Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 28: Impasse

Mantendo a mulher imóvel com o braço a contornar seu pescoço, o encapuzado apontou a uma pequena faca na direção do rosto dela.

Sem boas opções diante da ameaça, Damon também se tornou inerte. A mão de domínio continuava ao redor da empunhadura nas costas, mas a execução do movimento não prosseguiu.

— Tsc, tsc. Eu não tentaria se fosse você — ameaçou, seu timbre soava frio. — Esse é o preço pago pela intromissão. Mas você ainda pode salvá-la. Pense bem.

Com o aviso sereno do inimigo, o olimpiano relaxou a tensão no membro esticado. Assim, deixou a espada longe do alcance.

“Quem é esse? Castor? Pollux?”, como se isso importasse de alguma forma, o rapaz foi invadido por um frenesi de divagações. “Isso é ruim... não devia ter deixado ela vir sozinha.”

Amaldiçoou o próprio erro, apto a custar toda uma missão. E, acima de tudo, a vida de sua irmã.

O olfato aguçado conseguia discernir a determinação para matar do oponente. Consciente das circunstâncias, tentou identificar a expressão dele, escondida parcialmente abaixo do capuz.

De todo modo, não podia agir com a vida da Classe Iniciante em risco.

Em virtude disso, buscou uma abordagem que pouco tinha hábito — e habilidade — em utilizar:

— Sei que é um dos membros de alto escalão da Corporação dos Deuses. — Suas palavras o fizeram tremer de leve. — Por que invocou aqueles skeletós pra atacar a cidade? E por que prenderam Helena nesse templo?

O caucasiano estreitou as sobrancelhas escondidas, mas não ficou tão surpreso com o questionamento.

Num primeiro instante houve uma ausência de resposta. No mínimo, confirmou a provável identidade do respectivo.

E talvez a responsabilidade do ataque aos mortais na vila se ratificava, ao mesmo tempo...

“Tenho que conseguir qualquer coisa antes de salvar ela”, fechou os punhos, no objetivo de controlar as emoções.

Não podia deixar a ansiedade transparecer.

“Depois me desculpo contigo, Helena.”

Sabia que qualquer deslocamento errôneo custaria caro. O estado defensivo ao qual era induzido o incomodava.

— Vocês são realmente astutos — sibilou o encapuzado, lhe puxando a atenção de súbito. — Mas não pense que está na posição de interrogador.

Pressionou ainda mais a garganta da ruiva, a sufocando aos poucos.

A aflição do cacheado se agravou. O nervosismo não podia mais ser sobreposto, revelado pela amostra dos dentes unidos e as sobrancelhas contraídas.

Nesse instante, o franzino percebeu algo:

— Prestando mais atenção, descobri que conheço seu rosto. Você é o filho mais novo do Rei dos Deuses, não?

Damon abaixou um pouco a cabeça. Tentou ser cauteloso.

— E se eu for?

Mas sua personalidade não o deixava ser mais cauteloso.

O celeste retraiu parte da força, permitindo que Helena tomasse ar novamente.

Sua atitude desesperada em puxar todo o oxigênio possível pela boca despertou uma nova onda de angústia sobre o apóstolo.

Apesar dos pesares, aquilo o tranquilizou. Pôde ver o irmão da jovem relaxar o membro e retirar a faca do rosto dela, ainda que continuasse apontada em sua direção.

— Vou ser sincero. Se possível, preferia que vocês dois continuassem vivos. Mas é inegável que fomos descobertos em um momento nada oportuno. Isso pode nos atrapalhar.

“Vai, continua se entregando”, o filho de Zeus sustentou a quietude, os lábios pressionavam um ao outro.

Tinha entrado num rumo interessante. As primeiras confissões vindas da voz frígida o fizeram segurar a engolida em seco que a garganta pedia.

— Antes, me responda uma pergunta. — Apontou a lâmina levemente curva à direção do rapaz. — Onde estão os outros três? Eu lancei uma estaca de gelo e você subiu, mas até agora nenhum deles apareceram.

O Classe Prodígio evitou responder a princípio.

Lembrou-se do ataque congelante que pegou todos de surpresa. E viu nesse momento a oportunidade perfeita no intuito de ludibriá-lo.

