Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 7: Doce Sonoridade [Terceira Sirena]

Irritada com o avanço repentino de Damon, Lilith enfrentou uma crescente vontade de agredi-lo.

Sem palavras para aquela rápida tomada de decisão, restou seguir adiante com Silver que, por outro lado, sustentava a costumeira serenidade.

Os olhos cor de mel passeavam pelas primícias da área florestal.

Embora abandonado pelo avanço prematuro do aliado, as circunstâncias atuais não tolerariam uma condução de atitudes baseada em sentimentos efusivos.

Deveriam abandoná-los, sem permitir que se tornassem um obstáculo a desfavor dos vindouros confrontos.

Nessa toada, o rapaz prateado percebeu que, caso a acompanhante prosseguisse baqueada por detalhes insignificantes, somente o prejudicaria durante o trajeto.

“Esqueça-a”, determinou consigo, enquanto fechava as vistas e concentrava a poderosa audição.

Por enquanto, tudo estava tranquilo.

Além dos ruídos captados de antemão, nada mais foi percebido. Isso o fez mirar a ruiva bem ao lado; ela aparentava estar mais comedida quanto a poucos segundos.

Desde que continuasse assim, agradeceria.

Por um breve instante, deu meia volta e encarou a embarcação atracada na orla.

Sem expectar alguma reação, voltou-se a avançar pelas imediações da mata fechada.

O homem grisalho, responsável por coordenar toda a tripulação incrédula, assentiu com a cabeça e reforçou as preces silenciosas.

Desde que permanecesse ali, o apóstolo não precisaria se preocupar em lutar com tudo que podia e tampouco perderia tempo a fim de protegê-lo.

A exemplo do ocorrido em alto-mar, novas oportunidades perdidas também não seriam toleradas. Esse era o pensamento compartilhado entre os dois lados.

Junto da garota, avançou no mesmo compasso durante um breve período. Trilhas estreitas criavam rotas entre as diversas árvores, aglomeradas nas cercanias.

Virava o rosto, vez ou outra, a observar por cima do ombro. Em nota à faceta incomodada da menina, no encalço de seus passos, constatou o quanto não se daria bem com ela.

 Agora, ela aparentava carregar tanta insegurança quanto à postura recente. Sua linha de base não se mantinha.

Após minutos de caminhada, a ruiva deixou a raiva momentânea esvanecer.

Ofereceu foco absoluto ao rumo tomado; os elevados arvoredos impediam parte da identificação do céu, repleto de nuvens carregadas que avançavam aos poucos até cobrirem toda a ilha.

O silente sequer precisava fitar o topo para saber que, em breve, chuva cairia sobre Methana.

O fraco ecoar de trovoadas passava a ser absorvido por sua audição, enfim algo inédito desde a chegada.

Contudo algo além disso lhe inquietava.

— Ei — mussitou a acompanhante —, você não acha que ‘tá muito quieto?

Embora não usufruísse da mesma habilidade auditiva, conseguia identificar a estranha conjuntura no clima, sem dificuldades.

O respectivo lhe sonegou uma resposta, novamente.

Desde a arremetida à ilha, ele já tinha notado a situação descrita. Preferiu confirmar ao livrar-se dos ruídos iniciais, tendo não captado qualquer outro.

Nada propagado por animais ou algum outro tipo de ser vivo.

Reverberavam somente as passadas aceleradas, vez ou outra entrecortadas pelo uivo do vento gelado.

Ao menos até aquele instante...

— Espere.

Ao enunciar em voz baixa, quase sussurrante, Silver ergueu o braço destro à frente da aliada.

Na mesma sintonia, ela freou o avanço.

— O que houve? Escutou alguma coisa!?

Ciente da audição potente do rapaz, Lilith aguardou a resposta que, mais uma vez, não veio.

Corrupiou-se à procura de qualquer figura estranha nas adjacências. Não encontrou qualquer coisa no primeiro momento.

Em íntegra quietude, a fim de não perder o máximo equilíbrio da percepção auditiva, Silver seguiu o exemplo dela.

A ausência de luz solar não era problema. Podiam situar a si próprios quanto a localização atual.

Restava identificar a fonte do novo ruído captado pelo apóstolo.

A exemplo do ocorrido no Egeu, pôde escutar uma fraca melodia ecoar por entre as árvores, até alcançar a posição na qual estavam.

Gradativamente, as ondas sonoras de timbre afinado adquiriram tanto ímpeto a ponto de sobrepujar o vento estremecido.

