Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 13: Lamentos na Chuva

O destino do olimpiano foi a retaguarda da sirena. Num piscar, o menino ensanguentado passou a descansar sobre seus braços.

A pata dela, arrancada de uma porção do tornozelo, permanecia fincada em seu pescoço.

Apanhou as presas perfurantes com algum cuidado. O sangue preso por elas passou a escorrer em maior intensidade, quando o membro da megera foi retirado.

Sabia que não havia mais salvação para o pobre coitado, dominado pela palidez. Os lábios tornaram-se roxos e a luz desapareceu nos olhos castanhos.

— Você cumpriu seu trabalho, companheiro — mussitou o olimpiano. — Peço que descanse em paz, assim como todas as pessoas que foram assassinadas nesse lugar. Prometo que irei me vingar por suas almas e rezo para que elas alcancem os Elísios.

Usou os dedos indicador e médio a fim de fechar os olhos dele. Enquanto isso, a sirena continuava a se remoer por ter perdido a pata canhota.

Sem saber como isso tinha acontecido ao certo — além de o responsável ter sido o garoto recém-chegado —, corrupiou-se enraivecida.

As estruturas dentárias quase se partiam, tamanha a força depositada na mandíbula.

Conferiu a espada imóvel nas costas do agressor. Se recusava a crer no fato de que o respectivo tinha a utilizado numa velocidade tão absurda, a ponto de embainhá-la na sequência.

E pior; sequer ter sido capaz de acompanhá-lo.

Consolidou-se numa diferença de meros segundos entre o impulso e o lanho final, em adição a ter pegado o mortal falecido no colo.

— S-seu maldito! Como ousa!? — Ela enfim reagiu, a voz soou gutural. — Foi você quem matou minha irmã!? Você vai me pagar por isso!!

O apóstolo sustentou-se de pé, sem largar a pata restante.

— Quem sabe.

Sobre o ombro, fuzilou-a de esguelha. Deitou o corpo do menino no plano, antes de girar lentamente à orientação do desafio. Abriu e fechou as mãos, o suficiente a fim de estalar todos os dedos.

— Desgraçado seja!... Vou acabar com sua raça, seu imundo!

Ao identificar a reunião de Energia Vital da silhueta feminina, o garoto puxou a espada em definitivo.

O sonido metálico se proliferou pela gruta, assim que a lâmina foi retirada da bainha de couro.

— Interessante. Só que quem vai vencer sou eu — rebateu, preparado para o conflito. — Vou te mostrar a diferença de enfrentar um mortal e um deus.

Depois de receber o desafio verbal do jovem, a faceta da criatura se contraiu.

Incapaz de proferir qualquer palavra durante segundos duradouros, processou a de maior impacto provinda de seu discurso.

— Um... deus? — murmurou, a voz arrastada.

Outra vez, imagens borradas correram pelas memórias, deliberando um tremor súbito aos olhos. O ódio da alma subiu ao corpo.

Aqueles seres jamais poderiam ser esquecidos; e a afirmação daquele garoto trazia todo o furor à tona.

Envolvida pelo arrepio ardente, cerrou os palmos com pujança, a ponto de cravar as presas nas palmas livres.

— Sempre vocês... sempre, sempre, sempre vocês!! Por que vocês sempre têm que se intrometer e não nos deixam em paz!?

— “Deixar em paz”? O que tem a me dizer sobre esses corpos aí atrás? — Apontou à retaguarda dela com o queixo. — Eu consegui escutar um pouco do que você falava pra esse garoto antes de matar ele por estrangulamento. “Um prazer único”, não foi?

A sirena não encontrou retrucas para o contra-argumento do apóstolo. Ele, por outro lado, esbaldava segurança defronte a anfitriã.

Embora a fitasse com as sobrancelhas franzidas e os lábios delineados para baixo, não a amedrontava.

A despeito do odor sanguinário, ainda mais intenso naquela região, sustentava a guarda responsável por impedi-la de investir a qualquer custo.

Pouco a pouco, o sentimento de injustiça dominava a cabeça da monstruosidade.

Não concebia as palavras cuspidas a esmo pelo estranho, sem sequer pensar em tudo que tinha passado até então, unida a suas irmãs.