Uma mentira qualquer não cairia contra alguém tão seguro de si. Fazê-lo se irritar acabaria com a vida de Helena, de vez.

Ele fechou os olhos com vagarosidade. Respirou fundo, jogando todo o temor para fora e deixando-o se esvair pelo ar solto da boca.

Muitas possibilidades corriam por sua cabeça e escolher era complicado num instante como aquele.

Reconhecia a pouca capacidade pensante que tinha. Não lograva de nenhum plano mirabolante a fim de contornar a crise.

O encapuzado permaneceu na expectativa. Estava pronto para executar o que estava determinado, a depender da resposta oferecida.

Voltou a apertar a empunhadura da faca. Aproximou-a da face da irmã outra vez.

Foi quando algo surgiu de súbito.

Uma caixa surpresa aberta num solavanco.

Os globos noturnos, alheios ao semblante inexpressivo, miraram os esmeraldinos de Helena.

Num falso aceno de cabeça, pôde apaziguar parcela do desespero acumulado por ela.

E falou, direto e reto:

— Eles morreram.

A voz saiu ainda mais seca do que ele pretendia. E isso não ofereceu espaço para que o homem captasse qualquer tom de falsidade em suas palavras.

Damon aproveitou o baque captado por seu olfato e seguiu além:

— Pra levar toda a glória por concluir a missão, que era resgatar a Helena — encarou a jovem de soslaio. — Pra subir na escadaria dos Apóstolos dos Deuses eu matei eles no templo.

Mesmo a Classe Iniciante reagiu com abalo, separando os lábios sem proferir qualquer ruído.

“Acho que fui bem ousado...”, Damon semicerrou as vistas. “Vamos, fala alguma coisa.”

— Como e quando você os matou? — indagou o sereno.

Foi uma das poucas respostas — que na verdade era uma pergunta — que o rapaz não tinha antecipado.

Ligeiramente deslocado, ele disse a primeira coisa que veio:

— No caminho de volta, quando estavam distraídos. Matei todos por trás. — Apontou o polegar à espada nas costas.

Passado mais um átimo de silêncio, o outro sacudiu a irmã.

— Ei. Isso é verdade?

Mais uma resposta inesperada.

Essa, no entanto, deveria ser tirada de letra. Não à toa tinha delegado uma rápida olhadela à ruiva, enquanto contava sua mentira.

— S-sim — gaguejou. — Por isso... eu corri dele...

Dominada pela angústia, foi encarada pelas esferas oculares verdes abaixo da toca caída. A ponta da faca tocou de novo sua pele, a arrepiando como se fosse o contato de um pedaço de gelo.

O homem coberto pelo manto escuro aguardou por poucos segundos. Não deixava de encarar o semblante circunspecto do filho de Zeus, que considerava sua tentativa um sucesso.

— E pensar que faria algo assim por status. Realmente, parece ter puxado e muito nosso pai... — Afrouxou o braço pela segunda vez. — Acho que podemos negociar.

Enquanto ela retomava o fôlego, Damon estremeceu os beiços em prol de não se mostrar vitorioso.

O risco valeu a pena, mas ainda faltava muito.

Agora, toda a carga do momento iria para a “negociação”.

Na espera pelas próximas palavras do adversário acalmado, absorveu uma pequena abertura para reagir com sua arma, no momento exato.

Caso algo saísse do controle, sentia que seria capaz de ser rápido o suficiente e surpreender o franzino.

Sua guarda tinha abaixado, assim como a faca sempre apontada à garota.

“Fica calmo”, pensou consigo, pois, via a melhor chance surgir ante as vistas.

Ele mal piscava. Por pouco, uma gota de suor não caía pelo lado de seu rosto.

Quando o ludibriado parecia prestes a iniciar a nova linha de diálogo...

— Damon!? — A voz surgiu da abertura no pedestal.

O tempo parecia ter congelado.

Lilith veio da escadaria, fitando apenas o companheiro que, por algum motivo, esgazeou as vistas ao encontrá-la.

Helena e seu ameaçador viraram o rosto, fora do alcance da visão dela...

— Aconteceu alguma coisa?...

Com alguns arranhões no rosto, completou a travessia dos degraus escuros. Isso a levou até o meão da distância separadora do parceiro... e do inimigo, logo atrás de si.

