Volume 1 – Arco 1
Capítulo 3: Apóstolos dos Deuses
Vide seus companheiros, Damon regressou ao cômodo pessoal antes de partir à Ilha Methana.
Ao adentrar o quarto, pegou um objeto guardado abaixo da cama.
Da bainha de couro, com contornos de louros costurados, retirou uma grande espada. Ela possuía a empunhadura detalhada com o rosto de um dragão.
Encarou-a durante breves segundos. A lâmina, bem polida, refletia a respectiva face inexpressiva.
Na sequência, guardou-a com zelo. Trouxe a alça do estojo ao pescoço e o posicionou nas costas.
A exemplo da manta cerúlea, cruzava o torso em diagonal; do ombro a um bocado acima da cintura.
Após encerrar os singelos preparos, só lhe restava concluir sua despedida...
— Irmão?...
Uma voz infantil ecoou pelo cômodo, lhe chamando a atenção no entrecorte do pensamento.
Ele virou o rosto à porta semiaberta, onde residia a figura responsável por entoar a mensagem.
A garotinha situava-se encostada na estrutura de madeira, a mão repousada sobre a fechadura.
Seu cabelo cor de vinho, bem mais puxado ao carmim em comparação ao do rapaz, era bastante volumoso.
As características pontas curvilíneas também saltavam aos olhos, de aparência bastante bagunçada graças à extensão até a cintura.
No topo, duas anteninhas ofereciam o charme conclusivo à sua feição angelical, levemente sombreada pelas franjas a caírem sobre parte dos globos azul-claros.
— Você vai sair pra onde? — perguntou, a mão cerrada sobre o peito.
Não havia outro caminho, afinal, lhe reconhecia no traje que costumava utilizar durante suas tarefas, além do equipamento disposto no torso.
Ambas as linhas de visão se cruzaram. Estabeleceu-se um curto momento de quietude, antes do questionado declarar:
— Uma missão. Essa deve ser um pouco mais complicada, por isso Atena disse que vai te levar pra casa dela de novo. — Ajeitou o suspensório, de maneira a reduzir o incômodo sobre o peitoral. — Mas devo retornar em breve.
Perante a resposta oferecida pelo irmão, ela encarou os próprios pés.
— Entendi.
Tanto a voz quanto o semblante cabisbaixo despertaram certa inquietação em Damon, que se aproximou da passagem entre quarto e corredor.
Pôde notar em dose elevada a preocupação da garota manifestada através de seu rosto.
— Ei, Daisy. Aconteceu alguma coisa?
Levou a mão sobre a cabeça dela, projetando um fraco sorriso com os lábios.
Ela fechou as vistas lentamente, permitindo-se a aproveitar o gesto carinhoso. O contentamento, no entanto, durou pouco.
— Eu também quero ir, junto com você! — Tornou a afastar os cílios, em revelação ao brilho no olhar. — Quero me tornar logo uma apóstola como você!
O jovem não se espantou com os dizeres da semelhante.
Somente lhe entregou uma risada presa entre os dentes.
— Não fica assim. Quantas vezes já te disse que precisa ser paciente? Você ainda é muito nova, essas coisas demoram. Até eu demorei.
A criança recebeu a gentileza sorridente do irmão sem dizer algo em retorno.
Esse, por sua vez, envolveu o delicado punho dela, fechado contra o tórax.
Foi capaz de sentir os compassados batimentos cardíacos.
— Você tem que ir no seu ritmo. Então continue dando seu melhor pra que esse dia chegue logo.
Encarada por uma faceta tão confiante, reagiu ligeiramente boquiaberta sem sequer notar. Num impulso sublime, a mão livre resolveu viajar, vagarosa, em direção a testa dele.
Os dedinhos esticaram, porém, antes de conseguir tateá-lo, resolveu recuar.
Balançou a cabeça na horizontal, duas vezes, antes de levantar os lábios rosados envolvidos pelo rosto alvo.
Na desistência da ação primordial, lhe abraçou com força, num entrelaço dos delicados braços em seu pescoço.
— ‘Tá bom, irmão! Eu vou continuar me esforçando!
— É isso aí. E fica tranquila, sua hora já chega. — Apoiou as palmas sobre seus ombros. — Vou te levar lá fora. A Atena ‘tá esperando.
Dito e feito, o apóstolo conduziu-a pelo trajeto da pequena residência após fechar a porta do quarto.
Seguiram a passadas curtas até o saguão principal, onde a figura austera já os aguardava.
