Volume 1 – Arco 1
Capítulo 12: Rota Final
O capitão do navio observava a floresta adiante, conforme as trovoadas ressoavam no céu escuro. Eram os anúncios da futura tempestade sobre a Ilha Methana.
A música horripilante tinha cessado há algum tempo, portanto, toda a tensão foi varrida para longe. Mesmo assim, continuava a orar na torcida para que aquilo fosse, de fato, um bom sinal.
Ergueu os olhos em direção ao firmamento durante breves segundos, as nuvens negras cada vez mais próximas.
Com os nervos reestabelecidos, começou a ponderar sobre os prováveis acontecimentos mata adentro.
Pôde testemunhar um aperitivo da habilidade dos jovens enviados pelos deuses, mas nem isso eliminava seu receio quanto ao sucesso deles.
Foi quando, como se o destino zombasse de sua cara, uma resposta positiva surgiu entre os arvoredos. Caminhando sem preocupações, um dos descendentes divinos retornava da floresta.
Enxergar o jovem prateado causou alívio instantâneo ao comandante, capaz até de arrancar um leve sorriso de seu rosto enrugado.
Tal expressão logo se desfez, no momento que percebeu a ausência dos outros dois.
Não somente isso; o excesso de sangue seco na manta originalmente azulada lhe deliberou calafrios indescritíveis.
— Comece a preparar o barco — disse o respectivo.
O experiente engoliu em seco. O aroma intenso que irradiava da vestimenta do rapaz adentrava suas narinas e lhe despertava náuseas.
Apesar do contentamento pela segurança dele, não podia deixar de pensar no que havia ocorrido com a dupla restante.
Quando procurou dizer algo, a garganta se fechou.
Desinteressado no conflito interno do grisalho, Silver avançou até a lateral do transporte. Próximo à popa, puxou os olhares espantados de todos os tripulantes, porém os ignorou sem problemas.
A maré apresentava-se mais elevada, sendo assim as fortes ondas quebravam adjacentes ao início da trilha do bosque. Tão fria a ponto de causar um choque térmico intenso a quem entrasse em contato, não parecia causar incômodo ao jovem.
Apesar de ter as canelas envolvidas a cada ascendência da água, notava-se que durante o retorno as pernas continuavam secas.
Tal anomalia obrigou todos os mortais a esfregarem os olhos, a fim de confirmarem o que estavam contemplando.
Diferente deles, o nauta líder superou o nervosismo e, antes de cumprir o pedido, perguntou:
— Onde estão seus dois amigos?...
O apóstolo evitou de responder num primeiro momento. Os olhos cor de mel atendiam ao mar, que tomava todo o campo de visão até a densa neblina acinzentada.
Incapaz de executar uma segunda indagação, restou a apreciação no que concernia a quietude do garoto, poucos metros adiante.
Entretanto a voz suave ecoou pelo espaço, rivalizando com o som das ondas logo na sequência:
— Foram terminar o trabalho.
Gotas passaram a cair do céu como se fosse uma resposta às suas palavras. Não demorou muito até se espalharem por todo o Egeu, criando incontáveis ondulações estremecidas.
Os trovões adquiriram ímpeto, a ponto de iluminarem a terra com seus relâmpagos.
Embora nenhuma proteção envolvesse o rapaz, a veloz garoa não parecia ter efeito sobre seu corpo, assim como a água do mar.
Por outro lado, o fenômeno natural lavou a tensão da alma do capitão. Respirou com certa tranquilidade e chamou pelos tripulantes, os ordenando a prepararem a embarcação.
A confiança mantinha-se viva.
Foi capaz de transmiti-la a todos os mortais a seu comando.
Conforme o tempo avançou, o ruído da chuva cresceu até tomar toda a audição dos presentes.
No outro lado do litoral, Damon e Lilith averiguavam as possibilidades. Sem dizer uma palavra desde a chegada ao local, o filho de Zeus criava desconforto a sua companheira.
Tentada a compreender a situação, ela semicerrou os olhos rubis. A chuva também tinha apertado naquela região da ilha. Dessa forma, a prossecução na terra molhada se tornou ainda mais lenta.
A despeito da presente dificuldade, os dois se aproximaram do navio abandonado.
— Ainda sinto o cheiro de mortais por aqui. Não deve estar aqui há muito tempo.
Diante das primeiras explicações do garoto, Lilith ergueu as sobrancelhas. Demorou um pouco, porém enfim foi capaz de entender os pensamentos do parceiro.
— Mas isso é estranho. Essas sirenas não conseguiram matar todos os atraídos?