A dona da voz, que se proliferava a cada avanço de segundos, sorriu. Estava sentada sobre o galho maior de uma das árvores à frente.

Quando percebeu a influência oposta atingir sua disposição, resolveu interromper a entonação suaves.

As pernas, pêndulas no espaço, balançavam uma após a outra, para frente e para trás, arranhando o tronco com suas garras.

— Hm, hm! Acho que fui descoberta! — Repousou o indicador sobre o queixo fino. — Mas que perspicaz esse menino!...

O gracioso sorriso cresceu na face pálida.

Inclinou o torso à frente e, com ambas as mãos, agarrou o braço de madeira onde descansava.

Disparou outro cantarolar, um simples eco encarregado de sacudir todas as folhas adiante, como se atingidas por uma corrente de vento.

Assim que percebeu a reação do garoto prateado, que quase rodopiou em sua busca, levou as mãos à barriga e prendeu sua risada infantil.

As asas de médio porte, num acelerado deslocamento frontal, postaram-se acima dos flancos.

Revelavam as penas brilhosas, que misturavam tonalidades róseas e níveas, num bonito degradê.

— Hm, hm! Eles são mesmo os pirralhos que a irmã Thelxie foi visitar mais cedo! — A jovem sirena acariciou uma das penas salientes, na asa destra. — E ela ainda voltou ferida, shishi! Eles devem ser bem mais fortes, hm, hm!

Após falar para os próprios apêndices, utilizou a força dos finos braços em prol de empurrar o corpo.

A pressão fez o galho trepidar; as enormes patas envolveram-se nele, quase concebendo o contorno total da vara compacta.

Na iminência do giro, a mulher-ave arqueou-se à frente.

As plumas clareadas mantiveram-na planando no ar, através de delicadas batidas que faziam as folhas dançarem ao seu redor.

— Vamos brincar um pouco...

Inspirou o oxigênio com força, segurou-o nos pulmões e conectou os cílios.

Quando voltou a abrir a boca, permitiu à melodia ser entoada junto ao ar expelido, agora de forma mais leve.

Partido de uma voz aguda e refinada, o cântico suave chegou aos ouvidos de Silver e Lilith em milésimos.

Tal coordenação fez ambos determinarem a presença de uma das criaturas por ali. Apesar de cientes com relação à extrema ameaça, sentiram-se relaxados, tanto física quanto mentalmente.

Sem tantas delongas, o rapaz experimentou um peso extra tomar conta de suas vistas.

Empenhou-se ao limite no objetivo de mantê-las abertas, porém sofria imensa dificuldade em fazê-lo.

A dormência espalhou-se por todo o corpo num piscar.

— Ei... — Com a voz debilitada e os olhos quase fechados, Lilith caiu de joelhos no chão. — O que está... acontecendo?...

O embargo ocasionado pela sonolência foi cortado quando os sentidos esvaneceram. A postura da apóstola sucumbiu ao solo de terra e folhas secas, ainda com os globos rubis entreabertos.

A respiração permaneceu branda, na companhia do repentino cansaço adquirido pela mente.

Ao fitar o súbito entorpecimento da garota, o prateado sentiu suor frio escorrer pelo rosto.

Depositou força extra nas pernas, tentando manter-se ereto de todas as maneiras.

O cenário reverteu para sua absoluta desvantagem em dois tempos.

Caso optasse por conectar os cílios pesados, provavelmente não seria capaz de suportar. A derrota anunciada se aproximava a passadas largas.

E ele ainda não tinha descoberto a posição da inimiga.

A audição poderosa piorava sua situação. Suportava o máximo que podia, enquanto Lilith era pega pelo efeito entorpecente em velocidade recorde.

Tanto que adormeceu como se fosse a coisa mais fácil do mundo.

As pernas tremularam violentamente, quase a ponto de serem levadas à terra. Precisou forçar o tronco alguns centímetros à frente, no intuito de evitar a queda fatal.

Não podia desistir da pungente disputa.

Caso perecesse ali, seria o fim de ambos.

— Hm, hm! Vejo que suportou meu Canto! — a voz sussurrou ao pé de seu ouvido. — Fico surpresa que ainda esteja de pé. Mas me pergunto até quando poderá enfrentar minha Doce Sonoridade, shishishi...

O descendente do Deus dos Mares arregalou os olhos, perdendo toda a concentração que procurava sustentar.

Um arrepio congelante percorreu sua espinha.

A visão, turva em virtude do entorpecimento, não pôde identificar a falante.

