Volume 2

Capítulo 32: Zalameu Karlai

A jornada atravessando as Terras Selvagens havia endurecido Zalameu mais do que décadas de exílio. Cada passo em direção a Noctus era um prego sendo martelado no caixão de promessas que fizera a si mesmo. "Nunca mais." As palavras ecoavam como zombaria.

O cavalo sob ele — um garanhão negro que custara meses de caça — cheirava a suor e medo. Animais sempre sabiam. A besta sentia o que montava suas costas não era simplesmente um vampiro, mas algo que aprendera a sobreviver onde deuses antigos abandonaram esperança.

Zalameu puxou as rédeas quando os Portões de Ferro de Noctus emergiram no horizonte. Estruturas colossais que perfuravam o céu noturno como lanças de titãs mortos. Quanto tempo? Poderia ter sido séculos pela forma como seu estômago se revirava.

A última vez que atravessara aqueles portões, carregava o peso de Ashenmoor nas costas. O cheiro ainda persistia nas narinas quando fechava os olhos — memórias que não pediam permissão para retornar. Três mil. O número nunca desaparecia, não importava quantos anos se passassem.

—  Alto! — A voz cortou seus pensamentos. Quatro guardas imperiais bloqueavam a entrada, lanças cruzadas. Armaduras polidas refletiam tochas como escamas de serpente. — Identifique-se.

Zalameu não respondeu imediatamente. Observou cada um. Jovens demais. Nem nascidos quando ele partira. Bom. Seria mais fácil se não o reconhecessem.

Ergueu a mão esquerda, deixando o anel de obsidiana capturar a luz das tochas. O brasão Karlai — dragão negro envolto em rosa vermelha — brilhou com luz própria.

O guarda mais velho empalideceu. Não de medo. De compreensão.

— Abram os portões — ele rosnou para os companheiros. — Agora.

— Mas capitão, o protocolo—

—  AGORA.

O ferro rangeu. Correntes se moveram. O portão se abriu como boca de abismo revelando dentes.

Noctus não mudara. Ainda cheirava a incenso caro mascarando podridão barata. Aristocratas ainda caminhavam com narizes empinados, pisando em servos com a mesma naturalidade que evitavam poças. Guardas ainda patrulhavam com rigidez que confundiam disciplina com medo de questionar ordens.

Mas havia algo diferente. Tensão. Não aquela tensão comum de cidade que dorme com um olho aberto. Essa era visceral. Zalameu sentiu no ar — vampiros evitando certas ruas, escravos apressando passos quando sombras alongavam demais, até as prostitutas nas esquinas sussurravam com olhos nervosos.

"Hécate sumiu", as palavras de Cassius na carta. Seu filho. O Primeiro Messor que deveria ser invencível. Desaparecido.

A irritação queimava. O nome Karlai estava em jogo. E nomes eram tudo que mantinha predadores à distância.

Smael. Icarus. Os nomes dos netos atravessaram sua mente como lâminas. Detestava-os — o herói tolo e o bastardo que manchara séculos de linhagem. Mas a mão direita de Zalameu tocou inconscientemente o peito, onde sob o couro curtido repousava um pequeno medalhão. Dentro, dois fios de cabelo. Um negro, um castanho. Família. A maldição que nenhuma distância conseguia quebrar.

“Estou sendo observado”

Zalameu não virou a cabeça. Apenas registrou. Alguém observava. Bom. Deixe que observem.

O Palácio Imperial erguia-se adiante. Colunas de mármore negro subiam até se perderem na escuridão perpétua do céu. Gárgulas com faces conhecidas demais — antigos traidores transformados em pedra como lembrete eterno.

Zalameu desmontou na escadaria principal. Um servo correu para pegar as rédeas, mas recuou quando viu o olhar do cavaleiro. Inteligente.

—  O Imperador aguarda no Salão da Lua — uma voz feminina, fria como lâmina recém-forjada. Krista Kalivez materializou-se das sombras. Sua bengala de ébano batia no mármore com regularidade que lembrava relógio contando minutos até execução. — Ele está... ansioso por sua chegada.

