Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 5: O CHAMADO À AVENTURA

A situação expectada pelo trio, rumo à Ilha Methana, foi antecipada.

Uma das encarregadas pelas ondas de desaparecimentos surgiu através da névoa desbotada e atacou a embarcação.

Tratava-se de uma das Sirenas, Thelxiepia.

Depois de verificar a disposição dela, Damon compreendeu o teor dos aromas que infestavam suas narinas.

A maioria vinha dos acessórios que vestia nos braços, mãos e pescoço.

Os pequenos pertences iam de colares e braceletes até pedaços de roupas arrancados daqueles que, provavelmente, tinha ceifado a vida.

Lembranças macabras, encarregadas de dispersarem odores sangrentos por todos os lados.

Nada amedrontado frente a esse detalhe, contudo, o rapaz semicerrou as vistas...

— Então veio receber a gente e mostrar o caminho pra ilha?

No porte da espada de volumosa lâmina, encarou-a através de um olhar inabalável, cheio de segurança.

A inimiga, após franzir o cenho, respondeu num rápido bater de asas contra o solo.

Esse impacto fez a embarcação chacoalhar e a madeira no plano horizontal ranger. Somente a estátua da Deusa da Sabedoria manteve-se inerte, o que arrancou dela um grunhido interesseiro.

Os garotos sustentaram o equilíbrio, enquanto Lilith necessitou de um esforço a mais para não ser derrubada.

As ondas nas cercanias também sofreram alterações.

Passaram a auxiliar numa oscilação mais intensa contra o transporte à deriva.

— Sim, sim, você está certo, moleque — a sirena murmurou, suas vistas quase fechadas. — Eu os levarei até nossa ilha... após dilacerar seus corpos, um por um!

Silver e Lilith divagaram retrucas semelhantes, porém o cacheado esboçou um leve sorriso em oposição.

A criatura voltou a acometer contra os descendentes divinos, dessa vez mais rápida comparada às tentativas iniciais.

Irrompeu pelo meão, sem acertar qualquer um dos jovens.

— Lilith, deixo o capitão com você.

Perante a ordem apressada de Damon, a ruiva assentiu com a cabeça e ofereceu concentração absoluta ao marujo.

Ele permanecia incrédulo no chão.

A sirena alçou voo e iniciou o segundo cruzamento incorporado ao navio.

Sua elevada velocidade obrigou os jovens a abrirem espaço às laterais do limitado campo de batalha.

O espadachim regressou à proa, onde encontrou com as grandes e afiadas patas de ave, na mira de sua face.

Defletiu o golpe ao posicionar a lâmina na horizontal. Feito isso, a monstruosidade prosseguiu na vertente do prateado.

Ela girou o corpo na tentativa de afligi-lo através das presas negras, mas o apóstolo antecipou o golpe e balançou sua arma cortante de cima para baixo.

Isso a obrigou a usar os próprios braços em prol de se defender, na iminência de evitar ferimentos mais graves.

O garoto, na sequência, ainda moveu o torso à esquerda, escapando por um triz de uma das garras na sobra.

Damon agiu nesse entremeio, em busca de repetir o contra-ataque executado segundos atrás.

Dessa vez a mulher não recuou. Somente livrou-se do inimigo que quase a feriu e partiu para cima dele.

Os dois entraram em colisão outra vez, ficando naquela posição durante singelos segundos.

Conforme o olimpiano forçava as pernas, prestes a afundarem na madeira que vociferava rangidos, a assassina flutuava com auxílio dos apêndices plumosos.

— Eu sei muito bem o que vocês são — ela rosnou, à medida que ganhava, aos poucos, a disputa de espaço. — Oposta a minhas irmãs, eu notei com antecipação que vocês são diferentes de todos os outros que já vieram nos desafiar!

— Então achou que daria conta de adiantar o trabalho?

— Vou arrancar esse sorrisinho do seu rosto, pirralho! — Ironicamente, sorriu ao proferir. — Não deixarei que nos matem!!

De vistas arregaladas, exalando sanguinolência, Thelxiepia originou uma inédita corrente de ar sem sequer movimentar as asas.

O rapaz acabou impelido afinal de contas, o que lhe trouxe à derrota da pequena disputa de força.

