Volume 2
Capítulo 31: O Preço da Fome
Icarus cuspiu no balde e viu seus dentes. Dois incisivos flutuando na água vermelha, arrancados com as próprias mãos três horas atrás quando começaram a crescer demais. Agora, novos já despontavam das gengivas, mais afiados, doendo como ferro aquecido empurrando através de carne.
Ele tocou a ponta de um com a língua. Cortou-se. O gosto do próprio sangue fez seu estômago revirar, não de nojo, mas de desejo.
A bandeja sobre a mesa exibia pão de ontem. Tentara comer ao amanhecer. Três bocados. Vomitara dois. O corpo rejeitava mentiras agora.
— Ikki! Meia hora!
A voz de Cárbara atravessou o assoalho como unha em madeira velha. Icarus limpou a boca, manchando a manga de vermelho. Suas mãos tremiam.
Bateram na porta. Gabi entrou antes que ele respondesse, viu o balde, viu os dentes, viu a manga ensanguentada.
— Merda.
Não era pergunta. Não era preocupação. Era constatação. Gabi conhecia os sinais. Cicatrizes de tortura ensinavam isso.
— Consigo tocar — ele disse.
— Não perguntei se consegue. Perguntei quanto tempo temos.
Ele olhou para as próprias mãos. Veias escuras serpenteando sob pele translúcida. Dedos longos demais, articulações proeminentes demais.
— Não sei.
Gabi cruzou os braços. Posicionou-se entre ele e a porta, casual, mas Icarus notou como ela mantinha o peso distribuído. Pronta para se mover rápido se precisasse.
— Lucan perguntou por você. Conseguiu sentar hoje.
— Bom.
— Comeu meia tigela sem vomitar.
— Ótimo.
— Icarus.
Ele olhou para ela. Gabi não desviou os olhos, nunca desviava.
— Tem gente perguntando sobre o garoto que toca violão. Mercenários da Guilda, pelo brasão.
— Só sabem de Ikki.
— Por enquanto. — Ela foi até a janela, verificou a rua. — Cárbara está preocupada. Talento demais chama atenção demais.
— E o que eu faço? — A voz dele saiu mais áspera que pretendia. — Paro de tocar e perdemos o quarto? Lucan ainda precisa de tempo.
— Lucan precisa de você vivo.
Silêncio. Lá embaixo, conversas abafadas. E sob tudo isso, pulsos. Dezenas de pulsos batendo ritmos ligeiramente diferentes, chamando.
— Você vai tocar — Gabi disse. — Depois, conversamos.
Ela saiu. A porta fechou suave demais para o peso da conversa.
O Último Porto cheirava a rum barato e cerveja azeda. Icarus desceu as escadas, violão nas costas, e mapeou a sala por instinto. Trinta e sete pessoas. Quarenta e dois pulsos — uma mulher grávida no canto, gêmeos. Seis crianças na porta, rostos pressionados contra o vidro sujo.
Ninguém parou de conversar quando ele apareceu. Nunca paravam. Só começavam a silenciar quando ele tocava.
Cárbara acenou do bar. Seus olhos disseram: "cuidado". Sempre diziam isso. Icarus varreu a sala procurando ameaças e encontrou algo pior.
Um velho na mesa mais escura.
Não sentado na sombra. A sombra acumulava-se ao redor dele como cães esperando ordem. Luz de vela morria antes de tocá-lo. Suas roupas mudavam de cor conforme Icarus olhava, cinza depois marrom depois algo entre os dois.
Mas eram os olhos. Claros demais. Conscientes demais. Como se houvesse mais consciência concentrada ali do que em todo o resto da sala somada.
Icarus piscou, pronto para desviar o olhar.
"Eu sei quem você é."
A voz brotou dentro de sua própria mente. Não som, mas memória de som, como se sempre estivesse lá esperando ser ouvida.
O velho sorriu. Não bondoso. Não cruel. Apenas um sorriso de quem sabe o final da história.
Icarus passou a mão pelo rosto. Respirou. Piscou três vezes.
Quando abriu os olhos, a cadeira estava vazia. Apenas ar vibrando onde algo poderoso estivera.
— Ikki?
Ele forçou as pernas a se moverem. Subiu no palco. O violão assentou em suas mãos como osso reconhecendo osso.
Fechou os olhos.
O silêncio veio gradual. Conversas morrendo. Copos parando no ar. Respirações sincronizando.
Então veio o vazio. Não ausência de som, mas presença de possibilidade. O momento antes de universos nascerem.
Icarus tocou.