— Ainda existem chances de os últimos enviados estarem vivos. — Damon bateu no casco com os ossos traseiros do palmo, conferindo sua resistência. — Eles não parecem ter sido atacados em alto-mar como a gente. Foi o que aquela que você derrotou disse também, né?
Ela não respondeu às teorias murmuradas por ele, porém encontrava-se incapaz de esconder os receios quanto àquelas abordagens.
Virou o rosto na direção do Egeu. Naquela vertente, encontrou a mesma camada de névoa ultrapassada no decorrer da navegação.
— Ela envolve a ilha inteira?... — Executou uma breve pausa e voltou ao aliado. — Quantos devem ter sido enviados?
— Nem ideia. — A resposta rápida coincidiu com um salto até a proa do convés. — Foi muito bom ter encontrado isso aqui. Posso saber onde foram com mais facilidade, agora.
“Como pensei, o cheiro de sangue é antigo e se mistura a outros recentes”, encarou os caminhos fechados pela floresta, de cima do barco.
Duas fungadas foram suficientes para ratificar as circunstâncias ocultas daquela terra.
Restava apenas uma sirena.
Podia determinar a rota final ao complemento da missão.
— Vou em frente até a última inimiga, não está tão longe daqui. Quero que você procure pelos outros apóstolos enviados por ali. — Apontou ao flanco direito.
— Tem certeza? De que adianta procurar por pessoas que provavelmente já estão mortas? — A parceira indagou após conferir a direção indicada.
— Se pudermos fazer alguma coisa quanto a isso, faremos. — Ele desceu do barco. — Vamos marcar nosso ponto de encontro nessa praia. Pode ser na entrada da floresta, no barco... tanto faz desde que seja aqui.
Ainda que não acreditasse nas chances de sobrevivência dos pobres apóstolos enviados dias atrás, a menina se viu contra a parede por essa decisão.
Como se tratava de uma incumbência importante, talvez fosse melhor seguir aquele caminho.
Entretanto o que mais pesava era a confiança partilhada com o olimpiano. Frente àquele pedido sincero, pegou-se inapta a recusá-lo...
— Está bem. Vamos fazer isso logo, antes que a chuva aperte. — Como combinado, avançou no trajeto oposto ao do rapaz. — Se precisar de ajuda, pode gritar por mim.
Tais palavras arrancaram uma risada abafada dele, que, no mesmo instante, prosseguiu até o caminho da última antagonista.
— Não precisa se preocupar. — Semicerrou os olhos, agora com seriedade. — Isso não vai acontecer.
“Aquelas pegadas são recentes. Com certeza deve ter um vivo...”, o apóstolo corria pela trilha fechada, rumo ao objetivo traçado desde a chegada em Methana.
Conseguia imaginar as prováveis condições dos corpos das vítimas feitas pelas criaturas.
Amontoados em profusão, unidos num local fechado, pendurados enquanto decepados... diversas possibilidades corriam por sua cabeça.
O aroma ganhava força à medida que se aproximava do objetivo. Um leve enjoo já o influenciava. Manteve a postura rija até alcançar o local designado, dentro de poucos minutos.
O fluxo sangrento o levou à entrada de uma caverna. Os espinhos na parte superior semelhavam a dentes afiados nada convidativos.
Encarou com cuidado ao avançar alguns passos, já adjacente do interior. O ar gelado irradiou do breu, por onde a visão era incapaz de alcançar.
“Acho que devia ter trazido a Lilith”, amaldiçoou, balançando a cabeça em negativa.
Apesar de ter afirmado que sua ajuda não era necessária, remeteu à habilidade, malsucedida na ocasião em alto-mar, que seria perfeita a favor daquele momento.
Não tinha o que fazer, pensou em seguida.
Complementou a entrada na gruta forçando os olhos a fim de se guiar na escuridão. No mesmo instante, um odor inédito emanou por todos os lados, junto a um ruído estranho que lhe obrigou a elevar o estado alerta.
Não demorou a distinguir repentino olfato do primeiro, responsável por levá-lo até ali.
“Parece que cheguei tarde”, considerou com certo pesar.
Evitou novos pensamentos ao proceder. A única fonte de iluminação, agora, vinha da distante passagem acidentalmente arredondada.
Os passos batiam com força no chão. Ruídos firmes se proliferavam, o suficiente para chamar a atenção de quem estivesse mais a fundo.
Em resposta, um ar peculiar — semelhante ao da última sirena derrotada — surgiu.
Damon semicerrou as vistas, sem abandonar o rosto sereno. Como expectado, uma pilha de corpos orquestrava o caminho obscuro.
Decepados, dilacerados, as partes internas arrancadas e esmagados; a morte sorria, presente por toda a região claustrofóbica.