Aquilo o deixou imóvel, ainda com o braço envolto no pescoço da Classe Iniciante.

O tabuleiro fora pego e revirado de cabeça para baixo, numa questão de segundos.

Damon nem poderia reclamar da filha de Hades, já que a culpa estava longe de ser dela. Ao ter se arriscado daquela maneira, tinha posto a si mesmo à mercê da sorte.

— Ei. Perdeu a língua, por acaso? Cadê a garota? — Parou na frente dele, tentando compreender a razão por sua taciturnidade excessiva.

O pior cenário possível encontrou seu estopim.

Sem dizer nada a respeito, o franzino jogou a inércia para escanteio e voltou a sufocar sua irmã. Ainda tirou qualquer capacidade de movimento dela, quase a levantando do solo relvado.

Quando experimentou a traqueia ser esmagada pelo membro fino do semelhante, esbugalhou os globos oculares, que formaram rastros de lágrimas em seus cantos.

O filho de Zeus voltou a erguer a atenção. Antes que fosse tarde, tentou puxar a espada e se aproveitar de qualquer resquício do cenário construído anteriormente.

Lilith se assustou e deu um pequeno salto para trás. Foi só então que virou o foco, enfim se deparando com o real contexto.

As esferas rubis afunilaram, assim que enxergou o encapuzado ameaçar a vida da resgatada sem ar.

Ciente de que tudo tinha sido uma mentira — e pior, ele tinha acreditado —, dessa vez era certeza; iria matá-la sem hesitação.

Damon reuniu Energia Vital o mais rápido que podia. No mínimo, buscaria chegar à posição do inimigo, o que levaria singelos segundos.

Tinha que impedir o golpe fatal, ao ver a faca na outra mão já prestes a viajar ao pescoço dela.

Incapaz de reagir, a ctónica quase chegou a tropeçar nas próprias pernas.

“Rápido!”, o olimpiano preparou-se para disparar, os olhos já emitindo um fulgor azul-escuro.

Foi quando a terra estremeceu, interrompendo todas as atitudes possíveis.

Rachaduras nasceram por toda a extensão do solo.

O homem experimentou a pressão vindo de baixo dos pés, então pensou em saltar junto com a irmã antes de perfurá-la a garganta.

Antes de ter essa oportunidade, contudo uma voz abafada...

— ENTRADAAAA!!! — Tornou-se clara como o sol, levantando escombros. — TRIUNFAAAAAL!!!!

Gael surgiu do subsolo.

Através de um soco potente, criou uma cratera na região de pedras brancas. Fragmentos consideráveis subiram na direção da dupla.

Isso impediu o salto perfeito do encapuzado, que estalou a língua e precisou se esforçar em prol de manter o equilíbrio sem soltar a apóstola.

Evitou os destroços na sequência, mas logo foi encarado de frente pelo rosto eufórico do filho de Apolo.

“Que cara insano”, Damon, atônito, contemplou a cena sem mais pensar em disparar no desespero.

Dessa vez, os lábios abriram um sorriso. Depois de perder quase tudo, o jogo parecia voltar a pender a seu favor.

O encapuzado não se deixou levar pelo momento e buscou empalar Helena da mesma maneira.

Foi pego de supetão pela terceira vez consecutiva, quando uma influência sombria o mirou na retaguarda.

Camuflada no breu, Elaine saltou da cratera. A mão direita estava próxima de pegar a lâmina envolta em sua manta, ainda que bastante trêmula.

Cercado pelos descendentes do Sol e da Lua, o dilema entre afligir a irmã ou contra-atacá-los o impediu de executar a melhor escolha.

Não importava o quão a guarda dele estava aberta ou quão insegura a garota mostrava estar. Era incapaz de sair vitorioso da tal conjuntura.

“Fui pego”, olhou desinteressadamente para o lado.

Antecipando qualquer ação do inimigo e dos aliados, um estampido alheio a um cintilar cerúleo surgiu e desapareceu em milissegundos.

O rastro do raio ultrapassou a todos, mais rápido que o pensamento.

Ninguém pôde ver direito o que ocorreu, mas o homem coberto pela capa negra experimentou o braço ficar mais leve.

Percebeu a ausência da jovem envolta em seu membro no instante seguinte, virando o rosto com os demais apóstolos.

Sem coragem o suficiente em prol de seguir após aquilo, a filha de Ártemis se afastou, ficando próxima do calor exalado pela Autoridade Elementar do Relâmpago a irradiar pelo espaço...

Velocidade Deus...

Damon segurava a irmã arfante nos braços, trazendo todos os olhares para si.

Raios azulados estalavam ao redor do corpo. As esferas que remetiam ao céu noturno emitiam um brilho intenso.

“Uma Bênção” ponderou o encurralado. Podia sentir as descargas elétricas tênues alcançarem sua pele.

A pressão do ímpeto fez seu capuz ser arrancado do rosto, enfim o revelando.

O jovem solar abriu um sorriso feroz ao acompanhar a sequência surreal.

Enfim obtinha a confirmação sobre o latente potencial do olimpiano, construída aos poucos através das ocorrências no Templo de Astéria.

Elaine o encarava de esguelha, boquiaberta.

Lilith era a única sem reações, além dos supercílios arriados.

Cheia de culpa por quase ter comprometido com a vida da resgatada, foi tomada por alívio ao enxergá-la segura nos braços do companheiro.

Mas nem tudo eram flores.

Todos notaram o desaparecimento da faca portada até então pelo rapaz de cabelo ruivo-alaranjado, idêntico ao da Classe Iniciante.

O último a perceber foi Damon, que escutou um gemido vir da própria, contra seu peito. A lâmina estava fincada no ombro esquerdo dela, já derramando filetes de sangue até o braço.

— Ei, ‘cê tá bem!?

Ao escutar o questionamento apressado do garoto, suas vistas trêmulas se abriram. Acenou com a cabeça e forçou um sorriso no rosto que se tornava pálido.

Gael fechou os palmos e mirou a batalha, contudo os efeitos da queda da noite já começavam a lhe afetar.

Em vista disso, Lilith tentou varrer os pensamentos culposos e se levantou o mais rápido possível. Garantida a segurança do objetivo, restava derrotar o adversário em total desvantagem.

Coube às garotas voltarem a se preparar cada uma com sua respectiva arma. Garantida a segurança de Helena, restava derrotar o inimigo adiante, porém alguns problemas ainda deveriam ser enfrentados em prol da vitória.

Ao enxergar o cenário desfavorável, ele soltou um lamento:

— Já consegui tempo suficiente.

Sem interesse algum na questão, realizou um salto mortal para trás. Foi alto o suficiente para deixar aqueles que estavam em sua retaguarda para trás.

Aterrissou antes das estátuas em homenagem a Apolo e Ártemis.

— Espere... Pollux... — O murmúrio sofrível de Helena ia além da dor corporal.

O franzino girou pela metade, a observando sobre o ombro.

Ainda buscou alcançá-lo ao esticar o braço, a mão e os dedos. Um desejo que não poderia ser concretizado.

Pollux franziu o cenho. Havia alguma melancolia no olhar, enquanto fitava a irmã tentando o tatear, mesmo estando tão distante.

Agora é tarde... — murmurou para si mesmo, sem deixar os outros escutarem.

Sua curta frase de despedida, de alguma maneira, foi compreendida por Helena.

Não foi capaz de evitar o surgimento de lágrimas a verterem sobre as bochechas rubras, assim que o rapaz deu a volta e avançou até desaparecer em meio aos arvoredos.

Lilith saltou sobre a passagem aberta, no intuito de perseguir o inimigo. A decisão acabou brecada por Damon, que estendeu o braço canhoto à frente dela.

Desejou reclamar com o parceiro, porém a troca de olhares cabisbaixa arrancou toda a sua vontade.

Abaixo o rosto em silêncio, apertou o botão central no cabo da foice e o transformou no pequeno punhal.

Dominada pela frustração, rangeu os dentes, os fios escarlates cobrindo parcialmente as vistas pesadas.

Gael e Elaine se reaproximaram dos dois, podendo reconhecer o clima pesado que os envolvia.

Naquele instante, o Sol já se encontrava ofuscado pelo horizonte. As primeiras estrelas da noite despontavam no céu sem nuvens, pulsando das mais variadas formas.

Mesmo assim, aquele dia ainda estava longe de terminar.

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