Volume 1 – Arco 1
Capítulo 8: Baile Prateado
Ligeia franziu o cenho. Ser dominada pela dor lancinante a remexeu por completo, interna e externamente.
Tratava-se de um ferimento que sequer se lembrava de ter sofrido alguma vez na vida.
Contou até três em silêncio.
Relaxou as asas coloridas e deslizou os dedos na carne. Experimentou ainda mais incômodo durante o movimento cauteloso.
O líquido escuro escorria até as pernas.
Silver aparentava estar à vontade na posição atual.
Quando a sirena devolveu o foco até ele, encontrou a ponta da lâmina direcionada ao solo.
Os olhos cor de mel apresentavam-se altivos.
A maneira na qual a encarava divergia com o semblante que a fez hesitar no ataque anterior, visto que as sobrancelhas pareciam mais contraídas.
Em contrapartida, a mulher-ave também semicerrou as vistas. Seu sorriso havia desaparecido por completo.
Mesmo num repique de controle emocional, a aura assassina finalmente aflorava do corpo, sobrepondo-se à feição angelical.
Empenhou-se a evitar o mesmo descontrole de há pouco, soando ameaçadora ao entoar:
— Hm, hm! O que você fez com meu lindo corpo é imperdoável! Infelizmente não estou mais interessada em conversar!
Em nota à íntegra alteração em torno da oponente, o rapaz exalou uma respiração profunda.
Tratou de alimentar a condição tranquilizada ao máximo possível, no objetivo de regressar ao método antecessor.
Esse seria imprescindível para reverter a vantagem do conflito ao próprio favor.
O ar resfriado, liberado de si, se expandiu em rivalidade à influência sanguinolenta da criatura.
A mesma energia passou a envolver a lâmina, de maneira gradativa.
Entretanto, Ligeia ainda tinha uma poderosa carta escondida na manga.
A decisão seguinte voltaria a girar a chave da batalha. Afinal, faria valer sua posição como uma das Sirenas, a qualquer custo.
Abriu a boca com suavidade. A voz melódica começou a ser liberta.
O semblante do apóstolo alterou-se no mesmo átimo; a face agitada trouxe a serenidade, próxima do impecável, a um abalo estridente.
Cogitou um contragolpe veloz, no objetivo de evitar a ação do efeito entorpecente, mas a perda de concentração antecipou o pior.
Cambaleou, incapaz de avançar.
Fez-se necessário um empenho surreal a fim de manter-se erguido. O efeito o atingiu com o dobro de impacto em comparação à primeira experiência.
A proliferação musical chegava a estremecer as folhas nos arredores.
“Não fiquei tão surpresa quando você continuou de pé antes, porque eu só estava brincando. Mas agora resiste mesmo com uma proximidade maior! Deve ter uma força de espírito e tanta!”, a monstruosidade deliciava-se frente a faceta deturpada do inimigo. “Só que agora eu não vou mais brincar...”
A voz sonífera crescia num efeito preocupante, capaz de fazer os sentidos do rapaz vacilarem.
Conforme a sirena se aproximava, batendo lentamente suas asas, fechava o cerco que o deixaria sem qualquer tipo de escapatória.
“Se concentre... não deixe se esvair”, martelava na mente sonolenta, notando os braços e pernas tremerem.
Naquele ritmo, não importava o quanto se esforçasse, iria sucumbir.
A visão voltava a ser atingida pela turbidez. A respiração lhe arrancava as forças, de tão ofegante.
Todo o fluxo vital materializado sobre a lâmina oscilou, iminente a desaparecer por completo.
Lutou até onde foi possível.
Mas, por fim, entregou-se ao limite do que era capaz...
Um dos joelhos tocou a terra. A postura tornou-se apática, seguindo o desejo rompante do cérebro por repouso imediato.
“Shishishi! No fim, ninguém pode superar meu canto de ninar mortal!”, Ligeia podia vê-lo a um único passo de adentrar o temido estado de repouso.
A vitória estava em suas mãos. E, diferente de todas as experiências anteriores, nunca experimentara tamanha satisfação em abater uma presa.
No pequeno intervalo que os separava, Silver renunciou à obstinação responsável por mantê-lo ativo...