Zalameu estudou a vampira. Mudara. Linhas ao redor dos olhos que não existiam antes. Tensão nos ombros. Krista sempre fora controlada demais, mas agora parecia corda de violino prestes a estalar.

—  O veneno está matando-o?

A pergunta saiu sem rodeios. Krista piscou, surpresa fugaz antes da máscara retornar.

—  Veneno Vaikeano. Avançado. — Ela virou, guiando-o pelos corredores. — Os alquimistas tentam retardar, mas...

—  Mas Vaikeanos não fazem veneno com antídoto.

—  Não.

Eles caminharam em silêncio. O palácio estava diferente também. Menos guardas nos corredores principais, mais nas sombras. Zalameu contou sete posições de emboscada apenas no primeiro corredor. Alguém estava paranóico. Ou realista.

O Salão da Lua permanecia intocado pelo tempo. Colunas de obsidiana subindo até cúpula onde lua falsa — cristal encantado — banhava tudo em luz prateada que nunca aquecia.

Cassius Adrian aguardava no centro. Não no trono, mas sentado numa cadeira simples. Ao seu redor, quatro figuras: Krista, Jargal Ostrus vestindo togas cerimoniais brancas com detalhes vermelhos, e Plastissax Vigil, o Segundo Messor, recostado em sua bengala com expressão ilegível.

Tática interessante. Cassius estava jogando todas as cartas na mesa.

O Imperador ergueu o olhar. Décadas não haviam sido gentis. O vampiro que Zalameu lembrava era arrogante, cheio de fogo e convicção. Esse homem estava esvaziado. Olhos fundos, pele com tonalidade acinzentada característica do veneno Vaikeano, mãos tremendo levemente mesmo entrelaçadas.

Mas ainda havia aço naqueles olhos. Aço que Zalameu reconhecia.

—  Zalameu Karlai — Cassius disse. Voz rouca mas firme. — Obrigado por vir.

— Ordem Real Absoluta não oferece "opção de vir", Cassius. — Zalameu não fez reverência. Não se ajoelhou. Permaneceu em pé, imóvel como monumento. — Então me diga: qual bagunça Hécate deixou para trás?

A franqueza cortou o ar como machado. Jargal tossiu discretamente. Plastissax ergueu sobrancelha, interessado.

Cassius, para seu crédito, não fingiu ofensa.

—  Hécate desapareceu. Sem rastro. Sem explicação. — Cassius gesticulou vagamente. — Na mesma noite, Vaikeanos infiltraram o palácio. Um chegou aos meus aposentos.

Zalameu arqueou sobrancelha. — Impossível. As runas—

—  Foram contornadas. — Jargal falou pela primeira vez, voz medida. — Alguém lhes deu os padrões. Alguém de dentro.

Silêncio. Não o silêncio comum, mas aquele carregado de implicações que mudavam fundações de impérios.

—  Conspiração — Zalameu disse. Não era pergunta.

—  Conspiração. — Cassius caminhou até mesa lateral onde mapa do Império estava desenrolado, peças de guerra marcando posições. — O Conselho está dividido. Senadores que antes apenas sussurravam agora falam abertamente. Com Hécate ausente...

— O muro caiu.

Cassius assentiu. — Exatamente. Hécate era o medo que mantinha as serpentes em suas tocas. Sem ele, elas rastejam livremente.

Zalameu estudou o mapa. Peças em posições interessantes. Fronteiras ao norte reforçadas. Rotas comerciais do sul marcadas em vermelho.

—  E o bastardo? Onde está Icarus?

Plastissax deu passo à frente. — Fugiu. Rash, um dos tenentes de Hécate, permitiu sua fuga. Traição ou...

—  Pacto de sangue — Zalameu completou, olhos estreitando. — Rash serviu sob Hécate. Anos de campanha juntos. Lealdade forjada em sangue.

Cassius confirmou com aceno. — Suspeitamos o mesmo. Hécate pode ter ordenado que Rash protegesse Icarus caso algo acontecesse. Um seguro.

—  Então meu filho sabia. — Zalameu não soava surpreso. — Sabia que algo poderia dar errado. E mesmo assim foi sozinho para qualquer abismo que o engoliu.