Prestes a ser atingido na altura do pescoço por um golpe ligeiro, Silver regressou com sua lâmina fria e tratou de interromper o avanço da adversária.

Um corte brando interveio em sua ação, porém apenas o ar foi acertado.

O recuo na hora exata obrigou a criatura a dirigir-se à altura da vela. A intenção assassina foi amplificada por toda a região, dentro e fora do domínio da neblina.

O capitão do navio experimentou uma nova leva de conteúdo estomacal correr pela garganta.

As mãos entraram à frente da boca, bloqueando a passagem ardente que deixou a apóstola desconfortável ao seu lado.

A mulher-pássaro cuspiu as seguintes palavras como se fossem uma maldição:

— Morram de uma vez!

Ao adquirir impulso com o movimento contrário das asas, regressou ao convés num disparo considerável.

Sem estremecer, Damon saltou em sua orientação, com o objetivo de desferir o novo ataque no instante equivalente.

A criatura riu de sua coragem e preparou as garras do palmo dominante, no intuito de golpear com força total.

Cada um atacou à respectiva maneira, num encontro que durou poucos segundos. Eles passaram um ao lado do outro, em vertentes opostas.

Quando se afastaram por alguns metros, os resultados foram revelados:

A espada do apóstolo rasgou uma porção de carne misturada às penas do braço defensivo da inimiga. Sangue escuro esvoaçou pelo ar.

Por outro lado, ela não foi capaz de causar qualquer ferimento no alvo.

Dando prosseguimento, o rapaz rodopiou o corpo e buscou uma segunda incisão contra as costas dela.

Entretanto a sirena reagiu apressada, mediante de um giro mortal no sentido da queda.

A ponta da lâmina cortou somente o espaço vazio, mas foi suficiente para causar um segundo impacto. Outras camadas de neblina foram dissipadas nos arredores.

No fim, a gravidade o puxou de volta à cobertura. Aterrissou ao lado de uma das beiradas do casco, ileso.

Thelxiepia experimentou os nervos entrarem em ebulição, no instante que a ardência da região atingida — pouco abaixo do punho — se manifestou.

Logo após as sandálias do garoto tocarem o plano, sacudiu as asas com rigor e procurou mais uma investida; não havia tempo para reclamações.

Prontificou o membro ferido, no propósito de atingi-lo pela retaguarda.

O descendente divino, no entanto, virou o rosto antes de ela o alcançar. Por já aguardar tal aposta ofensiva, não foi pego de surpresa como a monstruosidade pretendia.

Só que, dessa vez, o tênue sorriso não mais se apresentava no rosto.

Ante a faceta austera do adversário, a ave hesitou por um momento uniforme, de forma inconsciente.

A súbita confusão ofereceu espaço para que o olimpiano executasse um rodopio, atingindo um corte certeiro contra o corpo dela.

O releixo rasgou a área central do torso, numa vertical ascendente.

Durante o deslocamento acelerado com a arma, ainda moveu o corpo à esquerda, desvencilhando-se das presas que rasuraram o ar.

Por sua vez, a sirena urrou um gemido de dor, interrompido pelo incongruente sentimento de perplexidade.

Tampouco pôde reagir contra o ferimento recebido, pois perdeu as forças e errou o ataque, passando batida à lateral do navio.

O plano para surpreendê-lo através da investida ágil acabou destroçado. E por uma reação contundente, odiava admitir.

A cicatriz atravessava do peito até pouco acima do umbigo. Muito sangue — quase negro — escorria daquela região, responsável por dividir seus seios.

Numa medida preventiva, resolveu não pousar. Meramente abriu distância na voadura.

Os globos estremeceram e a estatura inteira acompanhou o comportamento. Embora tomada pela mistura de dor e ardência, só acreditaria no baque sofrido ao conferir por conta própria.

Mirou abaixo, na altura do abdômen, e assombrou-se ao observar a gravidade do ferimento.

Mas ainda custava a confiar na própria visão.

O grotesco efeito do assombro lhe conduziu a deslizar os dedos indicador e médio na carne.  

A sensação arrepiante foi reiterada. O líquido, quente e viscoso, infestou as extremidades dos pequenos membros.

