Volume 1 – Arco 1
Capítulo 2: Sonho
Um borrão peculiar residia no centro do espaço branco. Assemelhava-se a uma chama escura, destoante do ambiente silencioso.
Ainda assim, gerava calor suficiente para alcançar os olhos azuis que a observava.
O rapaz sentia o corpo flutuar, contudo encontrava-se “erguido”.
Toda a luminosidade parecia monocromática; não havia céu ou terra, somente o vazio irrestrito.
Acima, abaixo ou a qualquer lado... Nada além dele e da figura escurecida se fazia presente.
Olhou para aquilo durante breves segundos. Sentia-se misteriosamente instigado, como se conduzido pela energia invisível na plena inconsciência.
Nada era compreensível; tampouco o fato de situar-se presente naquele local, ou o desconforto que parecia gritar em seu coração.
No fim, pôde identificar traços de familiaridade em meio ao turbilhão emotivo.
O interesse cresceu. Tentou varrer o incômodo de lado e se concentrou em avançar um primeiro passo.
Sem conseguir qualquer resultado abaixo dos pés descalços, empenhou-se a equilibrar o restante do corpo com cuidado.
Enfim pôde se deslocar com sutileza.
Durante a interrupção da passada inicial, o borrão oscilou; parecia ter executado um movimento reativo.
Isso fez o garoto brecar as tentativas em prol de seguir em frente.
Quando encarou, a chama suja estendeu algo em sua direção. Nenhuma determinação para prosseguir restou.
Restou-lhe o congelamento absoluto, dominado por temor.
Portanto, antes que pudesse obter uma resposta, observou um efeito de estranheza tão superior.
Era um sorriso.
Um sorriso quente como o sol...
Os olhos lentamente se desdobraram ao reconhecerem a claridade através das pálpebras.
O jovem despertou em sua cama, livre do devaneio extravagante.
Apesar disso, agarrou-se como pôde aos últimos detalhes, antes que fossem apagados da memória.
Na retomada dos sentidos, constatou um toque lhe remexer o corpo. Por conseguinte, levou a linha de visão abaixo.
Um braço alvo estendia-se acima de seu peito, a mão o tateava no ombro.
Durante um milésimo, imaginou ser a mesma do esboço visualizado no âmbito sem vida. Por isso, arregalou as vistas e levantou o torso.
A reação assustada o revelou o contrário das expectativas.
— Bom dia. Quase tarde, senhor dorminhoco. — Uma madura voz feminina tratou de cumprimentá-lo.
Enganado pela própria mente, ainda conturbada pelo sono, ele resmungou com fraqueza.
O tempo gasto a fim de habituar-se aos raios solares foi o equivalente a fim de reconhecer a identidade daquela figura em pé, ao lado da cama particular.
Primeiramente visualizou o longo cabelo roxo, solto em ondulações singelas a cair sobre os ombros e até a metade das costas.
Em seguida, verificou a vestimenta branca a reluzir à luminescência que invadia o recinto.
— Atena...
Levou a mão direita à frente do rosto, na busca de impedir o contato direto entre os olhos e o brilho adiante.
Ainda assim, confirmou a fisionomia da mulher, preenchida por um sorriso aprazível.
Livre da perplexidade, tornou a relaxar sobre o colchão.
Com a prova de que ele já tinha acordado, a adulta desviou o olhar e arrancou o lençol de suas pernas.
Passou a dobrá-lo logo na sequência, mediante movimentos balanceados e dotados de extrema precisão.
— Que horas são? — ele perguntou, enquanto esfregava as vistas.
— Já passou da hora de se organizar em prol da tarefa que lhe antecipei. Recomendo que levante e conclua os afazeres pessoais o quão antes for necessário. Nosso pai o aguarda no Salão dos Doze Tronos.
Finalizada a arrumação do lençol, colocou-o sobre o banco adjacente à cabeceira. Posteriormente, focou as peças de vestuário espalhadas pelo mármore.
Bufou com fraqueza ao se deparar com tamanho desleixo, mas não se reprimiu a apanhar a bagunça e arrumá-la à respectiva maneira.
Já o recém-despertado parou de esfregar os olhos e empenhou-se contra a preguiça. Mais uma vez se levantou parcialmente, antes de encarar as próprias palmas.
