Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 19: Mais Um Começo

Um cenário branco surgiu diante dos olhos. O jovem de cabelo escuro percebeu estar, de novo, no lugar sem terra ou céu, flutuando sem rumo ou propósito.

Dado o cansaço do corpo, parecia ter acordado de um longo sono.

Ao se habituar à visão da paisagem clara que compunha tudo a sua volta, deparou-se com a mesma silhueta estranha das últimas experiências.

No entanto, dessa vez sua forma podia ser mais bem definida.

Pelos olhos do rapaz, tratava-se de uma mulher alta. Por estar de costas, os longos fios eram identificados até a altura das costas.

Ele não conseguia determinar com maior exatidão a figura desconhecida. Contudo sabia que não poderia alcançá-la.

E mesmo ciente dessa impossibilidade, sempre era atraído por um sentimento enigmático que o fazia esticar a mão.

Na esperança de avançar pelo espaço vazio e tocá-la, esforçava-se ao limite.

Nada ocorria.

A forma ganhava cada vez mais distância, o deixando sem opções junto a um mar de dúvidas.

Desejava saber sua identidade. Ansiava pelo motivo de tamanho apego, incumbido de empurrá-lo adiante.  

Tudo que mais queria era a resposta para os sonhos sem cor e vida, onde ela sempre se fazia presente.

Na maioria desses, permanecia por bom tempo em divagações, conforme tentava encurtar a proximidade aos poucos, todas sem sucesso.

Entretanto, naquele instante específico, a cena pura foi obstruída por um borrão negro.

O cenário albino foi gradativamente contaminado pelas trevas. A figura instigante foi apagada.

No lugar dela, uma sombra sorridente se esgueirou, na incitação de um arrepiante sentido de ameaça a seu corpo imóvel.

É culpa deles...

Quando a voz agonizante invadiu os ouvidos, os olhos arregalaram. Nesse ínterim, tentou se afastar da sombra.

A medonha frase se repetiu diversas vezes, se proliferava em ecos imparáveis. O jovem levou as mãos à cabeça na busca por erradicar aquele instante tormentoso.

Tentou gritar para que fosse interrompida, mas a voz recusava-se a sair.

Só lhe restou fechar os olhos em meio ao desespero.

E como se as preces fossem atendidas...

— Irmão!? — O grito de Daisy fez o jovem abrir os olhos de forma abrupta, enquanto deitado em sua cama.

— Gah!

Numa reação espontânea, ele ergueu o torso. O impulso repentino fez a criança dar um salto para trás, junto a um grito agudo.

O susto perante o despertar conturbado do rapaz ainda a estremeceu dos pés à cabeça.

Por outro lado, ele arquejava com força, transpirando frio e agarrando o lençol abaixo das pernas. Lentamente retomou o fôlego, até reconhecer o cômodo do próprio quarto.

Estava de volta ao Monte Olimpo.

Reestabelecida a placidez, afrouxou os punhos e livrou o tecido abarrotado do ímpeto desmedido.

Através de uma feição contorcida, ainda em pânico, a garotinha caiu com a traseira sobre a outra cama.

Trocou olhares com ele assim que seu rosto se virou. Permaneceram quietos durante um período arrastado.

— Daisy... eu ‘tava... falando sozinho enquanto dormia, de novo?

Ele quebrou o gelo, chegando a desviar a atenção com embaraço.

— E-estava... se debatendo... — A pausa feita para engolir em seco constatava bem o tormento de ter observado a cena. — Parecia... um pesadelo...

Aquele complemento podia ser entendido tanto pela situação dele quanto a dela.

Com o clima nada leve no recinto, o cacheado permaneceu silente. O foco já tinha ido à janela ao lado; sem vento, as cortinas translúcidas apresentavam-se inerte nas alas da abertura.

Já estava de manhã. Ao menos, era o que indicava o céu tomado por um ciano resplandecente. Feixes luminosas adentravam o cômodo, o que destacava pequenas partículas de poeira flutuando em espiral.

Com o tempo, Daisy se recuperou do baque repentino e voltou a se aproximar. Queria ir além e verificar se estava tudo certo com o semelhante.