Após tudo ser ratificado diante de variadas formas, suas penas se levantaram.

Um calafrio congelante lhe arrepiou da cabeça aos pés.

— Seu maldito! — rugiu, indignada. — Como ousa me ferir dessa forma!!?

— Achou que eu ia ficar de braços cruzados esperando seu ataque? — Ele girou sobre os tornozelos, ficando de frente a ela. — Você mesma disse que sentiu a diferença entre a gente e os que já vieram. Isso devia te deixar mais cautelosa, né?

O tom confiante utilizado pelo jovem fez uma veia saltar na testa da mulher-ave.

Ela rangeu os dentes, controlando-se para não deixar o ódio lhe orientar a atitudes arriscadas.

Deveria evitar o enlouquecimento, sob qualquer hipótese.

Ainda que ciente quanto a tal diferença, abordada tanto por si quanto pelo espadachim, não esperava perder o controle da situação.

Inclusive, da maneira como se sucedera.

Pegou-se inapta a relembrar outros eventos no qual foi ferida num nível tão inquietante.

O desacostume a escoriações da determinada severidade foi o fator crucial que bagunçou sua mente. O simples fato de sofrer a dor proveniente do corte lhe enchia de repugnância.

“Maldição. Isso só pode ser brincadeira!!”, cerrou os punhos com vigor, os ossos aparentavam gritar em agonia. “Fui alvejada por esse pirralho! Logo eu!?”

Prestes a explodir em ódio e perder o controle do confronto...

Ela se acalmou.

Para espanto geral, a criatura relaxou a cabeça e suportou as calorosas emoções, prestes a impulsioná-la para investidas desgovernadas.

 Respirou fundo, a fim de driblar as provocações opositoras.

A razão de ter ido até aquele lugar voltou a clarear os devaneios. O sangue não parava de escorrer; caía pelas coxas e sujava as penas que as revestiam.

Detestava admitir, porém encontrava-se em desvantagem perante os desafiantes.

Ao identificar o conflito interno protagonizado pela agressora, Damon preparou a postura. Já visava o retorno ao combate e planejava ganhar cada vez mais superioridade.

O silêncio tornou-se angustiante, a ponto de toda a concentração dos presentes ser intermediada pelo ruído das gotículas escuras pingando no tapete aquático.

A repetição cadenciada misturava-se às fracas ondas, sobre as quais a embarcação dançava com leveza.

Tais pormenores demarcavam o primeiro instante de absoluta tensão durante o encontro.

Todo cuidado era pouco na busca pelo próximo movimento.

E tanto Silver quanto Lilith carregavam a mesma concepção dos principais combatentes.

Quem se mover primeiro tem grandes chances de ser derrotado.”

Longe disso, Thelxiepia usufruía da quietude em prol de checar as condições atuais. O grandioso ferimento carregava excessiva importância nesse cálculo.

De certo, aquele corte não seria suficiente para lhe matar. Ainda se tratava de um incômodo que a prejudicaria a longo prazo, caso optasse por uma batalha mais a sério.

“Para tudo há uma primeira vez. Compreendo o significado”, soltou outro lamento pela boca, deixando camadas de ar condensada flutuarem pela extensão.

Damon já tinha sido posto como o maior dos problemas. No entanto, Silver quase não agiu e Lilith sequer sacou sua arma durante os conflitos.

Uma troca de olhares decisiva serviu para fazê-la desistir de correr o risco.

Não poderia derrotá-los.

Ao menos, não sozinha.

Desse modo, projetou um sorriso sinuoso para mascarar a faceta estremecida. Em voz alta, proclamou:

— De fato, parece que correrei muitos riscos lutando contra vocês aqui! — Olhou por cima do ombro ao bater as asas. — Odeio admitir e ferir minha honra. Mas irei recuar.

Precursora da surpresa adquirida pelos apóstolos, a exemplo do aterrorizado marinheiro, a monstruosidade não pestanejou em dar meia-volta.

No ínterim de movimentos velozes com os membros plumosos, partiu em disparada, deixando rastros no vento.

— Iremos matá-los em nossa casa. É melhor se prepararem, seus insetos — complementou com olhos arregalados, antes de seguir o retorno.

