Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Sonho

Um borrão peculiar residia no centro do espaço branco. Assemelhava-se a uma chama escura, destoante do ambiente silencioso.

Ainda assim, gerava calor suficiente para alcançar os olhos azuis que a observava.

O rapaz sentia o corpo flutuar, contudo encontrava-se “erguido”.

Toda a luminosidade parecia monocromática; não havia céu ou terra, somente o vazio irrestrito.

Acima, abaixo ou a qualquer lado... Nada além dele e da figura escurecida se fazia presente.

Olhou para aquilo durante breves segundos. Sentia-se misteriosamente instigado, como se conduzido pela energia invisível na plena inconsciência.

Nada era compreensível; tampouco o fato de situar-se presente naquele local, ou o desconforto que parecia gritar em seu coração.

No fim, pôde identificar traços de familiaridade em meio ao turbilhão emotivo.

O interesse cresceu. Tentou varrer o incômodo de lado e se concentrou em avançar um primeiro passo.

Sem conseguir qualquer resultado abaixo dos pés descalços, empenhou-se a equilibrar o restante do corpo com cuidado.

Enfim pôde se deslocar com sutileza.

Durante a interrupção da passada inicial, o borrão oscilou; parecia ter executado um movimento reativo.

Isso fez o garoto brecar as tentativas em prol de seguir em frente.

Quando encarou, a chama suja estendeu algo em sua direção. Nenhuma determinação para prosseguir restou.

Restou-lhe o congelamento absoluto, dominado por temor.

Portanto, antes que pudesse obter uma resposta, observou um efeito de estranheza tão superior.

Era um sorriso.

Um sorriso quente como o sol...

Os olhos lentamente se desdobraram ao reconhecerem a claridade através das pálpebras.

O jovem despertou em sua cama, livre do devaneio extravagante.

Apesar disso, agarrou-se como pôde aos últimos detalhes, antes que fossem apagados da memória.

Na retomada dos sentidos, constatou um toque lhe remexer o corpo. Por conseguinte, levou a linha de visão abaixo.

Um braço alvo estendia-se acima de seu peito, a mão o tateava no ombro.

Durante um milésimo, imaginou ser a mesma do esboço visualizado no âmbito sem vida. Por isso, arregalou as vistas e levantou o torso.

A reação assustada o revelou o contrário das expectativas.

— Bom dia. Quase tarde, senhor dorminhoco. — Uma madura voz feminina tratou de cumprimentá-lo.

Enganado pela própria mente, ainda conturbada pelo sono, ele resmungou com fraqueza.

O tempo gasto a fim de habituar-se aos raios solares foi o equivalente a fim de reconhecer a identidade daquela figura em pé, ao lado da cama particular.

Primeiramente visualizou o longo cabelo roxo, solto em ondulações singelas a cair sobre os ombros e até a metade das costas.

Em seguida, verificou a vestimenta branca a reluzir à luminescência que invadia o recinto.

— Atena...

Levou a mão direita à frente do rosto, na busca de impedir o contato direto entre os olhos e o brilho adiante.

Ainda assim, confirmou a fisionomia da mulher, preenchida por um sorriso aprazível.

Livre da perplexidade, tornou a relaxar sobre o colchão.

Com a prova de que ele já tinha acordado, a adulta desviou o olhar e arrancou o lençol de suas pernas.

Passou a dobrá-lo logo na sequência, mediante movimentos balanceados e dotados de extrema precisão.

— Que horas são? — ele perguntou, enquanto esfregava as vistas.

— Já passou da hora de se organizar em prol da tarefa que lhe antecipei. Recomendo que levante e conclua os afazeres pessoais o quão antes for necessário. Nosso pai o aguarda no Salão dos Doze Tronos.

Finalizada a arrumação do lençol, colocou-o sobre o banco adjacente à cabeceira. Posteriormente, focou as peças de vestuário espalhadas pelo mármore. 

Bufou com fraqueza ao se deparar com tamanho desleixo, mas não se reprimiu a apanhar a bagunça e arrumá-la à respectiva maneira.

Já o recém-despertado parou de esfregar os olhos e empenhou-se contra a preguiça. Mais uma vez se levantou parcialmente, antes de encarar as próprias palmas.