“Afinal, assim são os deuses e aqueles que os seguem”, foi a última sentença que aguentou manter em silêncio.

— Se há culpados, então esses são vocês — vociferou de cabeça erguida. — Foram aquelas duas deusas mesquinhas que nos exilaram, por algo que nem mesmo nos foi explicado!! E os outros deuses não moveram um dedo para ao menos impedirem!!

— Se foram exiladas, então fizeram algo que os ofendeu — retrucou contundente, porém elevou a cólera da mulher.

— Sim, isso mesmo. É esse tipo de visão arrogante que faz vocês serem o que são! — Estreitou as vistas cortantes. — Nós precisamos sobreviver. O que acha que faríamos!? Que ficaríamos sentadas, esperando nossa morte!!?

— Sobreviver ao matar os mortais que viajavam pelas proximidades da ilha?

— Você que está aqui nessa ilha, já deve ter notado o silêncio angustiante!! — A nova rebatida o fez retroceder em silêncio. — Tudo que podíamos usufruir deste lugar maldito se foi! Não tínhamos outra escolha!! Isso tudo aconteceu por culpa da arrogância dos deuses e você simplesmente está fechando seus olhos, se recusando a aceitar enquanto mergulha nessa doutrina deles!! Mas você sabe!!

Damon relaxou o membro portador da arma afiada. Agora, ele estava sem palavras para contestar as lamúrias da inimiga.

No entanto continuou a apontá-la à sua vertente, nada acuado com o esbravejo odioso que vinha das profundezas do coração.

— Me diga. O que vocês acham que os deuses fariam... ou melhor, o que você faria caso nós invadíssemos o lugar onde você vive? Colocando todos da sua família em risco!?

Pela primeira vez, os questionamentos levantados por ela fizeram as sobrancelhas do olimpiano serem erguidas.

Os lábios se separaram levemente; uma corrente indecifrável lhe escalou o interior.

O moroso intervalo das goteiras sanguíneas foi o único ruído capaz de rivalizar com a quietude absoluta.

O filho de Zeus experimentava toda a segurança estabelecida consigo desaparecer. O domínio da situação, tanto em postura quanto em palavras, só diminuía...

— Me diga!!

A exigência rugida trouxe um ímpeto crescente. Através dos dizeres entoados com tanto afinco, o jovem deus foi atingido por uma estranha confusão.

Situações desconexas com o presente instante lhe tomaram a mente. Situações que fugiam dos conhecimentos pessoais despertavam de forma gradativa.

E uma dessas começava a se relacionar ao sonho vivenciado no dia anterior. O cenário esbranquiçado, sem céu ou terra, onde somente ele e a figura disforme encontravam-se presentes.

A silhueta que, por alguma razão, lhe trazia conforto. Mas, ao mesmo tempo, desespero.

E embora tivesse ocorrido no decorrer de uma fração de segundos, foi o bastante para arrancar qualquer revide por parte dele.

Daquele momento em diante, o controle foi passado às mãos sangrentas da mulher-ave.

“Isso de novo...”, o cacheado estreitou as vistas, em busca de retomar a concentração para com o conflito derradeiro.

— Então é isso... — A voz rouca o trouxe de volta à realidade. — Sem respostas. Como eu esperava de um ser como você.

— Você ‘tá falando demais — resmungou ao reposicionar a espada rente à vanguarda.

Era claro o incômodo deliberado por sua compostura.

— Nada vai mudar o que vocês são. Seres arrogantes, que só pensam em si mesmos, apenas nos seus bens pessoais!! — Estalou os ossos de ambas as mãos, assim como ele. — Vocês são a escória deste mundo!!

— Já cansei de ouvir suas besteiras.

Damon girou a arma de grande porte e tornou a concentrar sua energia, mesmo depois da experiência deturpada.

— Minhas irmãs... eu vou matar todos vocês, por elas! Eu, Pisinoe, irei provar a esses malditos que também estamos vivas!!

A última e mais velha das mulheres-pássaro, Pisinoe, contou com o auxílio das asas escuras, inertes até então.

Disparou num impulso violento em direção ao garoto, que posicionou a lâmina luzente defronte o tronco.

A sirena arqueou com as garras da mão destra e procurou afligi-lo, porém o golpe foi defletido pela espada.

Tal deslocamento a fez ultrapassá-lo pelo flanco, até alcançar uma região mais profunda da caverna.

Parou, girou e bateu as asas pela segunda vez, criando um impulso ainda mais poderoso na orientação de Damon. A exemplo da ocasião anterior, ele posicionou o releixo em sua vanguarda.

Dessa vez utilizou a tremenda força para arrastá-lo até a saída, após ter sucesso em o confrontar.

Com o crescimento da iluminação e o retorno do forte som da chuva, o rapaz depositou rigidez nos braços a fim de se desvencilhar da inimiga.

A impeliu antes de sair da gruta. Em seguida utilizou as solas da sandália em prol de frear o arraste. Graças à intensidade da luz natural, pôde enxergar a totalidade da figura metade mulher metade pássaro.

O cabelo preto, que caía até o início das costas, possuía leves e espetadas pontas “abertas” nas extremidades.

Os atraentes olhos oceânicos semelhavam a joias polidas e irradiavam uma congelante intenção assassina.

As penas que envolviam as partes íntimas do corpo esbelto, assim como os apêndices traseiros, possuíam tonalidade escurecida.

O ferimento na altura do tornozelo, por outro lado, mostrava-se claro como o dia. O resto dos ossos grudados à carne viva deixava o sangue pingar no solo.

Equilibrada no membro canhoto, usufruía dos próprios órgãos epidérmicos no intuito de manter-se erguida.

— Os deuses e seus seguidores não se importam com ninguém além de si mesmos!!! — Voltou a rugir, conforme executava uma nova investida.

Damon defendeu-se das presas da mesma maneira, na tentativa de retomar o controle da situação.

— Só vai ficar falando isso?

— Eu continuarei falando até acabar com todos vocês!!

Pisinoe saltou com ajuda do par plumoso e planou acima do filho de Zeus. Desceu em alta velocidade, cerrou o punho e tentou acertar um soco contra seu rosto.

O apóstolo desviou ao executar dois saltos mortais velozes para trás. As mãos apoiadas no chão lhe ofereceram impulso para, no fim, rodopiar e retornar à superfície terrosa.

Mesmo sem ter atingido o alvo, o golpe da criatura foi tão intenso a ponto de causar estrago no solo rochoso. O palmo fechado afundou num pequeno buraco cercado de rachaduras.

Foi necessário o depósito de certo esforço no intuito de puxá-lo de volta.

Passada a sequência defensiva, Damon ajeitou a postura na busca da primeira ação ofensiva.

Com a espada posicionada na vertical, mirou o pescoço dela, porém foi surpreendido por uma célere resposta da monstruosidade.

A atinente executou outro soco direto.

O olimpiano rodopiou o corpo inteiro à esquerda, deixando-a arrastar rente às costas. No decurso da locomoção aberta, puxou a arma no processo, já à vista da cintura da mulher.

O corte foi desferido mais rápido que o pensamento graças à investida da adversária. Um rasgo não muito profundo surgiu, o bastante em prol de soltar o líquido avermelhado no plano.

Ela acusou o golpe e tentou devolver numa cotovelada, de novo contra a face dele. O alvo agachou-se na hora exata e aproveitou para, outra vez, corrupiar-se com a perna canhota esticada.

O rompante lhe permitiu a atingir o calcanhar da criatura, uma rasteira que a fez tombar sobre seu corpo.

No complemento da ação, levou adiante a tentativa de atingi-la nas costas, mas a mulher deslocou as plumas na hora exata.

A batida impetuosa causou tamanha pressão no ar, a ponto de esmagar os ossos do jovem abaixo.

Enquanto sofria com as dores, encarou o voo alçado pela sirena, com sucesso em se livrar da investida improvisada.

— Isso não é nada! — bradou, mas para motivar a si mesma.

Volteou em pleno ar, disparando as penas afiadas ao sacudir os apêndices.

Dezenas delas, em elevada celeridade, tomaram como escopo o Classe Prodígio, que indicava atordoamento em virtude da compressão exercida pela própria.

Todavia o mesmo fulgor daquele instante a fez esgazear as vistas. O cacheado desapareceu, antes que as plumas laminosas fincassem o solo.

Desse modo, a sirena buscou sua presença por todos os lados.

Assim que a ferida no tornozelo ardeu, como um presságio indigesto, o singelo piscar trouxe a figura do apóstolo bem adiante. Poucos metros os separavam.

“Como!?”, indignou-se ao ver o rapaz descer a espada.

Num átimo de reflexo, levou as mãos a segurar o gume impetuoso. Os cortes aprofundavam-se nas palmas desnudas, fazendo o sangue escorrer até os antebraços.

O impacto violento trouxe um grito de agonia aos ombros, que precisou suportar num rangido de dentes.

As sobrancelhas se ergueram junto aos olhos azuis, perante a atitude da rival. Cativado por sua coragem, buscou afundar ainda mais o gume contra a carne.

Dada a reação abrupta das asas em curso, desistiu e girou num forte chute contra o centro de seu abdômen.

O ataque repentino por pouco não lhe partiu os ossos, porém lançou-a em definitivo para fora da cavidade natural.

As intensas gotas de chuva encontraram seus ferimentos, deliberando extrema ardência sobre eles. Arrancou grunhidos desagradáveis de sua boca ao cair na terra.

Damon regressou ao chão. Quando recuperou fôlego, prosseguiu a passadas lentas, à medida que sacudia a lâmina.

Os resquícios do líquido corporal da criatura respingavam nas paredes afuniladas.

Levou um curto intervalo até deixar a gruta. O cabelo de altivas mechas cacheadas logo ganhou peso, encharcado pela água que caía do céu.

Ao ter a nova franja a cobrir parcialmente as órbitas cerúleas, encarou os relâmpagos que vinham acompanhados pelo retumbar das trovoadas.

Os clarões consecutivos preenchiam a abóbada acinzentada; a tempestade, entretanto, não seria problema.

— Ugh... malditos!... — A ave tentou se levantar. — Eu jamais... irei perdoá-los!...

Por alguma razão, Damon sentia-se cada vez mais incomodado perante as lamúrias insistentes da anfitriã, apesar do foco na tarefa em a eliminar.

Singelos gatilhos lhe eram despertados, trazendo à tona os sonhos indescritíveis vivenciados a cada noite.

O pior era que ele não fazia ideia do motivo de experimentar aquilo em tamanha profusão.

Embora Pisinoe estivesse alguns níveis acima de Thelxiepia, confrontada em duas oportunidades anteriores, o jovem não experimentava dificuldades na contenda.

Tampouco cogitava qualquer problema em matá-la.

Por fim, tal momento restringiu-se à companhia da recuperação da criatura. De seus lábios, maldições ressoavam contra todos os deuses, os quais tanto odiava.

— Por que você não entende?... — Com a voz embargada no decorrer do questionamento, fechou os olhos pesados.

Ele não a respondeu. Só passou a mão livre pelo cabelo molhado e jogou a franja para o alto, em prol de liberar a linha de visão.

Ao sustentar a postura durante singelos segundos, recebeu o semblante enraivecido da mulher-pássaro.

Por outro lado, o que a respectiva enxergava não passava de uma expressão frígida, desalmada. Da face alva do garoto, nem um pingo de consternação podia ser identificado.

Havia colocado todo o desespero, trancafiado há anos, das profundezas do âmago, para fora.

Baqueada pela morte das duas irmãs, desistiu de clamar contra as paredes.

Já não fazia mais ideia sobre como poderia derrotá-lo.

O apóstolo, portanto, suspirou ao erguer a espada. A apontou na direção da derrubada.

— Vou terminar isso de uma vez.

Quando a voz soturna atravessou o som da chuva, a monstruosidade estreitou o olhar afiado.

Por conseguinte, percebeu que, assim como a si, tal indivíduo guardava uma dor difícil de ser superada dentro do coração.

Durante um singelo átimo, cogitou a possibilidade de alcançar um entendimento mútuo.

Caso fosse um evento diferenciado, talvez pudessem se comunicar de maneira a compreenderem um ao outro...

Utopia.

— Pois é. Isso termina aqui.

Reduziu o timbre vocal. Reuniu energia. E antes de o apóstolo ter a oportunidade para reagir... entoou um grito poderoso, que se alastrou por quase toda a ilha.

Agradecimentos:

Gostaria de agradecer imensamente ao jovem Mortal:

Taldo Excamosh

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