A primeira nota saiu simples. Ré menor. A segunda respondeu meio tom acima. Seus dedos se moveram e ele parou de pensar. A melodia cresceu camada sobre camada, não bonita, mas honesta. Era música de gente que esquecera ter nome. De crianças que aprenderam roubar antes de ler. De prostitutas lavando sangue de clientes das coxas. De assassinos perguntando quando pararam de sentir.
Na porta, seis crianças esqueceram a fome. Nas janelas, uma mulher com metade do rosto derretido por ácido chorou pela primeira vez em anos. No fundo, um homem com dezessete mortes nas costas viu o rosto da primeira vítima.
A música os despiu. Arrancou armaduras. Lembrou-os que, sob cicatrizes e crueldade, ainda havia algo humano tentando respirar.
Quando a última nota morreu, ninguém aplaudiu. Seria profanação. Um por um, cabeças baixaram.
Icarus abriu os olhos e viu Liam no fundo. Braços cruzados. Mas algo no rosto dele estava diferente, macio de uma forma que Icarus nunca vira. Gabi notou também, e sorriu discreto.
Icarus desceu. Cárbara deslizou água pela mesa. Ele bebeu e foi como engolir vidro moído.
A sede queimava pior agora. Sempre pior depois de tocar. Como se música consumisse o humano e deixasse apenas o outro lado faminto.
Icarus não voltou pro quarto após a apresentação. Ele simplesmente piscou.
Meia-noite em Nepau era quando a cidade mostrava sua face real. Nas vielas, corpos se contorciam em atos sem nome. Gritos que podiam ser dor ou prazer. Crianças pequenas demais arrastadas para escuridão.
Icarus andou. Predador procurando presa.
Seus olhos ardiam, vermelhos onde deveria haver verde. Presas completas desciam involuntárias. Veias negras subiam pelo pescoço. Ele tocou uma delas com os dedos e sentiu o pulso acelerado, faminto.
Uma viela. Um homem. Bêbado, cambaleando, sozinho. Veia do pescoço pulsando visível mesmo na escuridão.
"Isso é assassinato", razão sussurrou.
"É sobrevivência", a fome rugiu.
Icarus se aproximou. Três passos. Dois.
O bêbado tropeçou, caiu de bruços. Inconsciente.
Icarus ajoelhou ao lado dele. Presas descidas. Saliva enchendo a boca. Mãos tremendo, não de medo, mas antecipação. Virou o pescoço do homem. A veia ali, azul e cheia, prometendo fim para agonia.
"Lucan confia em você. Gabi te seguiu. Liam começou a acreditar."
"E eles não estão aqui. E você está morrendo."
Icarus mordeu.
Pele rasgou. Sangue jorrou, quente e grosso. O gosto explodiu em sua boca — não cobre, mas vida líquida. Salvação. Fim de tortura.
Ele bebeu. Não três ou quatro goles. Bebeu até o corpo parar de convulsionar. Bebeu até o coração do homem desacelerar. Bebeu até não restar nada além de um saco vazio de carne.
Quando soltou o pescoço, o bêbado não respirava mais.
Icarus tropeçou para trás. Bateu contra a parede. Sangue escorria por seu queixo, suas mãos, manchando sua camisa.
Mas sob o horror, algo mais. A fome recuara. Pela primeira vez em semanas, o corpo não doía. Os músculos não tremiam. A mente estava clara, afiada, viva.
E mais. Ele levantou, testou as pernas. Mais leves. Mais rápidas. A força fluía através dele como rio descongelando após inverno longo.
"O que você fez? O que você fez?"
Mas a voz da consciência soava distante agora, abafada pela sensação de estar, pela primeira vez desde Noctus, completo.
Passos.
Icarus se virou, rápido demais, quase um borrão. O velho emergiu das sombras no final da viela.
— Quem é você? — Voz saindo gutural, inumana.
O velho inclinou a cabeça. Estudou o corpo. Estudou Icarus. Seus olhos brilhavam com algo além de inteligência.
Icarus piscou. Quando abriu os olhos, o velho havia sumido. Não simplesmente ido embora — removido da realidade, deixando apenas vazio onde estivera.
Icarus olhou para o corpo. Precisava se livrar dele. Em Nepau, corpos em vielas eram rotina, mas não queria arriscar. Pegou o bêbado pelos braços — leve demais, seu corpo agora forte demais — e o arrastou até uma vala no final da viela onde lixo e dejetos se acumulavam.