—  Idiota arrogante — murmurou Plastissax. Depois, percebendo que falara alto, adicionou: — Com todo respeito.

— Sem respeito necessário. — Zalameu concordou. — Você está certo. Hécate sempre acreditou ser invencível. Essa arrogância o matou. Ou pior.

Jargal ajustou as vestes. — A situação política é delicada. Com Hécate desaparecido e Icarus fugitivo, o nome Karlai—

—  Está sendo arrastado pela lama. — Zalameu cuspiu. — Entendo perfeitamente.

Cassius virou, encarando-o diretamente. — Preciso de você, Zalameu. Não para política. Para caçar sombras. Descobrir quem traiu o Império. Encontrar Hécate, vivo ou morto. Estabilizar o caos antes que tudo desmorone.

Zalameu riu. Som seco, sem humor.

—  Você quer o Ceifador de volta. Quer que eu limpe sua bagunça com ferro e fogo, assim como fiz para seu pai.

— Sim. — Cassius não negou.

Zalameu caminhou até ficar frente a frente com o Imperador. — Então admita. Diga em voz alta o que realmente quer.

Cassius sustentou o olhar. — Quero que você mate quem precisa morrer. Sem perguntas. Sem julgamento. Apenas justiça rápida e permanente.

— Justiça. — Zalameu testou a palavra. — Palavra bonita para assassinato sancionado.

—  Chame como quiser. — Cassius não recuou. — Mas é o que o Império precisa agora.

Zalameu virou, caminhando até a janela que dava para a cidade. Lá embaixo, Noctus pulsava. Vida apesar da morte. Morte apesar da vida. Círculo infinito.

—  Ashenmoor — ele disse, voz baixa. — Seu pai, Atheron IV, ordenou que eu pacificasse aquela cidade. Disse que eram rebeldes perigosos. Ameaça existencial ao Império.

Ninguém respondeu. Todos conheciam a história.

— Três mil almas. — Zalameu continuou. — Queimei aquela cidade até as pedras cantarem. Fiz exatamente o que seu pai ordenou. Sem hesitação. Sem piedade.

Cassius fechou os olhos brevemente. — Eu sei.

—  E descobri depois — Zalameu virou, olhos frios — que a "rebelião" eram famílias recusando impostos porque a colheita fracassara. Mas Atheron precisava de exemplo. Então transformou recusa em traição. E eu... eu fiz o trabalho sujo.

— Se pudéssemos voltar—

—  Não podemos. — Zalameu cortou. — E eu não carrego arrependimentos, Cassius. Ashenmoor foi necessário. Para criar este Império. Para manter ordem. Para ensinar lições que durassem gerações. — Ele pausou. — Eu apenas não sirvo mais.

O silêncio esticou. Depois, algo inesperado aconteceu.

Cassius levantou.

Movimentos lentos, dolorosos. Cada centímetro custando força de vontade que deveria ter sido gasta mantendo-se vivo. Sangue fresco manchou a bandagem sob suas vestes. O ferimento reabrira.

Krista deu passo à frente. — Majestade, você não pode—

Cassius ergueu mão, silenciando-a. Continuou levantando. Continuou caminhando. Aproximou-se de Zalameu, passo após passo, deixando rastro de gotas vermelhas no mármore branco.

Parou a centímetros do Ceifador. Tão perto que seus hálitos se misturavam. Cassius, quase morrendo, sustentou o olhar do homem mais perigoso do Império.

—  Você diz que não serve mais — Cassius falou, voz baixa mas firme como ferro. — Diz que Ashenmoor o quebrou. Que virou suas costas porque não aguenta mais carregar peso de impérios. — Ele inclinou-se ainda mais perto. — Mentira.

Zalameu não piscou. — Cuidado, garoto.

—  Você fugiu — Cassius continuou — porque descobriu que ainda se importa. Descobriu que Ashenmoor te machucou não porque matou inocentes, mas porque percebeu tarde demais que eram inocentes. E isso, para alguém como você, é insuportável.

Os músculos de Zalameu tensionaram. Jargal deu passo discreto para trás.