A feição carregada, por intermédio de sobrancelhas arriadas e cílios próximos do contato, denotava os reflexos da recente experiência.

— Ei — murmurou.

— Pois não?

Ela não desviou o foco das roupas a serem dobradas, porém delegou sua audição ao chamado do sonolento.

Um período silencioso retumbou pelo cômodo.

A deidade terminou o arranjo das peças abarrotadas, as posicionando acima do lençol dobrado no assento.

Naquele instante, a fraca brisa invadiu pela janela.

Junto às cortinas translúcidas, os lisos fios escuros da mulher e as pontas bagunçadas do garoto dançaram com leveza no espaço.

Sem aproveitarem o contato ocular, acompanharam o entrecorte da calmaria partir da indagação arrastada:

— O que são... sonhos?

Ela sustentou a quietude por segundos rápidos.

— Sonhos? Por qual razão pergunta?

Ao proferir o novo questionamento, corrupiou-se a encará-lo diretamente pelos olhos de tonalidade esmeraldina.

Viu a face pálida dele apontar à abertura superior ao lado. Sua fisionomia abatida ganhava traços alumiados em contato com o sol.

Sem sequer devolver a atenção à divindade, respondeu entre um tênue arquejo:

— Não é nada...

Apesar do estranhamento causado pela reação inesperada, a superior optou por não se aprofundar no assunto.

Tal aparência, desenhada no rosto alvo, parecia condutora de um peso superior a qualquer concepção espontânea.

Foi quando percebeu as olheiras formadas abaixo daquelas vistas entrefechadas.

“Ele continua a ter estas experiências”, acompanhava as extremidades de seu volumoso cabelo cor de vinho menearem. 

Logo remeteu ao respectivo dever. Abandonou a imagem de vaga melancolia e direcionou-se à porta aberta.

Ultrapassou a passagem circular e puxou a maçaneta, sem causar quaisquer sonidos.

— Depus variadas frutas na távola do salão. Também há néctar, pão... o que desejar. Não se atrase. Nosso pai detesta impontualidades.

Dado o recado final, enfim deixou-o solitário.

Ele continuou a encarar, hipnotizado, os véus conduzidos pela ventania. Despertar daquele modo contribuía com a formação de pensamentos sórdidos.

“Isso de novo...”

Cobriu a região superior da face com a palma dominante.

Embora ciente dos avisos da deusa, não deu importância à perda de alguns segundos naquela zona introspectiva.

Precisava varrer a fantasia e ater-se à realidade novamente.

Passados alguns minutos, ele fez o que fora ordenado.

Vestiu uma blusa branca — sem mangas — e a cobriu com uma manta azul, que lhe atravessava o torso em diagonal, do ombro à lateral oposta do cinto de couro.

Seguiu os passos indicados pela Deusa da Sabedoria e pegou uma maçã disposta sobre a mesa do saguão encíclico.

Sem nenhuma pressa no caminhar, subiu as escadarias até o andar designado.

Cercado pelo cantarolar das Cárites, atravessou o corredor principal até as grandes portas. Avistado o símbolo do alfa entrelaçado ao ômega, empurrou somente uma das alas com força.

O rangido deliberado pela abertura chamou a atenção das figuras presentes no interior.

Além de Zeus e Atena, cada qual posicionado em seu respectivo trono, encontrou um segundo jovem no centro da região semiaberta.

Em partes, foi apto a reconhecer a natureza daquele cabelo prateado, levemente espetado nas extremidades laterais e traseira.

Dito isso ainda faltava algo...

— Estão atrasados — entoou a mulher.

Paralisado entre o corredor e o salão, o recém-chegado não compreendeu o motivo da colocação no plural.

Pelo menos até, com certo atraso, identificar uma influência familiar esgueirar-se por sua retaguarda.

Ao virar o foco por cima do ombro, deparou-se com a terceira selecionada.

A bonita garota amarrava o cabelo em caudas gêmeas, uma para cada lateral da cabeça. Sua coloração avermelhada carregava tanto brilho quanto os olhos, idênticos a polidas pedras de rubi.

Sem se importar com a impontualidade, trocou um cumprimento silencioso com ela e prosseguiu até o centro do salão.

Em sua companhia, a jovem postou-se entre a dupla masculina; as mãos cruzadas atrás do corpo.

— Foram menos de cinco minutos dessa vez — resmungou o atrasado, conforme as portas se fechavam. — Vai realmente dar sermão por isso?

— Mesmo que pretendesse, creio que seja melhor encerrar isto de uma vez. — Atena deu de ombros e procedeu: — De todo modo, os três encontram-se presentes, como requisitado. Nossos Apóstolos Classe Prodígio: Damon, Lilith e Silver.

Cada um portou-se a seu modo.

O primeiro exalou uma fraca lamentação; a segunda o encarou de soslaio graças a isso; e o terceiro não executou qualquer reação aparente.

Repousada no único trono central no plano inferior, circundado pelos outros cinco de cada lado, a deidade se levantou.

Os passos avançaram até a proximidade máxima da piscina cristalina, desprovida de ondulações apesar da brisa que vinha das divisórias laterais.

Trocou olhares com o Rei dos Deuses, que lhe concedeu a permissão em seu costumeiro silêncio.

Agradeceu no intermédio de um movimento positivo com a cabeça e voltou o foco ao trio adiante.

Inspirou bastante oxigênio e expirou em igual quantidade. Só então deu início à importante declamação:

— Em virtude dos constantes incidentes de desaparecimentos por toda Hélade, súplicas em demasia estão sendo concebidas às maiores divindades olímpicas. Diante disto, aparentemente, uma inédita onda de paradeiros surgiu, afetando, a princípio, os navegadores mercantes e residentes de Olímpia em geral. Grande maioria destas divisões anseia pela bênção do Deus dos Mares.

Ao enunciar o epiteto respeitoso, direcionou o olhar até o apóstolo que primeiro havia chegado para a reunião.

Recebeu a encarada da dupla de íris cor de mel em retorno, tão frias quanto deveriam ser. Aproveitou a breve pausa no intuito de limpar a garganta.

Portanto, deu continuidade:

— Recentemente tomamos a responsabilidade de enviar alguns membros de Classe Iniciante até a Ilha Methana. Local este que poucos navegadores sobreviventes relataram, em vossas orações, terem vivenciado misteriosos ataques contra embarcações e tripulação. No entanto nenhum dos jovens enviados regressou até então...

— Nunca ouvi falar nesse lugar. — Damon levantou a voz dúbia.

— Trata-se de uma das grandes extensões de terra que possuem domínio de nosso panteão, localizada à oeste do continente. Tal nomenclatura deriva do super vulcão que lá habita, o mais poderoso em atividade por toda Hélade. Por fim, configura o lar atual dos principais suspeitos pela autoria desta onda de paradeiros.

— E quem seriam?

— Através dos relatos, determinamos que se trata de três seres singulares que, outrora, integraram o panteão olímpico como nossas serventes fiéis. Por terem desafiado a influência olímpica ao cometerem atos infratores, acabaram exiladas, porém aparentam ter regressado às redondezas. Nós as denominamos como Sirenas.

— Essas mulheres são tão perigosas assim? — Lilith levantou a mão para se pronunciar, num tom respeitoso.

— Elas logram de um poder único, que lhes oferece autoridade sobre quem as desafia. Embora não seja tão efetivo a nós, divindades superiores, pode se tornar letal àqueles que carecem de habilidade e experiência. No entanto ainda que os três tenham sido recém-promovidos à patente de Classe Prodígio, devem se provar suficientes para que a respectiva tarefa seja concluída.

Apesar de dirigir-se ao trio com certa dose de cautela, pensou ter sido bem-sucedida em transmitir a consciência necessária a eles.

Afinal, aquela seria sua primeira grande missão.

— Adoro quando vocês subestimam os outros, desse jeito — murmurou o soturno, suas sobrancelhas arriadas.

— Não veja desta forma, Damon. Aceite como um voto de confiança e, ao mesmo tempo, um alerta de precaução. — Projetou um leve sorriso no semblante.

À parte da discussão entre a dupla, o homem níveo no piso superior tentava abstrair alguma resposta.

