Volume 1
Capítulo 30: Tristeza e Alegria
O Imperador Cassius Adrian ajustou a gola de veludo negro diante do espelho de corpo inteiro. O traje de gala era uma obra de arte em si — casaca de seda negra com bordados em fio de prata formando o brasão imperial, calças de corte impecável, botas polidas até refletirem como obsidiana líquida. Mas eram os detalhes que revelavam o peso do momento: a corrente de ouro branco atravessando o peito, cada elo representando uma geração de imperadores; o broche de rubi no tamanho de um ovo de pomba, pulsando com luz própria; a coroa cerimonial, usada apenas em ocasiões onde o Império se mostrava em toda sua glória.
— Está impecável, Majestade — Krista observou da porta, ela própria uma visão em seu vestido de gala. O tecido mudava de cor conforme se movia — ora púrpura profundo, ora negro absoluto — e símbolos históricos antigos bordados em platina cintilavam nas bainhas. Seu cajado cerimonial fora trocado por uma bengala ornamental cravejada de ametistas.
— Impecável — Cassius repetiu, provando a palavra. — Como se a perfeição externa pudesse mascarar a podridão interna.
Jargal entrou em seguida, ajustando os punhos de sua toga branca imaculada. As faixas vermelhas que marcavam seu cargo pareciam feridas frescas contra o tecido pristino.
— As carruagens estão prontas — anunciou. — A cidade inteira se prepara. Dizem que até os mendigos do Buraco Negro economizaram para comprar ingressos.
Antes que Cassius pudesse responder, batidas furiosas sacudiram a porta. Sem esperar permissão, Smael Karlai irrompeu no aposento. Ainda mostrava sinais da recuperação — ataduras sob a camisa, um leve mancar — mas seus olhos ardiam com fúria que superava qualquer dor física.
— Como pôde? — ele brandiu uma cópia do Arauto Noturno, o principal jornal de Noctus. — “Uma tragédia em três atos sobre amor proibido e sangue corrompido”? “A verdadeira história do Primeiro Messor”? Vai deixar que arrastem o nome do meu pai pela lama?
Cassius pegou o jornal, lendo a sinopse com calma estudada:
“A Trupe dos Bardos apresenta ‘Rosa Negra, Lírio Branco’ - a história jamais contada de um amor que desafiou impérios. Descubra como o maior herói de Noctus escondeu o maior segredo do Império. Uma obra que promete revelar verdades há muito enterradas.”
— Jon Saltador é um artista — Cassius disse finalmente. — A arte… encontra seus próprios caminhos.
— Arte? — Smael cuspiu a palavra. — Isso é traição! É—
— É necessário — Cassius interrompeu, sua voz cortando como gelo. — Sente-se, Smael. Deixe-me explicar algo sobre poder.
Relutante, Smael obedeceu, afundando numa cadeira como se o peso do mundo tivesse dobrado.
— Jon não é nosso inimigo — Cassius continuou. — Pode até ser nosso maior aliado. Ele controla narrativas, Smael. E narrativas controlam impérios mais efetivamente que exércitos.
— Mas a peça—
— Veremos o que a peça realmente diz quando as cortinas se abrirem. Às vezes, a verdade precisa ser contada de forma… criativa.
Por toda Noctus, a elite se preparava para o evento do século.
Plastissax estava em seus aposentos, permitindo que um servo ajustasse sua capa cerimonial. O tecido era negro como vazio, mas quando se movia, revelava um forro vermelho-sangue. Sua bengala fora polida até brilhar, e pela primeira vez em anos, ele usava todas as suas medalhas — cada uma representando uma batalha, uma vitória, um sacrifício.
— As peças se movem — murmurou para seu reflexo. — E o tabuleiro está prestes a virar.
E por toda a cidade, de mansões a cortiços, Noctus se preparava para a noite que mudaria tudo.
A carruagem de Smael deslizava pelas ruas de paralelepípedo como um barco negro navegando rio de sombras. Ele observava a cidade através das cortinas de veludo, maravilhando-se com a transformação.
Noctus nunca dormia, mas esta noite ela estava mais desperta que nunca. Lanternas extras haviam sido penduradas em cada poste, criando constelações artificiais que competiam com a lua eterna. Vendedores ambulantes gritavam suas mercadorias — “Libretos da peça! Conheça os personagens antes do primeiro ato!” — enquanto nobres em trajes desfilavam como pavões negros.
A Praça das Fontes Sussurrantes fora transformada num mar de tendas onde artistas menores se apresentavam, esperando capturar migalhas da atenção destinada ao evento principal. Malabaristas jogavam adagas flamejantes, contorcionistas se dobravam em formas que desafiavam anatomia, e um homem engolia espadas enquanto sua assistente narrava trechos dramáticos de peças antigas.