A feição carregada, por intermédio de sobrancelhas arriadas e cílios próximos do contato, denotava os reflexos da recente experiência.
— Ei — murmurou.
— Pois não?
Ela não desviou o foco das roupas a serem dobradas, porém delegou sua audição ao chamado do sonolento.
Um período silencioso retumbou pelo cômodo.
A deidade terminou o arranjo das peças abarrotadas, as posicionando acima do lençol dobrado no assento.
Naquele instante, a fraca brisa invadiu pela janela.
Junto às cortinas translúcidas, os lisos fios escuros da mulher e as pontas bagunçadas do garoto dançaram com leveza no espaço.
Sem aproveitarem o contato ocular, acompanharam o entrecorte da calmaria partir da indagação arrastada:
— O que são... sonhos?
Ela sustentou a quietude por segundos rápidos.
— Sonhos? Por qual razão pergunta?
Ao proferir o novo questionamento, corrupiou-se a encará-lo diretamente pelos olhos de tonalidade esmeraldina.
Viu a face pálida dele apontar à abertura superior ao lado. Sua fisionomia abatida ganhava traços alumiados em contato com o sol.
Sem sequer devolver a atenção à divindade, respondeu entre um tênue arquejo:
— Não é nada...
Apesar do estranhamento causado pela reação inesperada, a superior optou por não se aprofundar no assunto.
Tal aparência, desenhada no rosto alvo, parecia condutora de um peso superior a qualquer concepção espontânea.
Foi quando percebeu as olheiras formadas abaixo daquelas vistas entrefechadas.
“Ele continua a ter estas experiências”, acompanhava as extremidades de seu volumoso cabelo cor de vinho menearem.
Logo remeteu ao respectivo dever. Abandonou a imagem de vaga melancolia e direcionou-se à porta aberta.
Ultrapassou a passagem circular e puxou a maçaneta, sem causar quaisquer sonidos.
— Depus variadas frutas na távola do salão. Também há néctar, pão... o que desejar. Não se atrase. Nosso pai detesta impontualidades.
Dado o recado final, enfim deixou-o solitário.
Ele continuou a encarar, hipnotizado, os véus conduzidos pela ventania. Despertar daquele modo contribuía com a formação de pensamentos sórdidos.
“Isso de novo...”
Cobriu a região superior da face com a palma dominante.
Embora ciente dos avisos da deusa, não deu importância à perda de alguns segundos naquela zona introspectiva.
Precisava varrer a fantasia e ater-se à realidade novamente.
Passados alguns minutos, ele fez o que fora ordenado.
Vestiu uma blusa branca — sem mangas — e a cobriu com uma manta azul, que lhe atravessava o torso em diagonal, do ombro à lateral oposta do cinto de couro.
Seguiu os passos indicados pela Deusa da Sabedoria e pegou uma maçã disposta sobre a mesa do saguão encíclico.
Sem nenhuma pressa no caminhar, subiu as escadarias até o andar designado.
Cercado pelo cantarolar das Cárites, atravessou o corredor principal até as grandes portas. Avistado o símbolo do alfa entrelaçado ao ômega, empurrou somente uma das alas com força.
O rangido deliberado pela abertura chamou a atenção das figuras presentes no interior.
Além de Zeus e Atena, cada qual posicionado em seu respectivo trono, encontrou um segundo jovem no centro da região semiaberta.
Em partes, foi apto a reconhecer a natureza daquele cabelo prateado, levemente espetado nas extremidades laterais e traseira.
Dito isso ainda faltava algo...
— Estão atrasados — entoou a mulher.
Paralisado entre o corredor e o salão, o recém-chegado não compreendeu o motivo da colocação no plural.
Pelo menos até, com certo atraso, identificar uma influência familiar esgueirar-se por sua retaguarda.
Ao virar o foco por cima do ombro, deparou-se com a terceira selecionada.
A bonita garota amarrava o cabelo em caudas gêmeas, uma para cada lateral da cabeça. Sua coloração avermelhada carregava tanto brilho quanto os olhos, idênticos a polidas pedras de rubi.