Na parte superior da cavidade fechada, havia alguns corpos mutilados, presos às rochas pontiagudas que apontavam para o plano. Atravessavam braços, pernas, torsos e, até mesmo, cabeças.
Alguns jaziam ali há tanto tempo que já avançavam em estado de putrefação; outros ainda possuíam sangue a escorrer pelo corpo, criando incontáveis goteiras pelo caminho.
Um som repetitivo proliferava-se acima de pequeninas poças originadas dessas.
O fedor horrendo dos mortos, misturados ao sangue que ali pairava, deixaria qualquer um com fortes náuseas apenas por senti-lo de longe. A presença em excesso daquele miasma transformava o ambiente numa aterradora passagem carmesim.
Ou então, só parecia se apresentar daquela maneira.
Ponderando sobre a insuficiência da marcha pura, o cacheado respirou profundamente em prol de adentrar uma postura diferenciada.
Arqueou o corpo, ajeitou a cabeça da mulher-pássaro na cintura e levou as palmas a entrarem em contato de forma repetida.
O novo som ecoou pelo interior silencioso.
Habituava-se à escuridão no compasso do prosseguimento. Ao distinguir as figuras espalhadas sob o aroma da morte, cessou os passos e cerrou os palmos com vigor.
Uma mulher de estatura altiva e enormes asas surgiu.
As penas por boa parte do corpo e as patas de pássaro entregavam sua identidade. Estava de pé, enquanto um dos membros estrangulava a segunda figura em questão: um garoto de cabelo escuro, que depositava as últimas forças em agarrar a espada enferrujada.
Ao contemplar a cena, o filho de Zeus não chegou a demonstrar algum tipo de reação. Estava ciente de que não poderia fazer qualquer coisa pelo pobre coitado. Ainda assim, lutou contra o surgimento de uma fraca melancolia.
Do respectivo, quase nenhuma Energia Vital podia ser identificada. Por outro lado, a influência da mulher fervia. Experimentava animação e prazer misturados enquanto o executava, sem dó.
No decorrer de um breve instante, o apóstolo resgatou as palavras trocadas com Lilith, antes de se separarem no litoral. Caso pudessem fazer algo, fariam.
Do contrário, somente avançariam a fim de concluir a tarefa designada.
Após reafirmar o pensamento silente, rejeitou a sensação taciturna que ameaçava lhe dominar.
Dúvida alguma quanto àquilo deveria ser formulada pela mente...
— Tem alguém aqui? — Já sabia que a inimiga estava ali e mesmo assim questionou.
Nenhuma resposta veio da última sirena. Seus olhos afiados se adaptaram à profunda obscuridade, até identificar a silhueta do rapaz.
Nada de tão cativante prenderia a atenção dela, se não fosse a cabeça pendurada em sua cintura.
O interesse fixou naquele ponto.
— Esse cheiro é horrível. Quantas pessoas você matou? — insistiu o apóstolo.
Um novo momento de quietude se instaurou na gruta. Os olhares dos opostos se cruzaram pela primeira vez.
A figura de cada semblante ainda não podia ser discernida com exatidão, portanto o descendente divino preferiu abordar o caminho das suposições.
Enfim, a criatura respondeu:
— Sinto algo diferente vindo de você. Mas antes disso, poderia me responder uma pergunta?
Damon semicerrou as vistas, na busca de enxergar a feição da criatura com maiores detalhes. Apesar das dificuldades, confirmou o rápido desfazer de seu sorriso, bom indicativo na identificação acobertada.
Ao perceber a aparente desconfiança da mulher-ave, experimentou uma leve possibilidade de ganhar vantagem sobre o momento. Dessa forma, optou por provocar:
— Na verdade, eu que fiz a primeira pergunta. Poderia responder antes?
A mulher sentiu o baque proposital, mas não conseguiu arranjar outro modo de retrucar. Abaixou um pouco a perna erguida com sua pesada pata, enforcando o desfalecido menino até fazê-lo largar a espada.
Manteve a calma para não cair na conversa do estranho. Estreitou os globos em busca de analisá-lo melhor.
Logrou de encontrar um perfil circunspecto na faceta dele, então estalou a língua e decidiu prosseguir:
— Muitas pessoas. Já até perdi as contas, certamente. Viajantes, mortais olimpianos, muitos desses, mesmo. E agora estou prestes a acabar com mais um. Ou será que ele já está morto?
Virou o rosto até o garoto e elevou a potência do estrangulamento. A garganta dele foi profundamente perfurada. Filetes de sangue escorreram sobre os dedos da criatura.
Porém, diferente do que a própria esperava, nenhuma reação veio do outro lado. O corpo empalidecido perdeu peso. Todos os membros tornaram-se pêndulos na direção da terra.