Bem próxima do guarda-corpo que precedia o belo cenário, escutou o ruído da estrutura metálica e corrupiou-se no exato instante.
Ao encontrar o surgimento da dupla, foi recebida pela nova onda de euforia que dominou a expressão da menina.
— Irmãzona! — Correu até a deusa e se jogou contra ela, em um enlace apertado na cintura.
— Olá novamente, Daisy. — Por sua vez, direcionou os globos esmeraldinos ao rapaz adiante. — Portanto, já está pronto, Damon?
— É — replicou, em retorno ao desinteresse.
— Daisy continua a almejar demasiadamente o posto inédito na corporação. Poderia, por obséquio, não a influenciar de maneira errônea com a respectiva atitude?
A indagação de leve teor repreensivo o deixou desconcertado, enquanto a pequena riu.
— Então conseguiu se livrar do velhote sem problemas — desconversou com o rosto distante.
— Lhe prometi que regressaria o quão breve antes. Primeiramente levarei Daisy à minha residência. A concederei ao cuidado das garotas. Porém, antes disto...
— O quê? — Cruzou os braços.
— Cá permaneceremos ao limite da alvorada. Será uma fração transitória de seu programa de treinamentos, portanto tomei a liberdade de antecipar isto de vez. — Encarou a pequena. — Deste modo, não haverá possíveis imbróglios entre nosso combinado.
— Então já vamos treinar aqui!?
A pequenina realizou preciosos saltos de euforia, à medida que os olhos cintilavam.
— Precisamente. Carecemos de aproveitar a rara disponibilidade que nos é permitida.
Conforme Daisy comemorava o novo passo que seria avançado rumo ao grandioso desejo, o mais velho não conseguiu esconder sua feição de contentamento.
Portanto, exalou um rápido suspiro. Avançou na orientação de ambas.
Os olhos escuros pareceram ganhar novo fulgor defronte o belíssimo entardecer.
O Sol se despedia no limiar do horizonte. Escondia-se detrás de construções distantes, que ganhavam contornos cada vez mais deslumbrantes no jogo de luz e sombras.
— Leve isto. — Atena lhe lançou um tecido prateado, que ele apanhou com a palma dominante. — Evitará um provável reconhecimento por parte dos mortais.
O garoto encarou aquela que era uma capa. Ficou assim por um tempo, até que a deusa pudesse ler sua próxima ação.
— Não quero. — Jogou-a de volta, sobre o rosto da irmãzinha.
E saltou sobre a balaustrada de gesso.
De pé na superfície horizontal entre os grandes pilares, virou o rosto por cima do ombro.
A menina reagiu boquiaberta, de olho na postura superior do irmão.
Longe disso, Atena lhe fuzilou através do olhar.
— Damon. — O último chamado de Atena o fez olhar por cima do ombro. — Nem cogite...
Ele, no que lhe concernia, deu de ombros e balançou os dedos indicador e médio sobre a têmpora.
— ‘Tô indo. Deixo a Daisy em suas mãos.
Antecipado a qualquer declamação de uma delas, saltou no declive rochoso e iniciou a descida veloz.
Daisy se livrou da manta e correu para o parapeito, debruçou-se com metade do pequeno tronco.
Acenou, efusiva, em despedida com o braço canhoto.
— Boa sorte na missão, irmãããão!!
A deidade superior observou o prosseguimento do apóstolo pelos rumos do monte abaixo.
— Ele nunca aprende — bufou, mediante um sorriso compelido.
— Um dia vou descer a montanha igual ele!
— Não se disponha às más influências, Daisy. Caso não queira receber uma advertência, é claro.
— Heeein?
Sua reação desiludida, de sobrancelhas arriadas, contrastou com o riso pacificador da mais velha.
Damon prosseguiu, em desprezo às escadarias que concebiam o trajeto correto dentre os saguões espalhados pela extensão olímpica.
Saltava um por um, retilíneo, desinteressado com possíveis consequências.
Nessa toada, alcançou o andar final. O restante da trilha resumia-se ao declive franco, arranjado por orgânicas formações rochosas.
Sem hesitar, mergulhou contra o aglomerado níveo que dividia o reino celestial do mundo abaixo. Não demorou a acessar as sombras da montanha, precedentes às primícias da grande pólis.
Ao passo que reduzia a celeridade sobre o relevo irregular, chegou no solo sem causar grandes rebuliços.