“Isso ‘tá cada vez mais frequente”, ele encarou as mãos trêmulas abaixo da linha de visão. “Dois meses...”

Monótonos dois meses tinham se passado, desde a tarefa na Ilha Methana, divagou. E as imagens daquela experiência continuavam mais frescas do que nunca nas memórias.

Tentou mudar a direção dos pensamentos carregados, mas não era tão simples quanto parecia. Estava gravado em todos os membros de seu corpo.

Os gritos de esperneio, a chuva, o sangue...

— Irmão?...

O murmúrio preocupado de Daisy trouxe de volta seu olhar.

No fim, ela parecia ser a única capaz de arrancá-lo daquele turbilhão de martírio.

— Eu ‘tô bem. Só preciso lavar o rosto.

Depois de forçar um sorriso, levantou-se do colchão e caminhou para fora do quarto.

Embora o maior desejo fosse poupá-la das preocupações, a curiosidade da menina sempre prevaleceria. Talvez pudesse evitar seus questionamentos acerca dos pesadelos, piores a cada dia. Mas seria difícil escapar de sua Empatia.

Por isso, conforme era acompanhado no ritmo das passadas sonolentas, tentava evitar o máximo de contato com ela. Fosse ocular ou físico.

Algo que, por parte dela, era o contrário. Sempre estava sedenta a esticar a mão e tocá-lo no braço. No entanto, na reta de conclusão mudava de ideia e escolhia deixá-lo espairecer por conta.

Caso sempre fosse ao fim com aquilo, a confiança para com ele sofreria risco de ser perdida. Não desejava ser invasiva àquele ponto, também.

Empenhou-se a se contentar com o que tinha por ora.

Foi quando se lembrou de algo importante.

— Ah, é verdade! — exclamou como se uma lâmpada acendesse em sua cabeça.

— O que foi? — Virou o rosto, curioso.

— A irmãzona! Ontem ela me disse que vinha falar com você hoje! — Ergueu o indicador direito enquanto explicava, na tentativa de imitá-la. — Ela não me disse o que era!

— Entendi.

Notando a fraqueza na voz dele, voltou a reduzir os ânimos.

O jovem lavou o rosto e saiu do recinto, sendo recebido pelo dia ensolarado no pátio encíclico.

De alguma forma, aquilo recarregou suas energias na hora, o permitindo respirar com maior leveza.

Em nova percepção a isso, a irmãzinha se juntou ao seu lado e desenhou um leve sorriso no rosto.

Sem entender muito bem o motivo daquilo, ele inclinou a cabeça um pouco acima do ombro.

— Aliás, como estão seus treinamentos?

Pega de surpresa pela pergunta, ela abriu os braços.

— A irmãzona disse que estou quase pronta pra me tornar uma Apóstola! Se eu continuar dando meu melhor, vou poder me juntar a você, irmão!

— Ah, é mesmo? Estou ansioso por isso.

— Eu também.

Intrometendo-se na conversa entre os dois, a voz madura chamou a atenção de ambos até a passagem para as escadas prateadas.

Caminhando com partes de sua característica armadura de ouro, a Deusa da Sabedoria exalava imponência no ambiente.

Seu cabelo roxo-escuro, preso num volumoso rabo de cavalo, parecia brilhar com o reflexo da luz.

— Irmãzona!!

Eufórica ao encontrar o sorriso sereno da deidade, Daisy foi o contrário total de Damon, que apenas entrefechou os olhos ao deparar-se com o olhar dela.

Recebida de formas opostas, a mulher não pestanejou em avançar pelo centro do saguão semiaberto.

— Não me encare desta forma. Acredito que Daisy tenha lhe informado sobre minha vinda, correto?

— Pois é — resmungou ao pegar uma maçã na mesa ao lado e a morder com força. — Então, fala aí... o que você queria falar comigo?

— Sobre o que mais poderia ser?

A retruca convencida interrompeu uma das mordidas na fruta, puxando um olhar afiado do jovem que, de maneira gradativa, elevou as sobrancelhas.

