Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4: Primeiro Assalto

O raiar do Sol no extremo horizonte anunciou a chegada do novo dia. O esplendor deliberado pela estrela apagou todos os pontos luminosos e devolveu o azul-ciano à extensão superior.

A exemplo de Lilith, Damon não aguentou a madrugada inteira e descansou pouco antes do amanhecer.

Por não se situar em sua casa, no Olimpo, foi incapaz de evitar a claridade provinda de todos os lados.  

No decorrer de um rápido despertar, virou o rosto à orientação de Silver.

Contrário ao fim da noite passada, se encontrava repousado sobre a curvatura da “cauda” da proa.

As pontas altivas do cabelo prateado eram conduzidas pela forte brisa. Os olhos relaxados observavam as fracas ondas da água.

Alguns peixes podiam ser vistos, nadando nos arredores da embarcação. Se mostravam por meio de saltos velozes, só para desaparecerem segundos depois.

Damon presenciou o pequeno espetáculo, à medida que soltava um longo bocejo.

Pensar sobre o outro apóstolo ter permanecido de vigia enquanto caía no sono o despertou certo embaraço.

No entanto, rapidamente varreu os devaneios fúteis ao balançar a cabeça.

Passeou com as vistas pelo transporte até encontrar a ruiva, a primeira a adormecer durante a viagem.

Seus braços unidos abaixo do rosto virado serviam no improviso de um travesseiro. Aparentava se contentar, mesmo com a proliferação dos feixes de luz.

Por fim, o capitão mortal deixou a região inferior do convés, trazendo consigo alguns homens sonolentos.

Delegou um bom dia a todos e dirigiu-se ao leme adjacente à popa, substituindo o outro marujo cansado que passou a madrugada no comando.

Os tripulantes arriaram a vela.

Com o vento mais forte, poderiam tirar proveito de uma velocidade mais acentuada, acelerando o tempo de travessia.

Àquela altura, a Ilha Methana já deveria reluzir ao alcance das vistas. A viagem tranquila, no entanto, trazia certa carga de inquietação aos enviados pelos deuses.

Após recobrar os sentidos por completo, Damon ajeitou a bainha no torso e analisou o extenso perímetro.

Diferente dele, Silver já tinha identificado uma singela alteração no clima.

Deixou de fitar o Egeu e levantou o semblante até encontrar a rala neblina que se espalhava, aos poucos, pelas cercanias.

E tampouco precisou dizer algo.

O cacheado logo identificou a formação vaporosa, que abraçou o navio inteiro. Na sequência da paisagem, uma camada ainda mais densa ganhou ímpeto.

A imagem da terra à vista continuava ausente.

— Enfim estamos próximos — murmurou o capitão, ao experienciar a ascensão de um calafrio pela espinha.

Suas memórias regressaram numa torrente tão desagradável em comparação à madrugada, quando abriu o coração ao enviado divino.

Procurava, com forte empenho, suportar a onda de traumas desperta pela chegada ao domínio.

A visibilidade piorou drasticamente, de acordo com o proceder da nau.

Todos os homens abandonaram as funções ao comando do grisalho.

Em estado de alerta máximo, o espadachim ajeitou a postura no centro da proa.

Qualquer surpresa poderia surgir em meio a um cenário imprevisível, que ganhava recheios de hostilidade.

No ameaço de um alvoroço, os marujos buscaram proteger as próprias cabeças.

— Saiam de perto da água. — A voz de Damon ecoou solitária através da neblina. — Acho melhor ‘cês se esconderem lá embaixo.

Toda a ansiedade, prestes a explodir em cada tripulante, foi acobertada pela influência dos jovens especiais.

Circunspectos, serenos...

Ambos já se postavam na vanguarda.

Nada obstante sobre a queda de confiança dos diversos mortais em suas costas, demonstravam firmeza corporal e psicológica além do comum.

A singela desorientação, ocasionada pela visibilidade quase nula, não era o bastante para lhes assustar.

“Se for aqui que os desaparecimentos acontecem, então...”

Concentrado a fim de encarar algum pronunciamento suspeito, Damon se lembrou de algo importante: a parceira, ainda adormecida.

Forçou os olhos até se aproximar à silhueta dela.

Agachou-se, uniu polegar e indicador e retirou o tufo de cabelo que lhe cobria a orelha...

— Acorda.

Largou o dedo maior contra o lóbulo exposto.

A súbita ardência naquela região a despertou num salto assustado.

— Ai! — Levou a mão à área atingida. — Quem fez isso!?

Ao se erguer do piso em tempo recorde, Lilith identificou a ausência de transparência perante os olhos.

Impedida de enxergar meio palmo à frente do rosto, empenhou-se a encontrar o responsável por atrapalhar seu belo sono.

Perceptivo à alteração reativa da garota, o garoto sequer considerou a necessidade de explicar as circunstâncias.

Dito isso, avançou diretamente ao ponto:

— Precisamos da sua visão.

O semblante dela se converteu, agora com as sobrancelhas arqueadas.

Avançou dois passos, que deliberaram rangidos à madeira. Focou-se no trajeto nebuloso durante um curto intervalo.

O rapaz se aproximou, no aguardo de alguma resposta. Mal podia distinguir a faceta da ruiva, que tropeçou na borda da proa e quase foi de encontro ao mar.

Depois de manifestar um grito sobressaltado, ela segurou a si própria e parou. Não se moveu nem mais um centímetro nos segundos seguintes.

A título de curiosidade, o garoto indagou:

— E aí?...

Ela estreitou as vistas rubis ao limite.

Passado mais um breve intervalo de quietude, contorceu os lábios em negativa.

— Enxergar através de uma névoa é diferente de enxergar através da escuridão. Não consigo ir muito além aqui...

O apóstolo compreendeu a limitação imposta pela aliada.

Ela ainda buscava ultrapassar a barreira brumosa de determinado modo, porém o jovem já se agarrava à concentração dos sentidos restantes.

Novos minutos se foram, arrastados. Inseridos no cerne da área turva, eram circundados pelas ondas fracas; o entrecorte do silêncio.

Boa parte dos mortais seguiu o comando anterior e regressou à câmara inferior do convés.

— Algo se aproxima — murmurou Silver

Ao receberem a fraca mensagem, os outros dois elevaram a precaução.  

Nenhum deles, contudo, teve a capacidade de decifrar presenças externas. A embarcação, de súbito, passou a perder velocidade.

Os marujos deveriam remar. Mas isso configuraria um risco desnecessário, formou-se um pensamento geral.

Não somente isso, já que a maioria tinha descido do pavimento superior e não voltaria até que o cenário se apresentasse favorável.

Em suma, perder homens naquele local complicaria tanto o prosseguimento à ilha quanto a volta para casa.

— O que está vindo? — A ruiva enfim questionou.

— Um ruído fraco.

— Mas... não escuto nada.

A exemplo da companheira, Damon não notava o discernimento sonoro que o rapaz dizia ter captado.

Invés disso, tentou inspirar o máximo de ar possível através das narinas, onde enfim encontrou um aroma diferenciado pairar.

Na disposição do prateado, o ruído prosseguiu incômodo. Assemelhava-se a uma sinfonia peculiar, entoada num timbre agudo.

A proliferação ímpar serviu para colocar em xeque seus sentidos corporais.

Aprofundou a introspecção, no desejo de compreender com nitidez o que diabos a disseminava.

Imerso nas camadas de serenidade interior — os cílios próximos a se tocarem —, percebeu a aproximação do segundo apóstolo.

Não lhe dirigiu atenção, todavia.

“Atena me falou disso”, Damon não soava tão surpreso. “Outro com um sentido e tanto, hein...”

Enquanto todos expectavam em absoluto silêncio, o jovem de ouvidos potentes detectou a aproximação do sonido.

Durante o período, a adrenalina ascendeu o corpo do capitão, que continuava na superfície.

Uma gota de suor escorreu do rosto recheado de cicatrizes e pingou no solo de madeira.

— Uma voz... Está tentando nos atrair — Silver proclamou, com calma. — E se aproxima numa melodia crescente.

Com o veredito, o espadachim captou imediatamente sobre o que se tratava.

A repetição das ocorrências resumidas pelo grisalho se confirmava.

Não à toa os marujos ficaram tão nervosos, mesmo acostumados a condições climáticas adversas em navegação, pensou.