Logo após desaparecer entre a espessa neblina, levou consigo toda a influência pesada da região.

Conformado, Damon sacudiu a espada, livrando-se dos resquícios de sangue arrancados da inimiga. Guardou a arma de volta à bainha nas costas em seguida.

Olhou para a dupla acompanhante. Ambos tomavam conta de suas posições até o perigo se dissipar por completo.  

— Ela... se foi? — grunhiu o marujo, mediante um suspiro que misturava temor e alívio.

Levantou-se, apesar do tremor intenso que lhe atingia as pernas. Forçou-se a manter o equilíbrio sem fraquejar.

A garota considerou auxiliá-lo, porém o próprio gesticulou em negação, prontificado a superar os problemas sozinho.

— Pelo menos foi um bom aquecimento — articulou o espadachim, enquanto se dirigia até o leme. — Conseguimos continuar?

— S-sim, meu jovem! Irei chamar os homens e avisar que o perigo se foi!

O grisalho, na retomada do equilíbrio após tanto tempo derrubado, resolveu mostrar serviço perante os jovens sublimes.

Caminhou apressadamente às escadarias que desciam à câmara inferior, no intuito de acalmar os tripulantes e conduzi-los de volta ao trabalho.

Nesse tempo, Silver averiguou o perímetro através da capacitada audição.

Confirmou o afastamento da sirena dentro de um singelo intervalo, portanto assentiu aos aliados.

— E aí? O que acharam da nossa inimiga? — O olimpiano se espreguiçou.

Seus olhos direcionavam-se às camadas enevoadas que persistiam nos arredores.

— Ela não utilizou sua habilidade principal — respondeu o prateado, seus braços cruzados. — Ainda não podemos subestimá-las.

— Eu concordo... — Lilith encarou as manchas no solo, criadas pelas gotas do sangue da mulher. — Senti que ela não veio com tudo que podia, mas ainda assim foi difícil de arrumar tempo para eu pegar meu punhal.

— A névoa também atrapalhou bastante... — Assentiu de soslaio. — Se elas estarão nos esperando, então devemos corresponder suas expectativas.

— Mas, sabe — ela murmurou, cabisbaixa. — Por que elas estariam em uma ilha tão remota como essa?

O ponto levantado pela ruiva pairou acima do silêncio, sem que qualquer solução pudesse ser assegurada.

Por mais que Silver não aparentasse se importar, Damon experimentou uma tênue inquietação ao pensar no assunto.

Afinal, Atena tinha dito sobre terem cometido “atos infratores” encarregados de exilá-las do panteão. Só não disse quais atos.

Desprovidos de tempo para ponderar, viram os mortais regressarem à cobertura superior do navio.

Ainda amedrontados, trocavam murmúrios relacionados às ocorrências recém-finalizadas, à medida que se direcionavam aos respectivos postos.

O comandante também não apresentava plena recuperação. Contudo deu a vida ao dever e comandou todos a seus remos.

A preparação foi concluída sem delongas.

Cada qual respirou fundo, prontificados a oferecem todo o gás acumulado durante a noite anterior.

Desse modo...

— Poderemos chegar em pouco tempo...

À par do mussito ansioso do grisalho, Damon girou à disposição no topo da proa.

A nau recomeçou o avanço lento, guiada pelo esforço dos homens que ainda buscavam a retomada das sanidades pessoais.

Quando romperam parte do denso nevoeiro, iluminados de novo pela estrela da vida, o cheiro de terra molhada invadiu as narinas do olimpiano.

Minutos foram percorridos até que a faixa desbotada fosse abandonada. Feita a longa viagem, o domínio natural cercado pelo Egeu compareceu à vista de todos os presentes na embarcação.

Pensativo quanto ao diálogo que teve com o jovem durante a madrugada, o arruçado engoliu em seco.

Não havia mais volta.

O único caminho acabava de tornar-se decisivo para a tarefa e, por consequência, a retomada da paz olimpiana.

Recebidos pela nova brisa da arrematada alvorada, os enviados pelos Deuses Olímpicos, em nome de todo um panteão, encontravam-se cara a cara com o destino.



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