Sem compreender a reação dele, a caçula sustentou a faceta dúbia. Em seguida, conduziu a atenção à sábia divindade, aguardando o complemento do retorno — ao menos, para ela.

Todavia, a soberana desapareceu com o riso na face descontraída. A mudança repentina deliberou igual ansiedade aos jovens, para ser acobertada pela revelação direta:

— Reclamo para que venha comigo, imediatamente. Tenho uma incumbência inédita para ti.

Ao receber a aguardada informação, Damon preferiu se resguardar. A quietude retumbou por todo o átrio, até os dentes voltarem a arrancar um novo pedaço da maçã.

Sob olhares de expectativa das companhias, finalizou a degustação e jogou o miolo sobre a balaustrada. Com o antebraço, limpou a boca.

Só então deu seu parecer, com desinteresse:

— Não ‘tô afim. Chama outra pessoa.

Atena não mudou a postura. Os cílios quase se conectaram.

— Vejo bem o motivo de ter me evitado durante estes dois meses. — Estreitou as sobrancelhas, percebendo as ínfimas entrelinhas por trás daquela decisão.

Sem tanta surpresa, apesar das expectativas, considerou se aproveitar da forte lábia a fim de convencê-lo do contrário.

De certo modo, a tranquilidade irradiada por sua reação já parecia tê-lo surpreendido um pouco.

Agora, deveria pegá-lo no ponto mais acessível em prol de contornar o imbróglio a seu favor.

— Vossa dupla, Lilith, fora requisitada e encontra-se a caminho. Silver, que os acompanhou à Methana, não poderá comparecer. — A resposta rápida quebrou qualquer plano de protesto do rapaz. — Você deve vir, Damon. É uma ordem. Não dificulte as coisas.

À parte dos diálogos, Daisy podia notar a vontade reprimida do irmão em aceitar a tarefa.

Incapaz de lidar com o poder daquelas palavras, ele bufou, descontente.

Só de ter puxado sua companheira “oficial”, já estava fadado a ir por obrigação. A faceta determinada se desfez, cedendo à pressão feita pela veterana.

Por mais que fraquejar não fosse uma opção, preferiu não lidar com as consequências que tal atitude teria a capacidade de gerar.

Não era apenas o bem-estar dele que estava em jogo.

Esse foi o fator de maior peso na decisão para seguir o outro caminho.

— Esse velhote é um desgraçado mesmo — sibilou entre os dentes. — Vai, fala logo o que ele quer...

— Não, Damon. Está equivocado. — Atena o corrigiu. — Nosso pai nada tem a ver com isto. Desta vez, será uma tarefa minha em conjunto a outras duas divindades.

Perante a explicação, o apóstolo sequer percebeu a própria reação boquiaberta.

Cada íris verde-esmeralda da deidade parecia brilhar sob a gélida sombra criada na região superior da face.

A absoluta superioridade dela, alheia à quebra de expectativa na sentença anterior, o deixou intrigado o suficiente para que um tênue sorriso desafiador fosse arrancado.

— Que seja, então.

Tendo a nova resposta favorável, a aura instigante da deusa pôde ser reprimida. O semblante remansado pôde ser reprojetado, à medida que gesticulava em positivo para com ele.

Pouco após a discussão, a Deusa da Sabedoria desceu com seus dois caçulas.

Pelas escadarias, acessaram um dos primeiros pisos olímpicos, que fazia fronteira com o aglomerado de nuvens na cercania da montanha em sua metade.

Chegando ao local, se depararam com as tranças gêmeas características. Elas dançavam com graça no espaço, atingidas de leve pela corrente de ar fresca que percorria todo o monte.

Debruçada sobre o guarda-corpo de gesso e mármore, a garota observava a extensão azulada que cobria todo o continente e o manto aquático em sua prossecução.

— Lilizinha!

Ao ser chamada por Daisy, a filha de Hades virou metade do torso. No instante que os olhares se conectaram, acenou com a mão destra.

Em contrapartida à pequena animada, Damon aproximou-se no esboço da frustração. Mesmo instigado para participar da tarefa ainda sob confidência, a ficha da persuasão sofrida pela deusa já tinha caído.