Frente a ameaça real, não pensou duas vezes em saltar para trás. Pegou a desmaiada pelo braço e arrastou-a consigo, abrindo distância da mulher-ave.

Nesse momento, recobrou uma parcela da consciência e viu asas se moverem na direção ao solo.

— Hm, hm! Boa reação! — disse ao bater palmas duas vezes. — Ainda pode me divertir um pouquinho, shishi!!

Ciente quanto a interrupção da música, o apóstolo logo delegou a responsabilidade à mulher.

E não podia ser diferente, sabia; estavam confirmadas as expectativas, perante a figura metade mulher metade pássaro.

Passeou com as pupilas sobre as penas brancas, presentes por boa parte daquele corpo esbelto.

Em destaque, os pares coloridos combinavam com seu cabelo ondulado, “fechando” o pescoço com cachos cheios.

Sem ter para onde correr enquanto carregava o peso extra de Lilith, viu a criatura entrar em sua frente.

O caminho fora bloqueado num piscar, enquanto ela planava de cabeça para baixo.

“Mantenha-se tranquilo”, reiterou para si, na busca de uma base serena em prol de manter-se alerta.

Com a melodia cessada provisoriamente, a firmeza na postura parecia retornar.

O efeito sonífero esvanecia aos poucos, o permitindo se preparar para qualquer reação.

A sirena, dito isso, passou os dedos sobre os lábios com leveza e se pronunciou:

— Hm, hm! Muito prazer! Meu nome é Ligeia! Sou a mais nova e meiga dentre minhas irmãs brutas e maléficas, shishishi!!

Ligeia abriu as grandes asas, no intuito de ressaltar a própria beleza unida a um ar de imponência.

 Silver conservou a compostura. Os olhos fixados nos da criatura, que possuía bela íris azul-marinho.

Após se apresentar da maneira devida, essa arremeteu num giro acelerado.

O apóstolo aproveitou o instante no objetivo de fitar acima do ombro. Checou o estado da aliada, que ainda não tinha despertado, apesar do desaparecimento da cantoria.

Em suma, restava a ele uma simples opção...

Levou a mão direita até a cintura com morosidade. A palma descansou envolta à empunhadura, ainda embainhada.

A sirena reagiu num golpe de vista ao perceber o deslocamento abordado por ele.

Executou um disparo brusco com as asas, as batendo em alta velocidade e deixando o resto do corpo acompanhar o impacto.

A aplicação foi semelhante a uma rápida dança; os apêndices coloridos transitaram em diagonal decrescente, cortando o ar e lançando penas pontiagudas contra a cria dos deuses.

Tendo a mobilidade recuperada, ele puxou o corpo da ruiva com maior consistência e colocou-a sobre um dos ombros. Depois, desviou através de um salto ligeiro à esquerda.

As plumas, semelhantes a pequenas lâminas, afundaram na terra.

— Shishishi!! Muito bom, menino!

Divertida, a monstruosidade procurou novas investidas de aspecto semelhante. Contudo o rapaz teve sucesso em livrar-se das pontas afiadas por meio de evasões precisas.

“Ele ainda parece entorpecido por conta de meu Canto, mas está conseguindo reagir em uma velocidade surpreendente!”

A fêmea alargou o sorriso, sem parar de mover as asas contra o alvo.

A sequência de ataque contra defesa tornou-se cansativa ao garoto, que decidiu elevar a velocidade de locomoção e sair dali o quanto antes.

Numa brecha entre as investidas, avançou à região de arvoredos aglomerados e se escondeu atrás de um dos troncos; esse logo acabou atingido pelas penas dilacerantes.

A mulher-ave não desistiu da ofensividade, mas foi surpreendida quando, segundos depois, Silver surgiu de uma árvore mais próxima de si.

Também não encontrou a garota que era carregada por ele, portanto entendeu a estratégia sem necessidade de divagações.

O prodígio estava livre para lutar.

Quando Ligeia preparou o inédito golpe frontal, Silver puxou a arma da cintura. A lâmina mediana era bem achatada para os dois lados, da metade do releixo à sua extremidade.

Assemelhava-se ao formato de uma onda. Predominava a tonalidade azul-claro com leve toque de prata.

De imediato, ele se moveu e cortou as penas disparadas em sua orientação; as partiu na metade de modo simultâneo.

Ambas seguiram o rumo pelos flancos dele e atingiram os troncos nas cercanias.

— Você é mais interessante do que eu pensei!...