Por consequência, as informações repassadas pelo corajoso mortal valeriam de algo. Tratava-se de um dos cenários previsíveis para os descendentes olímpicos.

Não tinham atingido a ilha, porém já se situavam no cerco delas.

Só então os demais tornaram-se aptos a identificar a aproximação da dita melodia. Afiada em sua essência, trazia tremores intensos ao corpo inteiro dos despreparados mortais.

Cresceram ao ponto de fazer o capitão sucumbir os joelhos contra o plano horizontal, sem sequer perceber.

Alguns dos homens, preocupados, dirigiram-se a ele ao contemplarem a queda. Graças a seus auxílios, o senhor encontrou forças para recobrar a compostura.

Boa parte do café da manhã ameaçou percorrer o caminho de volta à garganta. Empenhou-se a repelir a ardência, visando não expulsar o conteúdo estomacal.

Acabou derrotado pela ânsia, no fim.

Num deslocamento impulsivo, disparou à estibordo do navio e vomitou tudo na água.

Debruçou metade do tronco para fora do transporte, até um calafrio letal lhe atiçar a nuca.

Tentou recuar. Entretanto, o arrepio o manteve aprisionado naquele ponto.

A única ação que conseguiu realizar foi grunhir, como um porco na linha do abate.

Na proa, os apóstolos captaram o chiado gerado por ele.

Damon disparou uma rápida olhadela por cima do ombro e, no instante equivalente..., a melodia cessou.

Silver realizou um salto fulminante a fim de abrir distância da borda. Puxou a capa de Lilith nesse movimento, a trazendo para os degraus inferiores da cobertura.

Quando o espadachim percebeu...:

— Saiam da beirada! — vociferou, conforme terminava de girar o corpo.

Não cogitou duas vezes em disparar à vertente do mortal envergado sobre a borda. Exemplar ao que o aliado fez com sua parceira, o puxou de volta pelo colarinho da cota de malha.

Depositou força extra para lançá-lo ao centro do transporte. Quando o fez, uma aura cortante, saturada de intenção assassina, manifestou-se em sua retaguarda.

As narinas foram infestadas pelo aroma sanguinário, proveniente da cortina desbotada nas cercanias.

Seguiu o instinto e agachou na velocidade do pensamento, sem tampouco se prestar a descobrir o emissor daquela influência.

Em virtude desse deslocamento, desvencilhou-se de garras afiadas que ferozmente cortaram o espaço, rente às pontas curvilíneas do topo do cabelo.

O líder dos mortais esgazeou os olhos ao limite, em contemplação dos membros que surgiram e desapareceram entre a névoa num piscar.

Já o apóstolo recobrou a estabilidade seguida da evasão. Puxou mais uma vez o amedrontado, à medida que se estabelecia distante da margem.

Uma gota de suor escorreu a lateral da face. O faro, encarregado direto de salvá-lo da investida surpresa, se manteve aguçado.

A sequência de ações rompantes fez com que Lilith e Silver girassem à direção da popa.

O terremoto corpóreo não permitia ao grisalho se reerguer. Os marujos vulneráveis situavam-se petrificados, próximos do leme.

Um estalo de língua insatisfeito soou do ponto de origem do odor mortífero.

Damon focou os olhos estreitos ao ajeitar a postura à frente dos marinheiros.

A dupla aliada rapidamente se postou na formação de um triângulo protetor, onde deixaram todos os homens no epicentro.

Nenhum deles ousou proferir um pio.

“Esse cheiro já diz tudo”, encarou de canto, através de uma faceta contraída.

Inspirou o ar com elevada demora em comparação ao habitual.

Passeou com a mão dominante até tatear a empunhadura de dragão, à mostra na bainha de couro.

Dotado de extrema cautela, fechou o palmo sobre o material gelado e sustentou a forma durante um breve instante.

— Fiquem calmos — transmitiu aos homens, à sua direita.

— Será que isso é...?

— Sim. — Franziu a testa, antecipando a indagação da parceira. — Já vieram nos dar as boas-vindas.

No seguimento da resposta, um estampido levantou bastante água na ala oposta.

Adiante a qualquer outro presente, Silver girou e puxou a lâmina azul da cintura, no intuito de cortar o acúmulo enevoado.