Sem se importar com a impontualidade, trocou um cumprimento silencioso com ela e prosseguiu até o centro do salão.
Em sua companhia, a jovem postou-se entre a dupla masculina; as mãos cruzadas atrás do corpo.
— Foram menos de cinco minutos dessa vez — resmungou o atrasado, conforme as portas se fechavam. — Vai realmente dar sermão por isso?
— Mesmo que pretendesse, creio que seja melhor encerrar isto de uma vez. — Atena deu de ombros e procedeu: — De todo modo, os três encontram-se presentes, como requisitado. Nossos Apóstolos Classe Prodígio: Damon, Lilith e Silver.
Cada um portou-se a seu modo.
O primeiro exalou uma fraca lamentação; a segunda o encarou de soslaio graças a isso; e o terceiro não executou qualquer reação aparente.
Repousada no único trono central no plano inferior, circundado pelos outros cinco de cada lado, a deidade se levantou.
Os passos avançaram até a proximidade máxima da piscina cristalina, desprovida de ondulações apesar da brisa que vinha das divisórias laterais.
Trocou olhares com o Rei dos Deuses, que lhe concedeu a permissão em seu costumeiro silêncio.
Agradeceu no intermédio de um movimento positivo com a cabeça e voltou o foco ao trio adiante.
Inspirou bastante oxigênio e expirou em igual quantidade. Só então deu início à importante declamação:
— Em virtude dos constantes incidentes de desaparecimentos por toda Hélade, súplicas em demasia estão sendo concebidas às maiores divindades olímpicas. Diante disto, aparentemente, uma inédita onda de paradeiros surgiu, afetando, a princípio, os navegadores mercantes e residentes de Olímpia em geral. Grande maioria destas divisões anseia pela bênção do Deus dos Mares.
Ao enunciar o epiteto respeitoso, direcionou o olhar até o apóstolo que primeiro havia chegado para a reunião.
Recebeu a encarada da dupla de íris cor de mel em retorno, tão frias quanto deveriam ser. Aproveitou a breve pausa no intuito de limpar a garganta.
Portanto, deu continuidade:
— Recentemente tomamos a responsabilidade de enviar alguns membros de Classe Iniciante até a Ilha Methana. Local este que poucos navegadores sobreviventes relataram, em vossas orações, terem vivenciado misteriosos ataques contra embarcações e tripulação. No entanto nenhum dos jovens enviados regressou até então...
— Nunca ouvi falar nesse lugar. — Damon levantou a voz dúbia.
— Trata-se de uma das grandes extensões de terra que possuem domínio de nosso panteão, localizada à leste do continente. Tal nomenclatura deriva do super vulcão que lá habita, o mais poderoso em atividade por toda Hélade. Por fim, configura o lar atual dos principais suspeitos pela autoria desta onda de paradeiros.
— E quem seriam?
— Através dos relatos, determinamos que se trata de três seres singulares que, outrora, integraram o panteão olímpico como nossas serventes fiéis. Por terem desafiado a influência olímpica ao cometerem atos infratores, acabaram exiladas, porém aparentam ter regressado às redondezas. Nós as denominamos como Sirenas.
— Essas mulheres são tão perigosas assim? — Lilith levantou a mão para se pronunciar, num tom respeitoso.
— Elas logram de um poder único, que lhes oferece autoridade sobre quem as desafia. Embora não seja tão efetivo a nós, divindades superiores, pode se tornar letal àqueles que carecem de habilidade e experiência. No entanto ainda que os três tenham sido recém-promovidos à patente de Classe Prodígio, devem se provar suficientes para que a respectiva tarefa seja concluída.
Apesar de dirigir-se ao trio com certa dose de cautela, pensou ter sido bem-sucedida em transmitir a consciência necessária a eles.
Afinal, aquela seria sua primeira grande missão.
— Adoro quando vocês subestimam os outros, desse jeito — murmurou o soturno, suas sobrancelhas arriadas.
— Não veja desta forma, Damon. Aceite como um voto de confiança e, ao mesmo tempo, um alerta de precaução. — Projetou um leve sorriso no semblante.
À parte da discussão entre a dupla, o homem níveo no piso superior tentava abstrair alguma resposta.
O cuidado de uma aparência fleumática começava a ser sobreposta por uma onda de irritação.
Ínfimas fagulhas douradas estalaram ao redor dos supercílios. Tal sinal foi o suficiente para que a sábia percebesse a negativa alteração de seu humor.
A singela mudança trouxe efeitos colaterais às nuvens no exterior, que ganharam tonalidades acinzentadas num piscar.
Leves trovoadas puderam ser escutadas pelos presentes, além da aura impetuosa que passou a irradiar por todo o salão.
Diante da impaciência manifestada pelo deus supremo, Atena levou a mão fechada à frente da boca e pigarreou com força.
Era o momento de finalizar a presente conferência.
— Há uma embarcação de médio porte atracada na região portuária de Olímpia. Será através dela que vocês navegarão até ilha.
— E isso é seguro? — Damon ergueu o queixo.
— Desde que a tripulação não esteja a par de vossa descendência, não acarretará atribulações. Atualmente não dispomos de uma passagem direta até a ilha, portanto essa é a única maneira.
À explicação dela, o jovem estalou a língua.
— Só ‘tá dando trabalho a mais pra gente...
E ignorando a reclamação dele, a mulher estendeu a mão na vertente dos três.
— Isto é tudo. A despeito das consequências, tratem de regressar ao Olimpo com o sucesso.
Passados alguns segundos de quietude, o jovem deu de ombros à ordem derradeira, girou o corpo e tomou o caminho da saída.
Conseguinte a isso, os dois companheiros de missão fizeram igual.
Embora fosse o primeiro a abrir uma ala das grandes portas, Lilith e Silver acessaram o corredor iluminado na frente.
Isso pois, antes de seguir adiante, ele tornou a encarar o par de austeridades.
Em face da indiferença de Zeus e a serenidade de Atena, ele proclamou:
— Vou me despedir da Daisy...
A mulher aparentou ter compreendido a mensagem daquelas simples palavras, portanto lhe devolveu um aceno positivo com a cabeça.
Aguardou qualquer resposta daquele que descansava no maior dos tronos, entretanto nada veio.
Sem alimentar alguma surpresa na feição inflexível, deu as costas e fechou a passagem, causando um impactante barulho pelo recinto.
Confirmado o fim da audiência, a sábia pôde relaxar a postura.
Direcionou as atenções a seu pai que, apesar da repentina reação mal-humorada, conservou a taciturnidade durante o evento inteiro.
Em constatação ao regresso da ausência emotiva na faceta sisuda, lançou sua pergunta entre uma forte aspiração:
— Deseja dizer algo a respeito, meu pai e senhor?
O silêncio consequente somente auxiliou o crescimento de seu desconforto. Não desfez, por pouco, o sorriso constrito durante o aguardo de retorno verbal.
No intuito de disfarçar, encarou a amplidão exterior pelas passagens entre as grandes colunas.
Dali pôde verificar as nuvens brancas que foram transformadas por conta de uma simples resmungada do Rei.
Embora habituada a cenas equivalentes, não deixava de se impressionar com a magnitude dos efeitos distantes.
Chegava a ser um pouco assustador, estar ciente sobre aquele homem ter influência direta para com as estruturas do próprio céu.
— No fim você optou por enviar esses três. — E enfim proferiu algumas palavras, a chamando a atenção de volta. — Por acaso tem algo em mente que não deseja revelar, minha criança?
— Somente os enxergo como instigantes potencialidades a serem exploradas e refinadas a nosso favor. — Ajeitou as mechas laterais com as pontas dos dedos. — Peço para que não se preocupe com demasias, meu pai. Esta é uma ótima oportunidade em prol de avaliar vosso crescimento.
Zeus voltou a se calar diante das palavras de controle exprimidas por sua filha. Os olhos, que remetiam a abóbada celeste, se fecharam.
Relaxou completamente no assento confortável, recheado de adornos prateados nas laterais do respaldo.
Por sua vez, Atena encarou a piscina transparente a alguns metros. A porção de água inerte no delimitado espaço retangular refletia a própria aparência.
Permaneceu em tal disposição durante um período arrastado, aprofundada em introspecção.
A placidez regressou à câmara.
E nada mais ocorreu.