Tal confirmação lhe arrancou um outro sorriso. Na sequência, tornou a encarar o invasor.
— Enfim, eu respondi sua pergunta. Que tal responder a minha agora? — Desceu o foco à formação arredondada. — De quem seria essa cabeça, pendurada em sua cintura?
O tom pronunciado por ela condizia com o clima atual da cavidade repleta de morte.
Damon se contorceu próximo ao indecifrável, pois aguardava ansiosamente por aquele instante. A primeira ação foi repousar a palma canhota acima do “prêmio” amarrado.
Disparou um fraco suspiro, sem hesitação ao responder:
— Quando chegamos aqui, fomos muito bem recebidos. Por isso, fiz questão de trazer isso aqui pra falar com você de uma forma mais interessante.
A feição reservada da monstruosidade foi alterada abruptamente quando o jovem revelou sua entonação desafiadora.
Cada olho da mulher, revelados numa tonalidade oceânica sobre a íris, se arregalou.
O filho de Zeus desamarrou o laço responsável por prender a cabeça de Ligeia na divisa entre torso e pernas. A pegou pelo cabelo manchado de sangue e a ergueu contra a criatura à frente.
Ao expressar confiança, confiante de tomar posse do controle das ações, mostrou a feição da sirena decepada.
A inimiga demorou a apresentar qualquer tipo de resposta, oferecendo a brecha para o apóstolo executar o comentário derradeiro:
— Creio que você conheça essa aqui. Afinal, ela era muito parecida com você... Isso responde sua pergunta?
O reconhecimento do crânio pendurado ganhou mais evidência quando as palavras ecoaram. A mulher abaixou a perna lentamente, deixou os pés do garoto semimorto voltarem a tocar o solo.
A escuridão aparentava ter clareado num estalar de dedos defronte a incrédula criatura.
Todos os sentidos buscavam renegar o fato cabal a poucos metros, contudo a ficha parecia prestes a cair totalmente.
Jamais imaginou que algo parecido ocorreria ao alcance das vistas. A exceção existia caso os responsáveis por bani-las do panteão o fizessem.
Pensando em tantas coisas, impossíveis de serem colocadas em palavras, a monstruosidade final reviveu momentos não tão distantes.
No ritmo de flashes a passearem rapidamente ante os olhos, recuperou as figuras das irmãs mais novas.
Agora precisamos dar nosso melhor, juntas. Um dia, certamente, conseguiremos tomar de volta o que é nosso...
A frase responsável por marcar o recomeço das três mulheres martelou na cabeça, lhe trazendo uma dor insólita.
Como se todo o choque fosse proliferado pelo corpo, remeteu aos tempos difíceis superados junto a Thelxiepia e Ligeia.
Tudo isso para, no fim da queda em regresso à realidade, vociferar num timbre gutural:
— MINHA IRMÃAAAA!!!
O eco estridente dominou toda a caverna e refletiu num impacto poderoso, capaz de surpreender o olimpiano. Ele já estava ciente sobre o poder vocal das Sirenas, a arma mais perigosa delas.
Contudo mesmo tamanha repercussão frente a um grito desesperado era espantoso.
Ao perceber um deslocamento ameaçador provir da adversária, Damon soltou o prêmio no chão. Experimentou a rápida produção de adrenalina em seu corpo, como não ocorria há tempos, a ponto de mostrar os dentes amarelados.
Não se tratava de um sorriso, mas uma demonstração de seriedade capaz de rebater o ímpeto estabelecido pela monstra. Isso causou espanto na própria, o que permitiu ao adversário avançar o primeiro passo à medida que reunia Energia Vital.
Um clarão branco-azulado surgiu ao redor do corpo que desapareceu diante dos olhos da ave.
Não houve tempo hábil para ela reagir. Foi assolada pela ventania quente a rasgar ao flanco numa velocidade assombrosa.
Antes de ser permitida a pensar em algo, perdeu o peso da perna que segurava o corpo do outro garoto. Ao enxergar resquícios de sangue esvoaçarem através da visão periférica, encontrou a pior resposta possível.
Sua pata não estava mais conectada ao tornozelo, esse lacerado pela metade. A carne viva escura, a exemplo do fluido corporal, ficou à mostra sobre o pedaço da tíbia e da fíbula partidas.
O congelamento foi instantâneo. A dor e ardência vieram misturadas da região decepada pelo adversário. Em retorno, agora a mulher podia observá-lo por inteiro.
Semelhante a um raio, Damon executou o primeiro golpe ao ultrapassar a criatura, sem lhe dar a chance de o acompanhar.