A criatura projetou um sorriso rústico ao contemplar a precisão do jovem, mesmo que aparentemente debilitado.

Assentou as asas para abrir distância e, ao mesmo tempo, disparou novas penas afiadas.

Ele repetiu a ação antecessora; um único corte foi suficiente para dividir todas ao centro.

Ligeia, após o recuo, preparou outra leva ofensiva quando o rapaz a espantou na busca de sua primeira investida.

Por um momento, alçou as sobrancelhas na companhia da fluidez excessiva em sua movimentação, mas foi apta a desviar do golpe horizontal sem problemas.

As dificuldades impostas por seu Canto, ainda o afetavam.

Tão logo, deixaria de ser tão preciso em seus ataques.

— Hm, hm! Você é muito quieto pro meu gosto! Tenho raiva de pessoas quietas demais!

A sirena tentou atingi-lo num rasgo de garras, mas foi inútil; ele desviou de novo.

E ao invés de perder tempo a respondendo, freou com o arraste dos pés na terra.

Inspirou bastante oxigênio pela própria boca e soltou-o de volta, poucos segundos depois.

A súbita alteração no clima nasceu por uma fina camada de névoa, que se formou ao redor de seu corpo.

Tomada por um alerta de calafrio na nuca, Ligeia não demorou a identificar o perigo crescente.

Os olhos do apóstolo apresentavam-se imóveis, quase fechados. O estado de absorção a fez estremecer.

“Permaneça sereno. Eleve a fluidez dos movimentos. Foque. Foque. Foque”, buscou varrer quaisquer ruídos do corpo, interiores e exteriores.

— Esse... ar gelado que está vindo de você não é normal! — Desfez o sorriso eufórico e estalou os dedos das mãos. — Meus instintos estão gritando para que eu te dilacere o mais rápido possível, hm, hm!!

Silver continuava sem devolver.

Porém, dessa vez, não foi por escolha própria. Nada poderia interromper seu profundo estado de concentração.

Tanto que sequer tinha captado a declaração da adversária.

As franjas laterais do cabelo cobriram as vistas, assim que abaixou a cabeça. A posição atual, dominada por remanso, arrancou um estalo de língua enraivecido da mulher-ave.

Ciente das falhas com suas penas, aprontou as garras das mãos e bateu as asas com força.

A poderosa impulsão lhe lançou contra o garoto; partículas de terra foram levantadas do plano durante o impacto.

Silver levantou o rosto antes do ataque. A linha de visão de ambos se cruzou.

Ao mirar seu semblante frio, transmissor de uma sensação de equilíbrio pertencente a outra realidade... a criatura hesitou por um milésimo.

“Não me subestime, seu...!!”, rangeu os dentes para se desfazer da repentina insegurança e prosseguiu, mirando o pescoço do adversário.

E ele reagiu antecipadamente, executando um rápido passo para trás. O corte da mulher rasgou apenas o ar, rente a seu rosto.

“Hein?...”, o erro do ataque fez a sirena, perdendo o equilíbrio, arregalar os olhos. “Como...? Quando ele...?”

Por ter sido incapaz de sequer entender o que tinha acontecido, foi tomada por intensa confusão.

O apóstolo regressou à posição inicial, flexionou as pernas e apanhou a lâmina virada para trás.

A postura adotada fazia parecer que a arma tinha sido embainhada novamente.

Passados singelos segundos, completamente imóvel, levantou o olhar sereno.

Desferiu o primeiro golpe, um corte ligeiro em horizontal, de dentro para fora no ângulo do corpo.

Desconectada pela perplexidade, a sirena também não viu o ataque; somente sentiu pele, carne e penas serem rasgadas acima do umbigo.

Por impulso, reagiu no instante exato, em busca de afligi-lo com a pata destra.

Silver realizou outro salto e desviou, abrindo nova distância da criatura.

Quando interrompeu a atitude imprudente, Ligeia enfim percebeu o sangue escuro jorrar pelo espaço, até respingar sobre o solo terroso.

Depois de um momento incrédulo, onde precisou processar todas as circunstâncias inéditas diante dos olhos...

— GAAAAAAAAH! O QUE VOCÊ FEZ COM MEU CORPINHO LINDO!!!? — vociferou a ponto de quase estourar as cordas vocais.

O apóstolo respirou fundo, reergueu a postura e sacudiu a lâmina contra a terra.

Os resquícios do fluido rubro espirraram da chapa metálica.

Por outro lado, a adversária, em estado de choque, experimentava o medo pela primeira vez.



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