— Oi, sumido — ela indagou, terminando de se corrupiar.

— E aí. — Encarou-a do rosto à cintura. — Seu cabelo ‘tá maior.

— Sim. — Ela abriu um sorriso, também corando nas bochechas. — Eu deixei crescer um pouco mais. Gostou?

— É...

Notando como ele estava cabisbaixo, a ruiva, após girar sobre o próprio eixo para lhe mostrar as caudas gêmeas mais longas, indagou:

— Aconteceu alguma coisa?

— Ah, não é nada. — Parou de caminhar e olhou à deidade. — Eu só não queria estar aqui...

A feição dela emburrou na hora.

— Ficamos dois meses sem nos vermos e você diz isso? — Fuzilou-o através do olhar semicerrado.

— Não é disso que eu ‘tô... — Desistiu de explicar ao coçar a parte traseira da cabeça. — Enfim. Só nós dois, dessa vez?

— Como antecipado, duas outras divindades mediarão esta tarefa, junto a mim. Portanto, desta vez, outra dupla oriunda da Classe Prodígio os acompanhará na presente tarefa.

Sem terem muito a dizer, os dois requisitados encontraram-se de novo, para depois desviarem o olhar.

Nesse momento, Daisy era quem se pendurava na balaustrada, a fim de observar os grandiosos corcéis no extremo horizonte.

— Aliás... — Lilith tentou puxar assunto. — Por que ficou tanto tempo sem aparecer?

— Sem vontade.

— Que tipo de resposta é essa?...

Com a tentativa de diálogo indo por água abaixo, tendo ambos olhando para alas opostas do salão, a face da jovem enrubesceu.

Perceptiva à tensão ocasionada pelo impasse da dupla, a euforia de Daisy esvaneceu outra vez. Podia, só de olhá-los, sentir as parcas correntes de emoções deturpadas vindas deles.

Mesmo a sábia divindade notava o desconforto na postura dos dois, principalmente no que concernia aos sentimentos carregados desde a tarefa da Ilha Methana.

Antes que pudesse interferir em algo a favor deles, sons intercalados ecoaram das escadarias.

— Acredito que tenham chegado.

Com a atenção dos companheiros retomada, as quatro figuras da vez surgiram nos últimos degraus para a entrada.

Eram dois adultos e dois jovens, como eles. A perplexidade os apanhou de cara, assim que constataram as semelhanças fisionômicas entre duas duplas tiradas dali.

Além do detalhe visual, puderam experimentar uma poderosa influência vital se estabelecer no ambiente. Um misto de frio e calor, que vinha diretamente dos adultos. Foi fácil compreender.

Quando os quatro se postaram à frente, Atena moveu a mão dominante e mirou os respectivos:

— Estas são as outras duas divindades que estarão à frente desta tarefa. Vocês já devem conhecê-los, é claro: os Deuses do Sol e da Lua, Apolo e Ártemis, respectivamente.

— Olá, meus jovens. — Ártemis foi a primeira a cumprimentar.

De cativante beleza e feição serena, lograva de ondulado cabelo escuro como as noites olímpicas, que alcançava o extremo das costas.

Os olhos carregavam tonalidade similar, com uma pupila de natureza ligeiramente acinzentada, quase a concepção da própria Lua entre as fases de quarto crescente e cheia.

Tudo nela chamava muito a atenção, tanto pela ousada vestimenta quase transparente, que alcançava os joelhos, quanto pelos ornamentos naturais responsáveis por dar a ela um charme único.

Em contrapartida, o homem musculoso ao lado se recusara a saudá-los.

De feição fechada e um tanto carrancuda, combinatória aos braços cruzados sobre o peitoral à mostra, tinha cabelo de tom dourado que se arrepiava em pontas bagunçadas, além de uma barbicha quase rala.

Além da parte inferior, coberta por uma saia de couro e um cinto que trazia consigo o símbolo do Sol, apenas os antebraços eram envoltos por algumas peças metálicas douradas.