Passada a conclusão da aterrisagem triunfal, encontrou a garota de caudas gêmeas escarlates bem ao lado.
Ela o direcionava um olhar alarmado. Os supercílios alçados e os ombros rígidos indicavam o sobressalto acarretado por sua súbita aterrissagem.
— Já ‘tava esperando? — Acenou com a cabeça, como se nada tivesse acontecido.
Ela respirou fundo, a fim de controlar o desequilíbrio.
— Acabei de sair.
— Sei. Então vamo’?
Trocaram olhares por mais algum tempo. A jovem utilizava uma capa roxo-escura, que a cobria do pescoço aos joelhos.
— Vamos.
O cacheado observou-a dar partida na caminhada à frente. Lhe acompanhou pelo trajeto vazio, um pátio aberto circundado por pequenos templos.
— Faz tempo que não vamos em uma missão — ela mussitou, enquanto encarava o topo celeste.
— Verdade. E sempre fomos só nós dois, mas agora chamaram aquele garoto também. Fiquei sabendo que ele não se dá muito bem com duplas, imagina um trio...
A ruiva não respondeu à questão resmungada. Focou-se em sustentar a firmeza nas passadas, disposta a alcançar um fino portal luminoso, praticamente invisível à olho nu.
A dupla acessou a rota espectral, uma espécie de túnel de luz que originava o acesso especial na cobertura da grande cidade.
No solo inaudível, no teto intangível e nas laterais translúcidas, as sete cores do arco-íris se alternavam.
— De qualquer forma, vamos dar nosso melhor — Lilith completou ao esboçar um fraco sorriso.
O rapaz percebeu uma estranheza na expressão que ela carregava, porém optou por conservar o sentimento consigo.
Ele demorou a responder com morosidade:
— Sim...
Era o começo do novo caminho que trilhariam em suas vidas.
Encostado numa grande pilastra de madeira, o jovem prateado contemplava o pôr do sol sobre o Mar Egeu
À exceção de sua cabeça, tinha o corpo inteiro acobertado por uma manta azulada. Conforme os braços cruzados, aguardava a chegada dos dois companheiros em um dos píeres do porto.
Nesse meio tempo, o trabalho dos inúmeros homens, dentro e fora do barco mais próximo, preparava tudo para a partida.
O transporte indicado pela Deusa da Sabedoria parecia ter porte suficiente para uma avultada tripulação.
Além dos de maior idade, prevalentes na região que disseminava um aroma singular, alguns jovens infiltrados se moviam para lá e para cá.
A falta de experiência podia ser vista em suas expressões fadigadas. Em suma, acabavam compensados pelo homem de cabelo grisalho, posicionado na proa da nau.
Esse deveria ser o capitão, pensou.
Apesar da distância, fitava seus olhos castanhos com atenção. A firmeza estampada em cada íris dava a impressão de que eram olhos que já conheceram a morte de perto, mais de uma vez.
Depois, as cicatrizes espalhadas pelos braços e rosto comprovavam essa sensação.
— Então são eles que vão nos levar? — A voz conhecida desprendeu sua atenção, trazendo incômodo aos ouvidos.
Damon e Lilith surgiram detrás da coluna, logo após o primeiro ter indicado sua indagação.
Passado o instante taciturno, o pontual semicerrou os globos cor de mel ao responder:
— Sim. Finalizaram os preparativos agora.
Os recém-chegados passaram a acompanhar as atividades dos navegadores disponíveis.
Concentrado em guiá-los, o grisalho percebeu a reunião do trio encapuzado. Embora o objetivo da vestimenta fosse despistá-los, aparentava ter o efeito contrário.
Esse pensamento rápido seguiu à virada de rosto dele para eles, à execução de um rápido aceno com o braço.
— Acho que é o sinal para irmos — disse a garota, o dedo em riste na orientação do mortal.
Num consenso, os apóstolos partiram à embarcação, ao passo que os marujos terminavam de arriar as velas.
Algumas horas se passaram. As estrelas começavam a surgir, revelando suas resplandescências pulsantes na escuridão celeste.
O navio zarpado do porto de Olímpia já se situava em navegação no Mar Egeu.
— Louvado seja lorde Poseidon. O mar está tranquilo essa noite.
O timbre rouco do capitão entoava confiança perante o oceano.
Após utilizarem as próprias forças para remarem até colocar o transporte em movimento, os homens foram dispensados e puderam descansar abaixo do convés.
Junto a ele, postado ao lado da estátua na proa, Damon observava o céu.