O cuidado de uma aparência fleumática começava a ser sobreposta por uma onda de irritação.

Ínfimas fagulhas douradas estalaram ao redor dos supercílios. Tal sinal foi o suficiente para que a sábia percebesse a negativa alteração de seu humor.

A singela mudança trouxe efeitos colaterais às nuvens no exterior, que ganharam tonalidades acinzentadas num piscar.

Leves trovoadas puderam ser escutadas pelos presentes, além da aura impetuosa que passou a irradiar por todo o salão.

Diante da impaciência manifestada pelo deus supremo, Atena levou a mão fechada à frente da boca e pigarreou com força.

Era o momento de finalizar a presente conferência.

— Há uma embarcação de médio porte atracada na região portuária de Olímpia. Será através dela que vocês navegarão até ilha.

— E isso é seguro? — Damon ergueu o queixo.

— Desde que a tripulação não esteja a par de vossa descendência, não acarretará atribulações. Atualmente não dispomos de uma passagem direta até a ilha, portanto essa é a única maneira.

À explicação dela, o jovem estalou a língua.

— Só ‘tá dando trabalho a mais pra gente...

E ignorando a reclamação dele, a mulher estendeu a mão na vertente dos três.

— Isto é tudo. A despeito das consequências, tratem de regressar ao Olimpo com o sucesso.

Passados alguns segundos de quietude, o jovem deu de ombros à ordem derradeira, girou o corpo e tomou o caminho da saída.

Conseguinte a isso, os dois companheiros de missão fizeram igual.

Embora fosse o primeiro a abrir uma ala das grandes portas, Lilith e Silver acessaram o corredor iluminado na frente.

Isso pois, antes de seguir adiante, ele tornou a encarar o par de austeridades.

Em face da indiferença de Zeus e a serenidade de Atena, ele proclamou:

— Vou me despedir da Daisy...

A mulher aparentou ter compreendido a mensagem daquelas simples palavras, portanto lhe devolveu um aceno positivo com a cabeça.

Aguardou qualquer resposta daquele que descansava no maior dos tronos, entretanto nada veio.

Sem alimentar alguma surpresa na feição inflexível, deu as costas e fechou a passagem, causando um impactante barulho pelo recinto.

Confirmado o fim da audiência, a sábia pôde relaxar a postura.

Direcionou as atenções a seu pai que, apesar da repentina reação mal-humorada, conservou a taciturnidade durante o evento inteiro.

Em constatação ao regresso da ausência emotiva na faceta sisuda, lançou sua pergunta entre uma forte aspiração:

— Deseja dizer algo a respeito, meu pai e senhor?

O silêncio consequente somente auxiliou o crescimento de seu desconforto. Não desfez, por pouco, o sorriso constrito durante o aguardo de retorno verbal.

No intuito de disfarçar, encarou a amplidão exterior pelas passagens entre as grandes colunas.

Dali pôde verificar as nuvens brancas que foram transformadas por conta de uma simples resmungada do Rei.  

Embora habituada a cenas equivalentes, não deixava de se impressionar com a magnitude dos efeitos distantes.

Chegava a ser um pouco assustador, estar ciente sobre aquele homem ter influência direta para com as estruturas do próprio céu.

— No fim você optou por enviar esses três. — E enfim proferiu algumas palavras, a chamando a atenção de volta. — Por acaso tem algo em mente que não deseja revelar, minha criança?

— Somente os enxergo como instigantes potencialidades a serem exploradas e refinadas a nosso favor. — Ajeitou as mechas laterais com as pontas dos dedos. — Peço para que não se preocupe com demasias, meu pai. Esta é uma ótima oportunidade em prol de avaliar vosso crescimento.

Zeus voltou a se calar diante das palavras de controle exprimidas por sua filha. Os olhos, que remetiam a abóbada celeste, se fecharam.

Relaxou completamente no assento confortável, recheado de adornos prateados nas laterais do respaldo.

Por sua vez, Atena encarou a piscina transparente a alguns metros. A porção de água inerte no delimitado espaço retangular refletia a própria aparência.

Permaneceu em tal disposição durante um período arrastado, aprofundada em introspecção.

A placidez regressou à câmara.

E nada mais ocorreu.



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