“Não há outra escolha”, e reconheceu a impotência diante da inimiga.
Ao ceder para os efeitos da Doce Sonoridade, terminou de fechar os olhos pesados.
O sorriso da criatura renasceu das cinzas, sem interromper a cantoria.
O consentimento de triunfo ganhava cores mais quentes ao alcance do olhar.
“Durma bem, garoto!”, parou de planar com as asas e tomou o caminho da terra em sua direção.
Mesmo certa de que ele tinha adormecido, pregou cautela e averiguou as condições.
Ele continuava erguido, mas o repouso parecia absoluto.
“Foi interessante por enquanto durou! Agora, você não precisa fazer mais nada...”, deixava as notas melódicas escaparem garganta afora, para finalizar com requintes de crueldade.
Cobriu a distância necessária por passadas curtas.
Mesmo naquela posição, o apóstolo não apresentava qualquer sinal de resistência.
Respirava fundo, sem ruído algum. Tinha os membros relaxados, pendentes à terra.
Não podia ser diferente de um estado de sono profundo.
De quebra reencontrou Lilith, que tinha sido escondida em uma das árvores, ainda entorpecida.
Aparentava tanta vulnerabilidade quanto aquele que ainda teve a audácia de lhe desafiar.
Seriam dois coelhos numa só cajadada.
Como um rito de passagem, encarou de novo o corte recebido no abdômen. Se remoía apenas ao tocá-lo.
Porém, tal experiência a fez alargar o riso.
— Nossa diversão termina aqui! Shishishi! — A expressão, inicialmente infantil, revelou ferocidade ao mostrar os dentes afiados. — Adeus a você e sua amiguinha!
Foi só por um instante. Mas a criatura interrompeu a cantoria em prol de entoar a última declaração em voz alta.
Toda a precaução até aquele momento foi abandonada naquele singelo período. A plena segurança no próprio poder lhe fez seguir aquela abordagem.
Preparou as garras, prontas para o abate derradeiro. Levantou o braço dominante e mirou o pescoço do jovem, no intuito de desferir um único golpe...
Toda a confiança acalorada para finalizar o confronto... acabou por provocar sua ruína.
No momento que arqueou, foi assolada por uma influência congelante que explodiu do corpo de Silver.
Vacilou na investida, incrédula.
Antes que a visão pudesse entender, a lâmina do garoto foi banhada em energia fluida.
Mais rápido que o pensamento, ele movimentou o braço contra o corpo da inimiga, segurando com firmeza a empunhadura da arma.
Ainda de olhos fechados, entoou:
— Arte do Oceano, Primeira Onda... — Os abriu no segundo seguinte e concluiu: — Navalha de Água.
Diante da faceta boquiaberta da mulher, realizou um corte gélido, recheado de Autoridade Elementar da Água materializada.
O domínio líquido se condensou, originando uma segunda camada laminosa em volta da chapa metálica. Essa que cresceu em um piscar e buscou o pescoço de Ligeia.
Ela reagiu no puro instinto ao cruzar os dois braços à frente. A ação, em vista de se proteger como podia, evitou que a garganta fosse rasgada.
No entanto, os membros afligidos foram os antebraços, partidos como um fruto qualquer.
Sangue espirrou no estouro das veias, sujando não só o próprio rosto, como o manto que cobria a roupa do rapaz.
Toda a graciosidade da sirena foi, pela segunda vez, arrancada de seu corpo e alma com um grito gutural:
— GAAAAAH!! SEU DESGRAÇADOOOO!!
O jovem reergueu a postura. A arma, envolta pelo elemento líquido, regressou à posição inicial.
O instante fez a energia distribuída por toda a chapa metálica se retrair tão rápida quanto expandiu.
Iniciava-se a busca pelo ataque derradeiro.
Levado por uma expressão inabalada, flexionou o retorno e executou o movimento contrário, atacando-a de novo.
A mulher-ave bateu a pata canhota no chão, levantando uma crosta de terra na esperança de impedir a investida certeira.
Contudo, Silver dobrou a quantidade de energia depositada sobre a lâmina e atravessou o bloqueio improvisado.
— Não!! — Desesperada, a sirena procurou se afastar com um salto. — Sai daqui!!!