— Você diz que detesta seus netos — Cassius pressionou. — Mas aqui está, respondendo minha convocação. Poderia ter ignorado. Ordem Real Absoluta custa títulos, não vida. Você sobreviveria nas Terras Selvagens. Mas veio. Porque sangue importa. Família importa. E você odeia admitir isso.

Zalameu agarrou a gola de Cassius. Força suficiente para quebrar pescoço com movimento simples.

Cassius não se defendeu. Apenas sustentou o olhar.

—  Me mate se quiser — ele sussurrou. — Provará meu ponto. Que ainda se importa o suficiente para sentir raiva. Para sentir algo.

Os dedos de Zalameu tremeram. Depois, lentamente, soltaram.

Cassius cambaleou, mas ficou em pé. Sangue escorria livremente agora, mas ele não se sentou. Não recuou.

—  Eu preciso de você — Cassius disse finalmente. — Não do Ceifador sem alma. Do homem que ainda sangra quando cortado. Do pai que detesta os filhos mas morreria por eles. Do avô que finge não sentir nada mas respondeu convocação porque netos estão em perigo.

Zalameu virou, mãos fechadas em punhos.

— Você não sabe nada sobre mim.

— Sei tudo sobre você. — Cassius finalmente se permitiu apoiar na mesa, ofegante. — Porque sou igual. Carrego Império nas costas sabendo que é construído sobre ossos. Faço escolhas impossíveis porque alguém precisa fazer. E morro um pouco a cada decisão. — Ele tossiu sangue. — Mas ainda levanto. Porque isso é o que reis fazem. É o que leões fazem.

Os olhos de Zalameu brilharam. Reconhecimento. Respeito.

Cassius sustentou firme. Mesmo quase morrendo, havia força ali. Força de rei. Força que comandara impérios e quebrara nações.

—  Você tem força de seu pai — Zalameu disse finalmente. Não era elogio. Era constatação. — E a mesma habilidade de colocar facas onde mais doem.

Cassius sorriu. Amargo. — Aprendi com os melhores.

Zalameu virou completamente. Estudou cada pessoa na sala. Depois, assentiu.

—  Carta branca. Mato quem precisa morrer. Descubro quem traiu. Estabilizo o caos. — Ele pausou. — E Icarus permanece esquecido até eu terminar.

— Aceito.

—  Quando terminar, volto para as Terras Selvagens. Sem discussão.

—  Aceito.

Zalameu estendeu a mão. Cassius apertou. Aperto firme. Promessa selada não em honra, mas em necessidade mútua.

Plastissax limpou a garganta. — Uma pergunta, se me permite.

Zalameu olhou para o Segundo Messor.

— Você não está preocupado com Hécate? — Plastissax perguntou cautelosamente. — Seu filho, desaparecido, possivelmente morto...

Zalameu caminhou até a janela novamente. Observou Noctus lá embaixo. Depois, sem virar, respondeu.

— Hécate era mais forte que eu. — A voz saiu baixa, mas cada palavra pesava como chumbo. — Mais rápido. Mais letal. Treinei aquele garoto para sobreviver ao impossível. Se alguém conseguiu matá-lo...

Silêncio absoluto.

—  ... então é melhor abraçarmos nossas famílias e dizermos adeus.

O peso daquelas palavras caiu sobre a sala como lápide. Krista sentiu calafrio percorrer a espinha. Jargal empalideceu. Até Cassius, mesmo esperando resposta sombria, não antecipara aquilo.

Plastissax engoliu seco. — Você está dizendo que se algo derrotou Hécate Karlai...

—  Estou dizendo — Zalameu virou, olhos mortos de emoção — que estamos todos fodidos. Muito mais do que conspiração no Conselho. Muito mais que Vaikeanos nas muralhas. — Ele caminhou para a saída. — Por isso vou descobrir o que realmente está acontecendo. Antes que descubram do jeito difícil.

Na porta, parou.

— Mantenha-se vivo. Vou precisar de alguém para culpar quando isso acabar.

Depois saiu, passos ecoando pelos corredores até desaparecerem na escuridão.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora