intuito de evitar sua inalação, à procura de mulher e filhas que ali moravam.

— Pode ser que elas tenham fugido antes... — Lilith murmurou com certa expectativa.

A filha de Zeus bateu nas costas de seu irmão, pedindo para descer de suas costas. Ele atendeu e se agachou, para que ela pudesse voltar a se estabelecer na terra.

Andou a passos curtos e arrastados, até chegar perto da entrada. A lufada ardente atingiu seu rosto; não aguentaria se não estivesse tão perplexa.

Pôde enxergar o jovem dourado, paralisado a poucos metros. Ele tinha parado de se mover de repente, fazendo-a engolir em seco.

Ao perceber que ela pretendia entrar na casa, Damon tentou fazê-la parar.

— Ei... — Mas ao esticar o braço, ela já estava dentro.

Se aproximou do jovem solar, a fim de descobrir a razão de tal inércia. O suor copioso fazia sua face alva brilhar, junto a um ligeiro rubor nas bochechas.

Protegendo-se da mesma forma a fim de não inalar a aglomerada fumaça tóxica, Helena chegou às costas do companheiro.

Ultrapassou-o pela esquerda em um passo, no desejo de encarar seu semblante antes de tudo. As sobrancelhas se ergueram no momento que verificou a projeção da raiva em traços cabisbaixos.

Levada pelo misto de curiosidade e temor, girou o foco à mesma vertente daqueles olhos castanhos.

Ao cravar o chão, ela recuou de maneira inconsciente.

Quase caiu de traseiro, tamanho o pânico que a fez tremular dos pés à cabeça.

Correu rapidamente o pensamento de se ter visto aquilo teria sido a melhor decisão. Talvez não; e a resposta veio conjunto às lágrimas, que se aglomeraram no canto das vistas.

Sem aguentar mais da demora silente, o cacheado avançou ao ver a casa prestes a desmoronar. No fim, também se deparou com a cena enfadonha: os corpos de Mabelle e Isabelle estavam carbonizados.

Quiçá, a imagem diante dos olhos não fosse tão chocante, se elas não estivessem de mãos dadas. Nem na morte deixavam de executar suas preces aos deuses.

Helena demorava a digerir o fato ao alcance do olhar. Segurava-se em prol de não despejar as lágrimas, sendo apoiada por seu meio-irmão a retornar ao exterior.

O filho de Apolo veio em seguida.

Depois de respirar um pouco de ar livre, distante da estrutura que já terminava de desabar, ela murmurou:

— Eu... estou bem...

Sua voz trêmula, soando abafada graças às mãos em frente à boca, denotava o contrário das respectivas palavras.

Ainda assim, empenhou-se para demonstrar aquilo que dizia. Secou o pranto com os braços. Em curtos intervalos, chegava a soluçar.

Quando o olimpiano se disponibilizou para voltar a carregá-la, recusou. Entre inspirações potentes e expirações demoradas, buscou retomar o controle emocional.

Por mais doloroso que fosse, precisava varrer tudo de maléfico do corpo. Até que tudo fosse resolvido da melhor maneira, no palco principal do desastre...

Diferente dela, Gael não esboçava reação alguma; nem sorria como de costume. Isso trouxe leve espanto a Elaine, que também pôde sentir sua Energia Vital se atiçar dentro do corpo.

Parecia entrar em processo de ebulição. Uma condição raramente vista por ela — e por qualquer outro. Não era nada ligado a euforia ou excitação.

Era ódio puro.

Lilith ficou em silêncio durante o período de consternação daqueles que tinham visto a cena. Ela também pôde contemplar de fora, mas nada chegava perto da sensação deles, tão próximos.

— Vamos continuar — entoou Helena, depois de se reestabelecer e tomar a frente do grupo.

Com passadas determinadas, começou a avançar na direção da maior fonte de claridade provocada pelo incêndio.

Ninguém disse nada. Entretanto, o filho de Zeus se certificou de a acompanhar no encalço, no desejo de evitar que o evento com Pollux se repetisse.

As garotas optaram por segui-los num ritmo semelhante. E coube a Gael, o último a se mover, acelerar o avanço até ultrapassar a todos, inclusive a resgatada.

Não demorou a abrir distância dos demais, mas como o respectivo ninguém precisava se preocupar. A dupla experiente compreendia a atitude adotada pelo garoto, de punhos fechados e face contraída.

No avanço do tempo, ele foi o primeiro a chegar na divisória com o centro da pequena vila.

De cara, percebeu que o incêndio de larga proporção não se tratava do único fator preocupante.

As criaturas esqueléticas estavam lá, como na noite passada. Dessa vez, entretanto, a situação carregava um tom ainda mais grave.

Não enxergavam obstáculos para aniquilar qualquer ser vivo no caminho. Nenhum mortal conseguia oferecer resistência aos ataques vorazes.

Os demais apóstolos chegaram na sequência e contemplaram o mesmo cenário que o enraivecido.

Helena voltou a estremecer de corpo e alma, o apavoro crescia mais e mais.

Lilith foi rápido em sacar o punhal e o transformar na foice rubro-negra. Supriria qualquer possibilidade, desde a mais ínfima, de cometer erros.

Todo o foco pessoal foi entregue a fim de compensar a situação anterior.

Em contrapartida, a filha de Ártemis não fazia ideia de como reagir.

— O que a gente faz!? Damon!

O grito de alerta da ruiva pegou Damon inerte, boquiaberto e com as vistas paralisadas.

A garota não conseguia entender a postura do parceiro, mas isso logo foi sobrepujado pelo salto poderoso executado por Gael.

Através do assustador impulso, que chegou a criar rachaduras no solo, destruiu mais de meia dúzia dos inimigos ossificados com um só golpe.

Passado o impacto violento, ergueu as vistas afiadas e mirou os próximos alvos.

Sem pudor, avançou contra a resistência. Acabava com toda e qualquer chance de resposta dos monstros.

E à medida que se aproximava do coração do campo de batalha, encontrava com diversas vítimas, dilaceradas ou carbonizadas.

Dentre elas, reconheceu a mãe das gêmeas. Sua garganta aberta tinha originado uma poça de sangue abaixo do corpo sem cor.

Elevando sua fúria dentro do peito, o filho de Apolo rangeu os dentes num sorriso feroz e seguiu em frente.

Enquanto acabava com todos os oponentes em segundos, os demais encontravam dificuldades em prol de se inserir no contexto fervoroso.

O espetáculo de horrores continuava a todo vapor.

Flashes nada esclarecedores martelaram a cabeça do cacheado, que rangeu os dentes e sentiu uma ira fulminante crescer dentro de si.

Tal ocorrência o impulsionou a sacar a espada da bainha. O movimento pegou a ruiva de surpresa.

Sem se importar com o foco anterior, ele avançou a toda velocidade se juntando a Gael no combate aos skeletós.

Por meio de golpes poderosos, usufruía da velocidade anormal para salvar os mortais que ainda resistiam.

Uns estavam feridos gravemente; tinham membros arrancados, órgãos danificados e fraturas expostas. A grande maioria já perdia tanto a esperança quanto a fagulha da vida no olhar.

Essa era a combinação ofensiva mais poderosa que os solados adversários poderiam esperar. O massacre se tornou um novo massacre.

Os mortais ainda podiam se agarrar ao último fio de vida. A íris de cada um voltava, aos poucos, a ganhar a iluminação contra o abatimento.

Ainda que o número de perdas fosse maior comparado ao evento anterior, passavam a soltar uivos de comemoração tímidos.

Os que estavam bem, até certo ponto, recuperavam o psicológico derrotado. A retomada da esperança os induziu a se esforçarem no intuito de ajudar os companheiros próximos da morte.

Com o cenário recuperado, Lilith deixou a primeira reação do parceiro de lado e aproveitou a chacina dos skeletós para respirar fundo e tomar sua decisão.

— Vamos aproveitar que os garotos estão abrindo caminho e procurar pelos mortais nas casas!

Recebendo o chamado da ctónica, Elaine levou alguns segundos até sair da zona de perplexidade.

Acenou com a cabeça e respondeu:

— Está bem!...

— Eu vou com vocês. — Helena se antecipou à partida delas. Apertou o punho contra o peito. — Vamos salvar essas pessoas!

Elas assentiram com a cabeça e partiram, juntas, em direção às residências mais próximas.

— Vamos em casas separadas! — Lilith moveu o braço esquerdo, num gesto de indicação. — Você vem comigo!

Ambas aceitaram e, dessa forma, puderam acessar duas moradias ao mesmo tempo. A resgatada continuou com a filha de Hades, por motivos óbvios.

Entrando na que veio em frente, as duas encontraram um garotinho que chorava, grudada a uma parede.

À esquerda, o corpo de sua mãe agonizava, cheio de lacerações no abdômen, além de um profundo lanho na testa, que rasgava o rosto até o queixo.

À frente, um homem caído de bruços, sobre uma poça sangrento com diversos ossos espalhados pelo piso. Ainda sobrava a espada portada pela palma inerte, de lâmina quebradiça.

Não seria nada simples de se resolver. A cena já estava gravada à mente.

Para Lilith, que já tinha vivenciado algo semelhante há dois meses, aquilo sequer a afetava tanto. O contrário poderia ser dito à Helena.

Ela, contudo, estava ciente de que precisaria lidar com toda e qualquer circunstância sem fraquejar. Tudo para resgatar o máximo de vidas possíveis em meio ao caos.

Trocou olhares rápido com a Classe Prodígio e chegaram a um acordo silencioso.

De prontidão, atenderam a criança, intocada nos fundos do cômodo. A olimpiana a pegou no colo e, guiada pela aliada, partiu rumo à próxima casa.

Elaine fez o mesmo, trazendo dois jovens consigo. Segurava as mãos de ambos.

De duas em duas casas simultâneas, auxiliaram os sobreviventes cobertos pelas chamas.

No exterior, Damon e Gael já tinham se livrado da grande maioria dos inimigos sem nem suar.

Tentando esquecer os pensamentos desconexos de seu primeiro contato com aquele incêndio, o jovem olimpiano experimentava a ansiedade crescer.

“Onde estão?”

Cada parcela de inimigos destruídos o fazia varrer os arredores da vila. Os responsáveis por tamanha destruição deveriam estar por perto, prontos para agir a qualquer momento.

Dividindo a atenção daquela forma, contou com a finalização do jovem solar, que destruiu as últimas criaturas.

Quando a calmaria voltou a se estabelecer, apesar do constante avanço das chamas, os rapazes tiveram mais tempo para verificar o panorama final.

Nenhuma vitória poderia ser considerada. Muitas vidas tinham sido arrancadas, com boa parte das forças mortais tendo sido assassinada.

O sabor amargo pendia à sensação de uma autêntica perda. A derrota preenchia o coração de cada sobrevivente.

De costas um para o outro, os enviados divinos experimentavam o mesmo.

— Vocês nos salvaram... mais uma vez.

A quietude acabou sobreposta pela voz do homem que os atendeu no dia anterior.

O líder de Delos, Olaf, aproximou-se dos jovens manquitolando. O membro canhoto fora arrancado na altura do antebraço; a pele enrugada estava pálida.

Suava frio e tampouco conseguia controlar a respiração ofegante.

— Você... — Damon ergueu as sobrancelhas ao reencontrá-lo.

Sem aguentar mais tempo de pé, tombou e foi seguro pelo olimpiano. Esse experienciou a quentura de seu sangramento, a infestar as linhas de suas palmas.

A luz nos globos do mortal desaparecia. No estado que se identificava, sabia, assim como o próprio apóstolo, que não duraria muito mais.

— Minha mulher... e filha... estão escondidas em... casa... — falava com dificuldades, sua voz quase sumia. — Por favor... salvem quantas... puderem... é meu último... pe... di...

Sua cabeça tombou para a esquerda. Toda a rigidez natural esvaneceu.

Ele não era mais o líder daquela pequena vila, abençoada pelos Deuses do Sol e da Lua; agora, não passava de mais um corpo que jazia sobre a terra.

O cacheado franziu o cenho, enquanto repousava-o sobre o plano. Se ergueu em seguida, cerrando o punho manchado pelo líquido rubro.

Jamais deixaria de se lembrar do evento semelhante, onde segurou um jovem membro da corporação, já morto, naquela caverna.

“Muito leves...”

Virou o rosto na direção das estruturas em chamas, sem nenhuma expectativa no olhar sombreado pelas franjas.

As garotas já alcançavam a reta final das residências, dando a volta por toda a extensão encíclica. Incluindo a mulher e a filha de Olaf, foram resgatadas dezenas de vítimas do incêndio.

Algumas construções já tinham desmoronado. O círculo de fogo impedia qualquer deslocamento impensado, porém se permanecessem no grande pátio, próximos dos pilares branco, estariam seguros.

Gael encerrou a certificação de que novos skeletós não surgiriam no local. Caminhou até o novo parceiro, onde nenhum dos dois trocou alguma palavra.

Damon conferiu o estado dos sobreviventes de longe. Uns carregavam ferimentos profundos, a maioria desses desprovidos de salvação.

Por fim, todos os mortais restantes, em risco nas casas à beira do colapso, foram retirados pelas companheiras. Tudo estava sendo revertido nos conformes.

Portanto, não restava algo a mais a fazer, além de oferecerem suporte aos afetados pela devastação.

Um fraco sopro se misturou às correntes quentes irradiadas pelo fogo. As pontas de seus cabelos se agitaram.

Mesmo com toda aquela balbúrdia, o aroma da maresia conseguia alcançar o olfato do filho de Zeus.

Só que, acompanhada dela, uma fragrância “violenta” o atingiu. O odor peculiar era o mesmo do experimentado na entrada do subterrâneo.

— Esses esqueletos são bem fracos mesmo. — Um timbre grosso e cortante surgiu.

Os apóstolos se corrupiaram no puro instinto, encontrando um dos mortais remanescentes apunhalado pelas costas por uma lâmina escarlate.

Sua boca estava aberta. Nada além de um rastro de sangue escorrer sobre os lábios.

Todavia, a atenção deles fixou-se na silhueta musculosa detrás do azarado.

Segurava a arma que lhe atravessava o torso, adentrando as costas e escapando com a extremidade afiada pelo peito.

Ninguém reagiu, até o homem, envolto num manto escuro, coçar o cabelo branco-azulado. Ao mesmo tempo, puxava com lentidão o releixo.

— Tive muito cuidado pra cortar o pulmão sem acertar as costelas. Deve ser a primeira vez que consigo atravessar o corpo de uma pessoa com tanta facilidade...

Arrancou a espada, conforme sorria de modo agressivo. Um novo jato de sangue espirrou pelo espaço, até que o pobre deliano caiu na terra.

Mais um número adicionado à contagem de mortos.

— Sim, esse é o primeiro... — afirmou, deleitoso com as gotas de sangue respingadas no rosto de pele escura. — De todos que matei, nenhum foi tão fácil de perfurar assim!

Damon puxou a espada de novo. Gael cerrou os punhos revestidos pelas luvas brancas.

O primeiro ainda experimentou outro cheiro, esse um tanto semelhante com o exalado por aquele homem. Outro perigo se postava acima daquele, rente aos olhos.

O dourado acompanhou o parceiro, acabando por encontrar o indivíduo de corpo franzino, que portava uma faca prateada e outra azulada, uma em cada mão.

Seu cabelo ruivo-alaranjado parecia se misturar às chamas. E confirmou tanto as expectativas deles... quanto a das garotas, que estavam defronte ao próprio.

Lilith e Elaine se posicionaram diante dos mortais, confrontadas pelo segundo inimigo. Nada mais que o responsável por causar o conflito de mais cedo.

Além da ctónica com sua foice, a jovem lunar enfim empunhava a lâmina escondida em sua manta.

“Pollux...”, Helena, também resguardada pelas Classe Prodígio, recuou um passo baqueado.

Ao conferir a configuração que aquilo tudo tinha tomado, o olimpiano voltou a encarar o moreno de porte robusto.

— Então você deve ser o tal do Castor...

— O único de seu nome...

Devidamente apresentados, os descendentes olímpicos se prontificaram a defender as próprias posições.

O clímax da missão na Ilha de Delos havia sido alcançado.

Agradecimentos:

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Taldo Excamosh

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