Foi incapaz de concluir o deslocamento a tempo.
A ação derradeira foi pôr as duas asas à frente do corpo, em prol de se proteger do novo golpe.
A lâmina d’água sobre o metal cresceu de novo.
— O qu...!?
Ligeia só pôde sentir o corte frio dilacerando seus membros plumosos. O avanço na horizontal ainda lhe perfurou a carne, bem próximo ao ombro direito.
Cravado nela, o apóstolo viu a brecha almejada da decisão. Pôs força extra na empunhadura para rasgar tudo que podia vir pelo caminho.
O releixo sustentou o trajeto pela região superior do torso da mulher-pássaro.
Enquanto liberava um chafariz de sangue no ar, a lâmina de autoridade serena encerrou o percurso ao parti-la em dois.
Sem ter qualquer possibilidade de revide, a sirena deixou de sentir dor. Dos seios para baixo, foi dividida, de forma a tombar para lados opostos.
A parte de cima ainda pôde encontrar as coroas das árvores, que tampavam o céu, sem a permitir ver.
No fim da incisão letal, Silver cambaleou e voltou a derrubar o joelho canhoto sobre o solo.
Apoiou a mão livre para não ser completamente derrubado, ao passo que arfava para retomar o fôlego gasto.
Continuava a sofrer alguns efeitos impostos pelo Canto da inimiga. Eles logo seriam desfeitos, imaginava.
Caída na terra, Ligeia usou toda e qualquer força restante a fim de descer os globos contraídos até o algoz.
Viu que ele retomava a postura aos poucos.
Após a camada de energia desaparecer, sacudiu a lâmina no objetivo de livrar-se dos fluidos da mulher.
Ela perdia a luminescência da íris aos poucos.
Ainda conseguia enxergar os deslocamentos do jovem, que guardava a arma na bainha da cintura, sem pressa alguma.
Conforme vencia a dormência causada pela habilidade adversária, virou o semblante frígido em sua direção.
Não havia outra coisa ali, além de uma firme demonstração de superioridade e indiferença.
— Como?... — A voz da abatida escapou, trêmula e rouca. — Como... você... fez isso?...
Até então, ele não tinha dito uma palavra; a exceção veio no momento que entoou o nome do movimento responsável por abrir o caminho rumo à reviravolta vitoriosa.
— Vencer a sua habilidade? — Porém, dessa vez, enfim dirigiu-se com uma resposta: — Apenas reuni Energia Vital e foquei em minha audição. Isso tranquilizou os efeitos de seu Canto e os tornou enfraquecidos.
A mulher-ave alçou as sobrancelhas ao limite, sem acreditar no que acabara de ouvir.
Isso coincidiu com o momento no qual perdeu a visão. O anúncio da morte inevitável.
Subestimou o adversário e sua capacidade de controlar a energia interior, tão primoroso quanto ela.
Não fosse o bastante, superestimou a própria habilidade, depositando uma confiança fora do comum que a fez ser pega desprevenida.
Silver ainda teve tempo para se impressionar, perante a capacidade dela em proferir tais palavras no presente estado.
No fim, aqueles foram os últimos estímulos apresentados pela criatura.
Todo o funcionamento do corpo separado se apagou.
Estava anunciada a morte de Ligeia.
— Não sabia que eram tão fáceis de cortar assim — murmurou, um tanto frustrado pelo rápido desfecho.
Nenhuma retruca veio da casca da mulher falecida, fazendo o rapaz compreender a sensação dela ao ter sido ignorada nas interações anteriores.
Preferiu desviar o foco, em desprezo àquele detalhe insignificante.
Após conferir o manto encharcado com o sangue escuro, viu que nada poderia ser feito para se livrar da sujeira — afinal, não iria removê-lo tão cedo.
Só então lembrou-se da aliada, adormecida desde as primícias do embate.
Caminhou a passos curtos até o arvoredo onde havia a largado, a fim de lutar livremente contra a criatura.
Ao cobrir a distância construída, conferiu a jovem de caudas gêmeas repousada sobre as folhas secas, suas costas tocando no tronco.
Após perder um singelo intervalo, flexionou as pernas e observou a plácida faceta da menina, que aparentava estar sorrindo.