Seus olhos, intensamente amarelos, pareciam quase não ter pupilas, emitindo o resplendor da própria estrela da vida cravada em cada globo.

“Deuses do Olimpo...”, Lilith tentou não parecer acuada.

“São mesmo diferentes”, Damon cerrou os punhos, já conhecedor do quão sublime seres como eles eram, apenas no alcance das vistas.

— Dito isto... — Atena retomou o foco, agora levando-o aos jovens em seguida. — Estes dois são a dupla que os acompanhará nesta tarefa. Vão em frente e se apresentem... todos.

Ante o silêncio causado pelo chamado da sábia, ninguém fazia ideia sobre como se apresentar daquela forma.

O único não obstante a isso deu uma risada presa. Esse era idêntico ao Deus do Sol, até mesmo na postura com os braços cruzados.

A grande diferença era o sorriso prazeroso que ostentava.

— Esplêndido!! Então, eu falo primeiro!! — Por meio de sua voz avantajada, deu dois passos à frente. — Eu me chamo Gael!! Sou filho do grande Deus do Sol!!

A maneira com a qual se expressava, mais do que eufórica, era conduzida pela mostra dos dentes afiados.

Enquanto Daisy estava encantada em conhecê-lo, Lilith e Damon prendiam as lamúrias. Seria necessário aturar, além de uma voz tão forte que fazia seus ouvidos estremecerem, uma figura tão chamativa quanto Silver.

E não apenas na postura.

Sua aparência era fiel a de seu progenitor, cabelo dourados de pontas arrepiadas. Essas, contudo, eram maiores e mais bagunçadas que as dele.

Os olhos, por outro lado, não combinavam nem um pouco. Eram castanhos, desprovidos do brilho natural que preenchia os do Deus do Sol.

— Olha, eu ouvi falar que vocês são bem fortes!! Imagino que possamos lutar muito bem juntos!! E se quiserem lutar contra mim, também ficarei muito contente e aceitarei sem pensar duas vezes!! Esplêndido!!

O vento cresceu, fazendo sua manta, envolvida no pescoço e caída como uma capa sobre as costas, oscilar. A camisa era cortada na altura dos ombros.

“Quem convida alguém que acabou de conhecer pra lutar?”, Lilith questionou em silêncio, as vistas quase oclusas.

Damon, ao contrário dela, levou certa seriedade no convite do rapaz. Ainda assim, lidar com ele deveria ser bem difícil.

Só não esperava pelo que viria a seguir.

Passada a apresentação efusiva do descendente solar, restava a garota que era parecida com a Deusa da Lua. Completamente inversa a ele, o olhar estremecido buscava fugir do contato com os novos aliados.

As mãos cruzadas tremiam ainda mais. A ausência de atitudes podia ofuscar a presença vigorosa ao lado.

Mediante a espera que aparentava ser eterna, somente o assobio da lufada cortava a nova onda de quietude criada pelo saguão.

Desentendidos ao extremo, os comandados de Atena analisaram o curto cabelo azul-escuro, com dois arcos na altura da nuca, semelhantes a um laço amarrado.

Diferente da mulher em sua retaguarda, ostentava um vestido lilás que alcançava as coxas e não tinha alças sobre os ombros.

No centro do peito, um colar com o símbolo da lua crescente e um pequeno cristal azulado descansava.

Os resquícios das expectativas foram destroçados, quando ela contraiu os lábios e desviou, mais uma vez, os olhos marrons, ao abaixar timidamente a cabeça.

— Não tenha medo, filha — Ártemis murmurou, ao repousar a mão sobre o ombro dela, com delicadeza.

Em seguida, assentiu em prol de lhe transmitir coragem.

Com o apoio da genetriz, buscou vencer o temor e reergueu a cabeça. De qualquer forma, não conseguia olhá-los nos olhos.

No fim, restou o esforço para que, com as mãos entrelaçadas no centro do peito, empurrasse sua fina e graciosa voz:

— Eu... me chamo Elaine... — Todos ficaram boquiabertos.

Era quase inaudível, mas...

“Que voz linda!”, diferente da reação geral, Daisy ficou mais do que encantada.

Arregalou as esferas brilhantes, unidas a um sorriso amável no rosto corado.

Lilith sequer percebeu os lábios separados, após receber o sussurro da menina chamada Elaine.

Inclusive Damon foi pego de surpreso ao escutar a miúda, porém, afável entonação proferida pela descendente lunar.

Tudo parecia retomar à placidez, aos poucos...

— Esplêndido!! É isso mesmo!! Essa é Elaine, filha da grandiosa e magnífica Deusa da Lua!! — Gael apontou com palmas abertas e a mulher acenou em concordância. — Não se preocupem!! Ela é bem insegura mesmo, mas tenho certeza que conseguirão se dar bem com ela!! Tenho certeza absoluta!!

“O oposto completo”, Damon e Lilith pensaram na mesma afirmativa, à medida que a sensação encantadora era despedaçada pela atitude potente do dourado.

O filho de Apolo, causador do efeito contrário no clima tranquilo, assentiu consigo mesmo numa postura triunfante. Só piorou o desejo de a companheira se esconder numa casca que sequer existia.

No ato de correr dos olhares intensos, acidentalmente cruzou com a feição pura da divindade caçula. Incapaz de escapar do sorriso gentil, corou por todo o rosto.

Mas, antes de descer a linha de visão de novo, experimentou um alento indescritível lhe permear.

Acompanhando o momento, a deidade lunar levantou os lábios, contente.

— Pois bem. Agora, vocês dois. — Atena chamou de volta a atenção dos demais.

Sem delongas, a dupla sob sua tutela expressou:

— Meu nome é Lilith. Filha... da Deusa das Flores.

— Damon. Filho do deus velhote.

Diferente do desinteresse deles, as grandes divindades e os descendentes reagiram cada um ao respectivo modo.

— Essa é a primeira vez que vejo a filha caçula de Perséfone — Ártemis mussitou, interessada nos jovens. — Você estava certa, Atena. Ela é tão idêntica à Perséfone quanto Melinoe.

— Também lembra um pouco o tio — Apolo resmungou, o rosto inclinado à direita.

 Comparada àquele que não desejava nomear, Lilith repetiu o gesto da recém-conhecida e fugiu dos olhares.

— Já esse aqui... — O homem, por fim, delegou atenção ao rapaz. — Então ele que é o mais novo? De fato, vejo alguma similaridade no olhar...

Encarado com severidade pelo deus, Damon estreitou as sobrancelhas com firmeza.

— Eu sou a Daisy! — De súbito, a garotinha que estava destacada falou em alto e bom som. — Sou a irmãzinha do irmão e filha do papai!! Um dia vou ser uma Apóstola como ele e a Lilizinha!!

Após se tornar o novo centro das atenções, a criança mostrou os dentes.

— Respondendo vossa indagação, Apolo: ela é a verdadeira caçula. — A purpúrea apontou à cacheada.

O olhar do deus se contorceu de novo, diferente da noturna, que franziu o cenho sem ser percebida.

“Hm... A quem será que ela me lembra?...”, ponderou com certo misto de curiosidade e inquietação.

Incapaz, porém, de determinar aquela solução, deixou o devaneio passar.

— Isso é esplêndido de verdade!! Eu definitivamente desejo enfrentá-los!!

Gael bateu o punho destro na outra palma, ao passo que deixava os ânimos exaltados falarem por si.

O filho de Zeus permaneceu silente. Já a de Hades preferiu continuar evitando um contato direto com o respectivo.

Dado o estranho impasse criado pelas apresentações peculiares, Atena bateu as mãos, ecoando os ruídos por todo o átrio.

Tendo todos os olhares de volta à sua figura, limpou a garganta num rápido pigarro e confirmou a vez de fala:

— Pois então, deixemos os desejos pessoais para outra ocasião. Falemos sobre a tarefa que vocês quatro deverão cumprir.

Desfazendo o sorriso comedido, trouxe uma nova carga de importância àquela reunião, que enfim, tinha seu verdadeiro início.

Agradecimentos:

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