Podia sentir a encarada de soslaio que vinha ao lado, conforme segurava a toca para que não esvoaçasse com o vento frio.
Do ponto de vista do mortal, sua presença exalava tamanha austeridade a ponto de atrapalhar qualquer tentativa de comunicação.
E não calhava somente a si.
Os outros acompanhantes transmitiam sensações distintas, porém niveladas à uma influência dominante.
Silver não demonstrava preocupação ao repousar na borda para o casco lateral, de olho nas águas obscuras.
Por outro lado, Lilith descansava grudada a um dos mastros, os olhos semicobertos pelo cabelo estavam cerrados.
Receoso em virtude do absoluto silêncio, cortado pelos uivos da brisa e as fracas ondas marítimas, o homem limpou a garganta.
— Vamos... demorar um pouco mais pra chegarmos na ilha que desejam, já que o vento não está tão forte como costuma nessa época. Provavelmente desembarcaremos ao amanhecer.
— Não se preocupe com isso.
Frente a resposta seca do rapaz, conservou-se ao silêncio e engoliu em seco.
Passeou com os olhos cansados sobre o porte mediano dele; os braços cobertos não pareciam tão musculosos, embora longe de serem franzinos.
O aspecto mais chamativo provinha da espada, embainhada atrás do torso. Fixou a concentração no cabo à mostra. A faceta do dragão carregava olhos vermelhos.
Apesar de reconhecer a beleza nos detalhes, remeteu a memórias nada agradáveis. As chamativas cicatrizes espalhadas pelo corpo pareciam arder.
— Vocês são tão jovens — murmurou, cabisbaixo. — Estão indo derrotar... aquelas criaturas, não é?
O apóstolo o encarou de esguelha. A incompleta atenção foi o suficiente para que trouxesse arrepios à sua nuca, como se fosse uma criança envolvida pela nevasca.
— Conhece essas Sirenas?
Ao arranjar firmeza na postura, exalou um duradouro suspiro e tornou a observar as águas tranquilas.
— Como não poderia conhecer? — Cerrou os punhos, as veias saltaram. — Muitos companheiros meus provavelmente foram vítimas desses monstros. Eu mesmo quase fui...
Afligido pela pujança física e mental, ocasionadas pelas evocações traumáticas, não resistiu a mordiscar o próprio lábio.
— Sobreviveu a elas? — O jovem demonstrou curiosidade ao indagar.
— O Canto delas nos atraiu. Toda minha tripulação anterior foi dizimada. Era só uma, mas... — Agora, rangia os dentes, enraivecido. — Consegui fugir vivo por sorte. Orei tanto aos deuses! E mesmo assim apenas minha vida foi poupada.
— Então, por que aceitou levar a gente? Não tem medo?
— Medo... sim, tenho muito medo. — Encarou a palma canhota, recheada de marcas lacerantes. — Mas eu recebi uma visão nesta manhã. Tenho certeza de que foi uma mensagem dos bons deuses!
O apóstolo não reagiu diante do discurso eufórico.
Com a chave virada em seu coração maltratado, o marujo deu procedência ao encarar a estátua feminina no centro:
— Eles me disseram que iria terminar. Todos os paradeiros, o sofrimento... tudo iria terminar caso eu vencesse meus medos e fosse até elas de novo!
Projetou um sorriso trêmulo ao findar a declamação. Apesar da sinceridade nos dizeres, não foi apto a ocultar o temor mascarado na face desgastada.
Em respeito a isso, o garoto mussitou na vertente da limpa abóbada:
— Isso vai terminar. Seus companheiros e todas as vítimas vão poder descansar em paz.
A mistura entre seriedade, confiança e influência nas palavras do descendente divino contaminaram o capitão com uma ternura indescritível.
Apesar da experiência carregada pela idade, sequer percebeu os próprios lábios afastados.
A tal visão que afirmou ter recebido, a aura irradiada por aqueles jovens... tudo parecia se encaixar, aos poucos.
De todo modo, as preces contínuas poderiam, enfim, estarem sendo atendidas. Alguma resolução para que tanta dor fosse expurgada, enfim, estava em curso.
Em suma, não aguentou as estribeiras ao contemplar a figura protetora feita, em boa parte, por mármore.
O sorriso sinuoso estremeceu, as mãos marcadas por tantos traumas entrelaçaram-se e os cílios conectaram-se com sutileza.
Na presente postura, delegou sua prece às boas divindades.
O enviado pelos deuses o mirou, taciturno, enquanto prestava seus agradecimentos através de singelos sussurros.
Inapto a esboçar qualquer reação, resolveu deixá-lo a sós no momento pessoal.
Extasiado, logo se despediu e regressou ao dormitório inferior do convés.
“Então é assim que eles imaginam a Atena?”, Damon permaneceu de prontidão na proa, contemplando a estátua delegada à Deusa da Sabedoria.
Em virtude da breve história contada pelo senhor, passou a cogitar as chances de serem surpreendidos ainda em alto-mar.
Possuía o companheiro prateado, apesar do respectivo situar-se tão concentrado na água escura quanto no interior da embarcação.
Caso algo ocorresse, no mínimo, lograria de contar com seu auxílio.
Todavia acabou por interromper os devaneios, no instante que os ouvidos foram invadidos por um estranho burburinho. Logo imaginou quem deveria ser...
— Se eu dissesse que fiquei tocada com essa conversa, você acreditaria?
Lilith se levantou após despertar do cochilo. Delongou-se ao esticar os braços, conforme aproximava-se do rapaz no topo.
Ele se virou pela metade, a encarar as esferas oculares da parceira. Assemelhavam-se a faróis escarlates, acesos mediante um efêmero brilho circundado pela escuridão noturna.
Subiu os degraus e postou-se ao lado dele.
Tirou o capuz e deixou as caudass gêmeas menearem, graças ao vento gelado que vinha do domínio aquático na extensão.
Levou alguns fios rebeldes, com os dedos, sobre a orelha.
Por fim, respirou fundo o ar fresco, repleta de elegância.
— Então você finge estar descansando pra bisbilhotar os outros? Isso é bem feio, sabia? — O jovem voltou a encarar o trajeto.
— Eu estava realmente descansando. Acontece que acordei ao ouvir a conversa. — Posicionou o indicador abaixo do queixo. — Ele é realmente bem corajoso. Mesmo pra um mortal, chega a ser louvável.
O silêncio tornou-se predominante por um milésimo.
Damon regressou a fitá-la de soslaio, enquanto ela já o fazia. Os olhares se cruzaram e assim permaneceram durante um período superior.
No fim, a apóstola optou por escapar do contato.
Por alguma razão, ele experimentou uma torrente estranha lhe sacudir o peito.
Embora habituado a contemplá-la, sua companheira de longa data, passava a perceber pormenores inéditos estampados em sua feição sossegada.
Um bocado atônito, desconversou:
— Não vai voltar a descansar?
— Infelizmente estou sem sono algum no momento.
Ela ergueu o queixo, buscando exalar um ar triunfante — e desviar o foco do estranho embaraço.
A despeito de sua faceta resoluta com a resposta, o jovem não se sentiu tão convicto quanto aquelas palavras. Aquilo lhe arrancou um sorriso quase indecifrável.
Pela segunda vez, a ruiva esticou o torso, soltando um uivo baixinho em deleite à execução do deslocamento. Ambos continuaram ali, sem qualquer sinal de terra à vista durante o lento proceder.
Ao passo que nada ocorria, o tédio ganhava corpo. A jovem estava ciente com relação à arremetida apenas ao amanhecer, graças à observação do diálogo anterior.
E isso servia, única e exclusivamente, para fazer sua ansiedade crescer...
— Eu vou ficar acordada contigo até chegarmos — disse mais para si do que para o garoto.
— Vai, é? — E ele franziu as sobrancelhas.
— Estou bem habituada a fazer isso pelas madrugadas.
Disposta a cumprir a própria declaração, bateu pernas e ficou na proa.
Damon continuou a encará-la, incompreendido quanto as circunstâncias que a levaram a tomar tal atitude.
Restituída a quietude, cortada pelos ruídos do transporte em movimento, restava ao trio aguardar paciente até o desembarque no destino.
No fim das contas, mesmo perante a insistência da aliada, o apóstolo já sabia como aquilo deveria terminar...
Menos de uma hora se foi, o suficiente para que a garota eletrizada sucumbisse à sonolência.
A cutucou, com cuidado, no braço adjacente. Confirmou o estabelecimento de seu profundo estado de sono.
Preferiu deixá-la quieta. Notou suas olheiras fundas sob os olhos fechados, tendo a compreensão de que aquele período lhe seria proveitoso, fora dos domínios olímpicos.
Sem perturbações, poderia dormir o quanto pretendesse até o amanhecer.