Cogitou abandoná-la naquelas condições, na iminência de evitar estresse.
De certo, pouco se importaria caso uma segunda sirena a encontrasse, solitária e indefesa daquela forma.
Em oposição à ideia, não seria nada bom fazer aquilo. De acordo com a conhecida descendência dela...
“Prefiro evitar um problema maior”, determinou.
Então, decidiu acordá-la por meio de leves tapinhas em sua bochecha esquerda. Ela despertou sem delongas, porém levou um susto, como se arrancada de um vórtice de angústia.
Chegou a quase socá-lo no puro reflexo, mas foi impedida pela palma do rapaz.
Ele continuava inexpressivo; isso a fez perceber que o responsável por a acordar não tinha sido quem esperava...
— Uah! V-você!? — Ergueu-se e, aos poucos, começou a notar certos detalhes. — O que aconteceu? E o que é isso na sua roupa?...
Lilith encarou a capa que, em suas recordações, carregava uma tonalidade semelhante à de seu cabelo.
E nem foi necessário que o jovem respondesse; o odor sangrento infestou suas narinas.
Silver exalou um fraco suspiro ao mover o corpo ao lado.
Apontou à passagem aberta, oferecendo visibilidade à companheira de corporação.
Para descobrir sobre o que se tratava, ela avançou lentamente até encontrar a figura caída no chão.
Impressionou-se ao visualizar as condições nas quais a falecida se encontrava; o torso partido em dois recheava a terra seca de entranhas e sangue.
Ficou boquiaberta sem perceber. Os olhos rubis brilhavam em espanto.
— Uau... você derrotou uma delas. — O murmúrio melancólico pegou o garoto de surpresa. — Enquanto isso, eu fiquei dormindo sem conseguir fazer nada...
Perceptivo quanto a frustração nas palavras proferidas pela apóstola, ele desviou o olhar até o restante da trilha.
Como se fosse empurrado a consolá-la, de algum modo que pudesse retirar o peso desnecessário de suas costas, enunciou em voz baixa:
— Foi a habilidade dela. Consegui ficar de pé porque a cantoria parou logo após você ter dormido. Durante a batalha, ela tentou utilizar novamente, mas dei um jeito de derrotá-la.
— Entendo. — Assentiu com lentidão.
Permaneceu a encarar a face pálida da criatura mais nova, como se a transmitisse uma maldição através do semblante pesado.
Silver aguardou as ações que a garota decidiria tomar. Nem ele sabia o motivo, mas sentia que seria a melhor opção.
Ela, por sinal, buscou retomar o equilíbrio das emoções à flor da pele, por meio de dois arquejos profundos.
Relaxou os ombros tenazes e permitiu às vistas descarregarem todo o peso acumulado pelo sentimento de impotência.
— Vamos continuar — sussurrou, mas para si mesma.
A audição poderosa do aliado foi capaz de absorver aquelas palavras, à medida que a ruiva dava meia-volta e recomeçava a caminhada pela passagem florestal.
Algo tinha mudado nela, de um momento a outro, como na vez anterior.
Era a primeira vez, entretanto, o responsável por matar Ligeia experimentou certa curiosidade.
Gostaria de acompanhar o rumo escolhido pela insegura e o possível desfecho, que seria gerado dessa conduta.
Poucas situações o levavam àquela abordagem.
Portanto, resolveu aproveitar e seguir as novas diretrizes, guiado pelas passadas tensas da companheira.
“Eu também posso fazer isso”, já ela cerrou os punhos com força.
Sua determinação podia ser reconhecida não apenas pelo semblante soturno, como pelo crescente fluxo caloroso ao redor do próprio corpo.
PEQUENO AVISO! NÃO SAIA AINDA!
Fala galera, aqui quem fala é seu autor, Altair. Caso tenham chegado até aqui, presto meu enorme agradecimento por ter dado uma chance a Epopeia do Fim. Está gostando da leitura? Espero muito que sim!
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Fiquem à vontade para comentar sobre qualquer coisa que acharem da história e afins, seja por aqui ou por lá. Mais uma vez agradeço por estarem lendo Epopeia do Fim e espero que continuem apreciando!