Jogou o corpo lá. Cobriu com tábuas velhas e trapos sujos. Ninguém procuraria. Ninguém se importaria. Mais um esquecido em cidade de esquecidos.
Caminhou de volta. Cada passo mais leve que o anterior. Sentindo músculos responderem instantâneo. Sentindo sentidos aguçados captando sons a quarteirões de distância.
"Isso é o que você é agora. Assassino."
Mas a voz da consciência não carregava peso suficiente contra a sensação de estar vivo.
Icarus entrou pela porta da frente da taverna. Silencioso. O salão estava vazio, cadeiras sobre mesas, chão limpo.
Exceto pelo homem sentado no bar.
Lucan.
O capitão estava curvado sobre o balcão, uma mão pressionando o lado onde a ferida de Rash ainda cicatrizava. Suas roupas estavam manchadas de sangue fresco — não o sangue velho das bandagens, mas novo, vermelho vivo. Ele respirava pesado, cada inspiração um esforço.
Icarus congelou na porta.
Lucan virou a cabeça devagar. Seus olhos, sempre atentos mesmo ferido, encontraram os de Icarus. Estudaram-no. Notaram o sangue seco no canto da boca que ele não limpara completamente. Notaram as mãos ainda manchadas. Notaram a forma como Icarus se movia, diferente, mais fluido.
— Pega uma bebida pra mim — Lucan disse, voz rouca. — Rum. O mais forte que a Cárbara tiver.
Icarus hesitou, depois foi atrás do bar. Encontrou a garrafa, encheu um copo, levou até Lucan. O capitão bebeu metade de um gole, depois pousou o copo.
— Onde você estava?
— Fui... dar uma volta.
Lucan riu. Foi uma risada curta, sem humor, que terminou em tosse dolorida. Ele limpou sangue dos lábios.
— Dar uma volta. — Outro gole de rum. — Sabe qual é minha função na Ordem da Prata?
Icarus não respondeu.
— Capitão de esquadrão de infiltração. Especializado em vampiros. — Lucan virou-se no banco, encarando Icarus diretamente. — Aprendi a reconhecer cheiros. Sangue velho versus sangue novo. Medo versus fome. E assassinos. Especialmente assassinos.
O ar entre eles ficou denso. Icarus deu um passo para trás, calculando a distância até a porta.
A mão de Lucan pousou em seu ombro. Rápida, mas não ameaçadora. Firme.
— Eu odeio vampiros — ele disse, cada palavra pesada. — Passei dez anos caçando eles. Matei dezenas. Vi o que fazem com humanos. Com crianças.
Icarus tentou se soltar, mas a mão de Lucan apertou.
— Eu não...
— Não minta pra mim. — A voz de Lucan era calma, mas carregava autoridade que comandara homens em batalha. — Sei o que você fez. Sinto o cheiro em você.
Silêncio. Icarus parou de tentar se soltar.
— Dessa vez passa — Lucan disse, soltando seu ombro. — Porque sei o que é fome. Sei que você aguentou semanas. Muitos não conseguiriam metade disso.
Ele terminou o rum, pousou o copo com cuidado.
— Mas se acontecer de novo, não terei escolha. Entende?
Icarus assentiu devagar.
— Vamos encontrar outra forma. — Lucan levantou do banco, cambaleou, apoiou-se no balcão. — Tem que ter jeito de saciar isso sem perder quem você é. Sem matar.
— E se não tiver?
Lucan olhou para ele. Não havia mentira em seus olhos. Nem falsa esperança.
— Então eu te paro. Do jeito que for preciso.
Ele começou a caminhar em direção às escadas. Cada passo era esforço. Na base dos degraus, parou.
— Limpe esse sangue do rosto — disse sem olhar para trás. — E tente dormir. Amanhã conversamos.
Lucan subiu devagar. Icarus ficou sozinho no salão vazio, o peso da noite e das escolhas pressionando seus ombros.
Ele foi até o bar, pegou um pano, molhou com água. Limpou o rosto. A água no pano ficou vermelha.
Olhou para as próprias mãos. Mais fortes. Mais rápidas. Mais mortais.
"Por que gostei tanto disso?"
Essa era a verdade que doía mais que qualquer fome.
Icarus subiu para o quarto. Deitou na cama. Olhou o teto. E não dormiu.
Porque sabia que, quando dormisse, sonharia com o momento. O momento em que dentes rasgaram carne. O momento em que sangue tocou língua novamente. O momento em que um lado foi mais forte que outro.
E a parte mais assustadora? Não era horror que sentia ao relembrar.
Era fome de fazer de novo.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios