Volume 2 – Arco 2
Capítulo 30: Descendente Celestial
Passado o segundo dia de treinamentos no Templo de Atenas, Daisy encontrava-se desgastada e sem muita confiança no prosseguimento.
Foi incapaz de obter melhorias significativas, portanto passou a se frustrar ainda mais a cada falha.
Talvez uma arma de grande porte, de certo, não lhe servisse o propósito.
Relutava muito em abrir mão do desejo de poder lutar como o irmão, porém se as melhorias continuassem ausentes, teria que seguir o caminho dos equipamentos diminutos.
Pensava bastante nisso enquanto tentava adormecer no seu quartinho particular.
Adjacente a ela, estava a Deusa da Sabedoria, que atualizava anotações na escrivaninha iluminada por uma vela. Vez ou outra, olhava sobre o ombro a fim de verificar a situação da criança.
Como situava-se virada à parede, de costas a sua posição, não conseguia observar a feição dominante dela. No entanto podia discernir sobre suas dificuldades para pegar no sono.
Talvez fosse hora de mudar os planos, fosse contra as preferências impostas pela menina ou não.
Apesar disso, preferia deixar o assunto intocado, ao menos naquela hora da noite.
O próximo dia seria de novas tentativas e a pequena necessitava de descanso.
No mínimo, poderia encorajá-la a dar seu melhor, como tantas vezes já fizera.
Virou-se na cadeira, o braço flexionado apoiou-se no topo do respaldo.
— Eu, sinceramente, creio que você tirará ótimos frutos disto. — A voz, ainda que quase sussurrada, assustou a menina ao irromper o silêncio do cômodo. — Esta é a primeira vez na qual passa por atribulações desde que iniciou os treinamentos. Momentos assim ocorrem naturalmente. Inclusive, seu irmão passou inúmeras vezes por isto.
Atingida pelo breve relato da mulher, Daisy apertou as delicadas mãos contra o peito, na tentativa de conter emoções indescritíveis a lhe subir o corpo.
O rosto corou. Pressionou os lábios até quase mordê-los.
Nunca na vida sentira algo do tipo. A vontade de chorar era enorme, mas segurou com todas as forças.
Experimentar a falha pela primeira vez não lhe deixava dormir em paz desde o dia anterior.
— Confio em teu potencial. Por isto, não se apresse. — Tornou a atender às anotações, murmurando uma última vez: — Tenho certeza absoluta de que superará tais adversidades.
A caçula de Zeus encolheu-se ainda mais na cama. As vistas entrefechadas encaravam a própria sombra, criada pela luz da vela acesa a alguns metros.
Aos poucos, o sono superou os demais sentimentos, criando peso sobre suas pálpebras. Sem que percebesse, sucumbiu ao cansaço mental, sem deixar as lágrimas escaparem.
Perceptiva à derrota da meia-irmã, Atena se levantou da cadeira, cuidadosa em prol de não fazer barulho.
Ajeitou a papelada, caminhou até o móvel e fitou a respiração branda da criança fora de sua consciência.
Ajeitou mechas laterais da vasta cabeleira, antes de exalar um suspiro satisfeito e deixar o quarto.
Deixou a luz acesa na cômoda adjacente, para que a pequena não ameaçasse despertar no meio da plena escuridão.
Isso seria difícil, ponderou, ciente do sono pesado que a respectiva tinha. Abriu e fechou a porta com tranquilidade.
Quando o som do trinco girou, a menina enfim estava sozinha.
Num espaço branco, as vistas serenas se abriram.
Logo a garotinha se assustou com a ausência de quaisquer detalhes por todos os lados.
Só acima estava diferente; como se fosse a própria abóbada celeste, recheada de astros cintilantes em larga escala, tomava seus globos esgazeados de tão próxima.
Perdeu segundos que se assemelhavam a horas de eternidade num ambiente onde o tempo sequer parecia existir.
Iluminada pelas esferas de plasma, a garotinha remexeu os ombros num soluço assustado. Uma influência mística começava a envolvê-la.
Desceu a linha de visão até encontrar a figura adiante. Apesar de desfigurada e preenchida de borrões enevoados por diversas regiões, podia-se reconhecer a silhueta humana.
Essa foi ratificada quando um dos braços se estendeu, a mão convidativa em direção à menina, inerte ante a sensação congelante.
Engoliu seco e, num movimento instintivo, tentou alcançar a palma aberta.
Os calafrios que lhe dominaram traziam consigo uma dose inexplicável de nostalgia.
No instante que diminuiu a distância — achava que estava diminuindo —, um clarão surgiu, como se alguma das estrelas descesse do céu falso.
No cerne da luminescência, veio outra forma. Dessa vez, os olhos da menina cintilaram na mesma intensidade, defronte a arma preta e branca coberta pela cortina alva.
To... me...
Ela levantou o rosto de novo.
É... su... a...
A voz de timbre indecifrável, de certo, soou da figura disforme. Todas as emoções cresceram a níveis inimagináveis.
E então, tudo desapareceu.
Os olhos de Daisy se arregalaram, ao passo que seu corpo levantou da cama quase num salto.
Estava assustada, ao natural, por conta da experiência inédita naquele sonho. No entanto o desespero cresceu quando não viu a silhueta da meia-irmã no quarto.
A respiração foi perdendo o equilíbrio aos poucos, suor se acumulou sobre o rosto e os batimentos cardíacos perigavam saltar da boca escancarada. Buscava o máximo de oxigênio possível.
A tentativa de retomar o controle foi por água abaixo.
Um grito estridente escapou das cordas vocais, quase a ponto de estourá-las.
Do lado de fora, Atena escutou no ato, o que lhe trouxe certa agonia ao pensar na possibilidade de a pequena ter despertado.
Correu até o quarto na velocidade do pensamento.
Depois de abrir a porta, encontrou-se com a menina em posição fetal. As mãos contorcidas contra as têmporas e um olhar de quem tinha visto uma assombração.
Tremia por inteiro, enquanto lacrimejava em profusão.
Os dentes batiam uns nos outros em virtude do terremoto corporal, conforme fracos gemidos de exaspero se proliferavam contra o silêncio.
— Me... ajude... irmão... — Os sussurros dela soavam tão trêmulos quanto o talhe. — Irmão... cadê...? Irmão...!! Socorro...!!
Sem ser vista pelos globos nebulosos da alucinada, a Deusa da Sabedoria tomou partido em se aproximar dela.
Com toda cautela possível, lhe envolveu num abraço incompleto, tentando afagá-la contra a torrente de agonia.
— Não se preocupe — mussitou rente à orelha dela. — Está tudo bem. Você não está sozinha.
Por mais alguns minutos, Daisy continuou a clamar pelo irmão que estava longe, em Delos. Afundou o rosto nos seios da mais velha e deixou as lágrimas verterem como cachoeiras.
Compadecida com as condições da semelhante, Atena exalou um fraco lamento. Fez carinho na cabeça dela, outra tentativa de apaziguar a situação.
No entanto encarava o vazio, como se a parede logo à frente a encarasse de volta. Parecia carregar algo ainda maior cravado no peito.
Algo que lhe despertava singelo sofrimento, às custas do medo enraizado no âmago daquela criança.
Conforme sentia a recuperação de sua calma, recuou a postura no intuito de observá-la no rosto.
Chorosa, Daisy procurou secar as lágrimas com as mangas longas do pijama claro.
— Vamos tomar algo para dormirmos?
Inapta a recusar o convite da deusa, levantou-se da cama e, de mãos dadas com ela, acompanhou-a à cozinha.
Lá, Atena esquentou uma xícara de leite e ofereceu à menina. Sem delongas, tomou tudo, ainda que experimentasse certa ardência na língua.
Em questão de segundos, abandonou a crise recente, retomando o restante da serenidade. Ainda soluçava graças ao choro, porém o pior tinha passado.
Antes de regressar ao cômodo solitário com a mulher, levou a mão destra ao peito.
Mais controlada, passou a relembrar da estranha experiência enquanto dormia. A figura desconhecida, a imagem da arma tomada por luz...
Tudo ainda surgia muito vívido em sua cabeça.
Chegou a pensar que tinha sido bom ter acordado, a tempo de salvar tais ocorrências antes de esvanecerem como todo devaneio...
Também cogitou contar à superior, contudo preferiu abdicar da ideia. Sendo assim, avançou de volta ao quarto.
— Desculpa, irmãzona... — Deitou-se na cama e, sem soltar a mão da deidade, forçou um fraco sorriso. — Obrigada por vir.
Atena devolveu na mesma feição.
— Não se preocupe. Tente descansar. Ficarei contigo.
Daisy assentiu, antes de conectar os cílios e relaxar no travesseiro.
Não demorou a ser puxada de volta pelo sono, velocidade espantosa às concepções da sábia.
Ainda assim, por garantia, permaneceu ao lado dela por mais tempo que o habitual.
“Medo de ficar sozinha...”, ponderou consigo, desfazendo a elevação dos lábios.
Ao traduzir a monofobia encarnada na criança, tornou a suspirar, dessa vez com peso extra no arcabouço.
— Quantos problemas isto deixou — bufou.
Além de si, somente as paredes puderam escutar.
O amanhecer chegou e, com ele, o novo dia de treinamentos em Atenas para a aspirante a Apóstola de Classe Iniciante.
Diferente das sessões anteriores, Daisy despertou animada. Tomou seu café da manhã e quase implorou à anfitriã para que dessem início aos afazeres.
Por livre e espontânea pressão, Atena conduziu-a ao jardim do templo. Sem desistir da espada de médio porte, caminhou a passos curtos até o centro do relvado.
Após chegar no ponto específico, ergueu a faceta e inspirou todo o ar que os pulmões suportavam.
Fechou os olhos e buscou recordar aquele instante no meio da noite.
Desejava focar na imagem visualizada da arma estranha, a qual lhe pertencia segundo a voz desconhecida.
Poderia ser pura bobeira, um sonho aleatório, porém decidiu-se a acreditar nas coisas boas conduzidas por ele.
Não era hora de duvidar ou lamentar.
Deveria se esforçar ao máximo, em prol de alcançar o patamar atual do amado irmão e cumprir com sua promessa e desejo; ajudá-lo como uma integrante da Corporação dos Deuses.
Reuniu a Energia Vital recomposta, concentrou-se ao limite.
Conduziu o fluxo da Autoridade Elementar do Relâmpago em tempo recorde à chapa metálica, fator responsável por surpreender a tutora, sentada na entrada do recinto.
Repetiu os processos antecessores; levantou a arma acima da cabeça, focou o solo e desferiu o golpe descendente.
Dessa vez, não fincou a extremidade da lâmina no plano, ainda que a proliferação dos raios tivesse dado errado outra vez.
Já conseguia controlar a força e o peso com maior sucesso. E mesmo após falhar, não se deixou abater e já passou a se preparar a fim de repetir o movimento.
“Parece que não preciso me preocupar em demasia”, Atena voltou a resfolegar no assento, contagiada ante a nova dose de ânimo trazida pela caçula.
Tal sentimento tornou-se tão intenso que, apesar de perceber a aproximação de duas presenças familiares por trás, sequer lhes ofereceu atenção.
— Estamos de volta, minha mãe.
As vozes femininas de timbre idêntico encontraram tanto os ouvidos quanto a mente da sábia.
O sorriso voltou a brotar em sua face.
— Bem-vindas de volta, minhas filhas. Chegaram em melhor momento — disse sem precisar encará-las, logo atrás do assento branco.
Naquele instante, nada mais entreteria a deusa, senão os esforços demonstrados pela inexperiente descendente celestial.
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