As presas regressaram à vertente dos tripulantes no meão.

O acalmado, mais uma vez, excedeu-se a todos e dirigiu-se à vanguarda dos vulneráveis.

A lâmina ligeiramente curva foi repousada diante do torso, permitindo a colisão das garras quase invisíveis que o atacaram.

No passo que o tilintar reverberou, Damon agiu conforme o manual e, enfim, sacou a grande espada.

A criatura ofensiva demonstrou espanto ao enxergar o brilho da câmera branca, que buscou o proveito criado pela defensiva do companheiro em prol de lhe atingir.

No segundo do avanço perfurante, bateu as asas num impulso instintivo e esquivou-se do ataque.

— O seu truque não vai funcionar duas vezes.

— É mesmo?...

Perceptivo à voz feminina, os lábios do olimpiano contraíram-se num fraco sorriso.

A mulher regressou à névoa e tratou de esconder a presença mais uma vez.

Contudo era inútil.

Tal presença já fora demarcada no olfato do cacheado, na visão da de caudas gêmeas e na audição do argênteo.

Não seria capaz de afligir o trio. Não enquanto estivessem absortos a qualquer sinal ameaçador resultante da furtiva. 

O tempo adquirido pelos apóstolos foi suficiente a favor da fuga dos tripulantes, convés abaixo.

Só faltava o desestabilizado comandante, que procurava demonstrar alguma coragem no semblante enrugado.

Nesse ínterim, Damon sussurrou:

— Se abaixem.

Os acompanhantes não consideraram questioná-lo a razão. Sucederam o que foi dito e inclinaram os troncos à direção do solo.

O espaço foi aberto, favorecendo a execução do plano considerado pelo espadachim.

Alavancou a arma num rápido deslocamento, responsável por lacerar o espaço com demasiada potência. Tal movimentação criou uma corrente de vento poderosa.

O solavanco chacoalhou o navio. Os homens na câmara inferior foram derrubados; na cobertura, o comandante quase foi junto.

Apesar do transporte ter avançado poucos metros, o objetivo primordial do garoto passava unicamente à abertura da densa neblina.

Retomada a visibilidade parcial, os enviados olímpicos tiveram o desprazer de encontrar a figura da mulher que planava sobre o Egeu.

A criatura invadiu o interior do transporte e tentou despistar os rapazes alertas.

Fixou o alvo em Silver e disparou. Esse, todavia, reagiu num salto rápido e desviou da investida rasante sem problemas.

Espantada diante do simples — porém, preciso — movimento, arriscou bater as plumas na orientação contrária do alvo.

Então, mirou em Lilith, ainda desarmada.

Diante disso, Damon avançou um passo e contra golpeou. A mulher-pássaro tornou a movimentar os apêndices e jogou-se para o lado oposto, mas não foi o bastante.

A espada rasurou sua bochecha, criando um corte pequeno.

Fios do cabelo loiro foram derrubados no chão, em união às gotas do sangue escuro.

Parou diante dos três, acima da cabeça da estátua no centro da proa.

Eles, finalmente, identificaram suas asas de penas marrons.

Ignorando o ferimento, virou-se na iminência de um sorriso afiado, abrindo os pares conectados às escapulas.

O corpo, voluptuoso, revelou-se coberto por peças de pano e outras penas de tonalidade equivalente.

— E então, sirena? Gostou dessa entrada?

À medida que o cacheado sorria, o marinheiro desabado desejava se esconder em um casco invisível.

Passou a entoar orações pela dádiva dos bons deuses, para que aqueles jovens pudessem apagar seus tormentos.

Lilith e Silver resguardaram as posições, ambos concentrados na adversária.

A exemplar cariciou os dedos acima da pele rasgada, bem abaixo de um dos olhos vermelhos.

Conduziu o líquido viscoso à proximidade dos lábios... e o lambeu.

Na sequência, arrastou a língua sobre os beiços saltitantes, demarcando-os na escura tonalidade com deleite.

— Sim, adorei... — murmurou em tom prazeroso. — Será um banquete e tanto para a grande Thelxiepia!

Os dentes protuberantes ganharam destaque, à medida que o sorriso auferia uma ferocidade grotesca.



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