Mas era a lua que dominava tudo. Cheia e prateada, pendia sobre Noctus como um olho divino, banhando a cidade em luz que transformava o comum em extraordinário. As torres de obsidiana capturavam seu brilho e o devolviam fragmentado, criando um jogo de luz e sombra que fazia a própria cidade parecer um cenário.
E então, emergindo da névoa como um sonho se materializando, surgiu o Teatro Imperial.
Era impossível. Era inevitável. Era arte transformada em arquitetura.
A estrutura se erguia em camadas como um bolo de casamento gótico, cada nível mais ornamentado que o anterior. Gárgulas de mármore negro guardavam cada canto, suas bocas abertas vertendo névoa perfumada que descia em cascatas etéreas. Colunas torcidas em espiral sustentavam varandas onde a elite já se reunia, taças de sangue brilhando como rubis líquidos.
Mas era a cúpula que roubava o fôlego. Vidro — não comum, mas vidro de cristal, cada painel uma obra de arte em si. À noite, sob a lua, tornavam-se translúcidos, permitindo que a luz lunar banhasse o interior em prata líquida.
Smael desceu da carruagem e subiu os degraus de mármore, cada passo ecoando como batida de tambor cerimonial. Porteiros em librés carmesim se curvavam, suas máscaras douradas refletindo os rostos distorcidos dos que passavam.
O interior superava o exterior em grandiosidade. O foyer era uma catedral dedicada à arte dramática. Afrescos no teto mostravam cenas das grandes tragédias — amantes morrendo, reis caindo, deuses chorando. Candelabros de cristal negro pendiam como aranhas gigantes, cada vela uma estrela aprisionada.
Mas era o teatro em si que provocava suspiros involuntários.
Fileiras sobre fileiras de assentos de veludo vermelho-sangue se curvavam em semicírculo perfeito, cada uma oferecendo visão impecável do palco. Camarotes privativos se empilhavam nas laterais como ninhos de águias, cortinas de seda ocultando seus ocupantes ilustres. E acima, a cúpula de vidro transformava o teatro em aquário invertido, a lua nadando em seu topo.
O palco era simplicidade enganosa — tábuas de madeira escura polidas até espelharem, cortinas de veludo negro esperando para revelar mundos. Mas Smael, conhecedor de teatro, reconheceu os sinais: alçapões discretos, maquinaria oculta, espaços que poderiam se transformar em qualquer cenário que a imaginação exigisse.
Um sussurro percorreu a multidão, crescendo até tornar-se ovação. O Imperador chegara.
Cassius entrou como a própria noite se materializando. Cada passo media, cada gesto calculado para projetar poder absoluto. A multidão se levantou em uníssono, aplausos trovejando como tempestade. Ele acenou — benevolente, distante, divino — e tomou seu lugar no camarote imperial, Krista e Jargal flanqueando-o como guardiões místicos.
Smael encontrou seu próprio camarote, dividido com outros Messores menores. Mas sua atenção estava no palco, no momento em que as luzes começaram a diminuir e um silêncio expectante caiu sobre o teatro.
As cortinas se abriram.
E a tragédia começou.
O cenário era o campo de batalha das Fronteiras Geladas, tão realista que um calafrio percorreu a plateia. Neve falsa caía sobre os corpos espalhados pelo palco. Dentre eles, uma figura se ergueu. O ator que interpretava Hécate era uma encarnação da perfeição guerreira — alto, ombros largos, movendo-se com a graça letal de um predador alfa.
“Mais uma vitória,” sua voz barítona ecoou, carregada de um cansaço existencial. “Mais sangue para a sede insaciável do Império. Mas que vitória é esta, quando cada inimigo que derrubo tem o rosto de um homem que poderia ter sido?”
Então, ela entrou. A atriz que vivia Cecilia era etérea, de cabelos como a noite e olhos de um verde que parecia conter a primeira primavera. Sua armadura, diferente das dos vampiros, era gravada com símbolos de vida e renovação. O duelo deles não foi apenas de espadas, mas de ideologias.
“Por que luta?” ela perguntou, a voz clara como um sino em meio ao choque do aço. “Porque lhe foi ordenado? Ou porque a guerra é a única canção que sua alma ainda sabe cantar?”
“Luto porque é tudo que sou,” respondeu Hécate. “Sem a guerra, o que resta de mim?”
“Um homem,” ela disse, com uma simplicidade que desarmava. “Apenas um homem que se esqueceu de como ser humano.”
A cena mudou para um jardim secreto, banhado por uma lua impossível. Hécate e Cecilia, despidos de suas armaduras, descobriam um ao outro. A peça avançou, mostrando o casamento clandestino, a gravidez, a promessa de um futuro que uniria dois mundos.
Foi então que a cena que Smael temia chegou, o momento que Cassius havia chamado de "cirurgia".
No palco, Hécate ajoelhava-se diante de um ator jovem, representando um Smael adolescente.
“Meu filho,” disse o Hécate do palco, a voz embargada. “A mulher que você amou como mãe... Cecilia... era humana. E o irmão que ela carrega no ventre... ele será como ela e como eu. Algo novo.”
O jovem ator recuou, o rosto contorcido em uma máscara de horror e repulsa.
“Não!” ele gritou, a voz quebrando em fúria juvenil. “Você mente! Meu pai não se deitaria com... com essa coisa! Meu sangue não pode ser manchado por essa imundície!”
“Smael, é o amor que—”
“Amor?” o jovem Smael cuspiu. “Isso é traição! O sangue dela é sujo! E essa... essa aberração que ela carrega não é meu irmão! Eu não reconheço mais você como meu pai! Prefiro a pureza do Império à sua verdade nojenta!”
O Smael real agarrou os braços da cadeira, os nós dos dedos brancos. Isso nunca acontecera. A peça estava mentindo, reescrevendo história para…
Para protegê-lo.
A compreensão o atingiu como soco no estômago. Cassius estava sacrificando a memória de Hécate para salvar a reputação de Smael. Fazendo o filho parecer leal ao Império, mesmo que significasse pintar o pai como mentiroso.
A peça correu para seu clímax — Cecilia morrendo de doença, Hécate escondendo a verdade, Icarus crescendo sem saber sua herança.
“Que pai sou eu”, o Hécate do palco lamentava sobre o “túmulo” de Cecilia, “que esconde a verdade dos próprios filhos? Mas como contar a Icarus que seu sangue é amaldiçoado? Como dizer a Smael que sua lealdade se baseia em mentira?”
O ato final mostrava o julgamento — não como foi, mas como a narrativa exigia. Icarus descobrindo a verdade, fugindo. Smael permanecendo leal, denunciando o irmão. Hécate partido entre dois filhos, dois mundos, duas verdades irreconciliáveis.
A última cena era Hécate sozinho, no mesmo campo de batalha do início.
“Construí um império de segredos”, ele dizia para a plateia. “E agora, como todos os impérios, ele desmorona. Não por espadas ou política, mas por uma verdade simples — amei quando não devia. E desse amor, nasceu tanto beleza quanto destruição.”
As cortinas se fecharam.
O silêncio durou exatamente três batimentos cardíacos.
Então o inferno se libertou.
Metade do teatro explodiu em aplausos — estes viam a peça como tragédia sobre amor impossível, sobre sacrifício paternal, sobre o preço de viver entre dois mundos.
A outra metade vaiava, gritava, alguns até se levantavam para sair — estes viam traição, glorificação de crime contra o sangue, propaganda perigosa.
— MENTIRA! — alguém gritou dos assentos populares. — Hécate era herói! Não traidor!
— A verdade doi! — outro respondeu. — Melhor saber que viver em fantasia!
— Abaixo os Karlai! — um terceiro berrou. — Sangue impuro! Família amaldiçoada!
— Abaixo é você! — E o primeiro soco foi desferido.
Smael ia se levantar, ia descer até o palco, ia gritar a verdade para todos ouvirem, quando uma mão pousou em seu ombro. Plastissax materializara-se em seu camarote, silencioso como sempre.
— Não — disse simplesmente.
— Mas eles estão—
— Olhe — Plastissax apontou para baixo.
O teatro tornara-se campo de batalha. Nobres que minutos antes conversavam educadamente agora se engalfinhavam como animais. Um senador menor tinha outro pelo pescoço. Uma dama arrancava os brincos de outra. Guardas tentavam intervir mas eram sobrepujados pelo caos.
— Uma palavra sua agora — Plastissax continuou — confirmando ou negando, e isso se torna guerra civil. O Império se parte ao meio. É isso que quer?
— Mas a verdade—
— A verdade é luxo que príncipes não podem pagar — Plastissax disse suavemente. — Seu irmão entendeu isso. Por isso fugiu. Agora você precisa entender também.
No camarote imperial, Cassius observava o caos com rosto impassível. Mas seus olhos… seus olhos carregavam o peso de mil decisões impossíveis.
Morthem, em seu próprio camarote, observava boquiaberto.
— Meu dinheiro — murmurava. — Meu patrocínio… deveria ter garantido narrativa diferente. Deveria ter destruído os Karlai completamente, não criado… isto.
Jon Saltador escolhera seu próprio caminho, percebeu. O artista pegara o dinheiro mas contara a história que queria contar. E agora Noctus queimava com verdade parcial, mentira piedosa, arte que cortava mais fundo que qualquer espada.
Horas depois, quando o teatro finalmente foi esvaziado e as ruas limpas do sangue das brigas, uma figura solitária bateu na porta dos aposentos imperiais.
Cassius abriu pessoalmente, dispensara os guardas. Não se surpreendeu ao ver quem era.
Seraphine Makai estava irreconhecível. Sempre impecável, sempre controlada, agora era ruína ambulante. O vestido de gala estava manchado, o cabelo desgrenhado, e seus olhos…
Vermelhos. Não o vermelho vampírico, mas o vermelho humano de quem chorou até não restar lágrimas.
— Como pôde? — a voz saiu quebrada, rouca. — Como pôde fazer isso com ele?
Cassius não respondeu, apenas abriu mais a porta, convidando-a a entrar. Ela passou por ele como tempestade contida, girando para encará-lo quando a porta se fechou.
— Hécate era seu amigo! Seu irmão em tudo menos sangue! E você… você deixou que o transformassem em vilão de melodrama!
— Vilão? — Cassius serviu-se de vinho, oferecendo uma taça que ela ignorou. — Não viu a mesma peça que eu. Vi um homem dividido entre dever e amor. Vi um pai tentando proteger filhos. Vi—
— Viu o que quis ver! — Ela avançou, e por um momento pareceu que atacaria fisicamente o Imperador. — Mas eu vi meu… vi o homem que amei ser reduzido a entretenimento! Vi nossa história — NOSSA história — ser vendida por ingressos!
Cassius pousou a taça e fez algo que Seraphine não esperava. Gentilmente, como se lidasse com vidro quebrado, colocou as mãos em seus ombros.
— Cecilia morreu há dezessete anos — disse suavemente. — Hécate desapareceu há meses. Mas você, Seraphine… você nunca os deixou partir.
— Não ouse—
— Você a amava — ele continuou, inexorável mas gentil. — Amava os dois, cada um à sua maneira. E quando ela escolheu ele, parte de você morreu. E quando ela morreu de verdade, o resto de você a seguiu.
Seraphine tentou se afastar, mas as palavras a prendiam como correntes.
— Aquele tempo — Cassius disse — aqueles dias dourados quando éramos jovens, quando o mundo parecia cheio de possibilidades infinitas… não vai voltar, Sera. Por mais que tentemos, por mais que lutemos, por mais que sangremos… não vai voltar.
— Então por quê? — as palavras saíram como soluço. — Por que fazer isso? Por que transformar nossa dor em espetáculo?
— Porque — Cassius a soltou, voltando para a janela — a coroa exige. Porque entre perder um amigo morto e perder um império vivo, a escolha foi feita por mim no dia da coroação.
— Você mudou — ela disse, e não era elogio.
— Não — ele corrigiu. — Eu me tornei o que sempre fui destinado a ser. A única diferença é que agora não posso mais fingir o contrário.
Seraphine o encarou por longo momento, então deu as costas e saiu. Mas na porta, pausou.
— Hécate teria odiado isso — disse. — Mas teria entendido. É por isso que dói tanto.
A porta se fechou, deixando Cassius sozinho com suas escolhas e a lua como testemunha.
Do outro lado de Noctus, em sua mansão opulenta, o Senador Morthem Valtoir atirou um copo de cristal contra a lareira. A peça fora um desastre. Seu patrocínio deveria ter garantido a destruição total da reputação dos Karlai, pintando Hécate como um monstro lascivo e Smael como seu cúmplice. Em vez disso, Jon Saltador criara uma tragédia complexa que dividira o Império, gerando simpatia pelo próprio homem que ele queria destruir. O caos era incontrolável.
A batida na porta de seu escritório foi suave, quase inaudível.
— Entre — rosnou.
A porta se abriu e fechou. Passos silenciosos sobre o tapete persa.
— Se veio reclamar do resultado.. — começou Morthem, sem se virar.
Uma dor excruciante explodiu em seu joelho esquerdo. O som de osso se partindo ecoou no silêncio. Morthem desabou, gritando, o rosto contorcido de agonia.
Seu agressor o encarava de cima. A figura usava trajes finos, mas seu rosto estava oculto por uma máscara de coruja, polida e branca como osso, com grandes lentes negras no lugar dos olhos.
— Quem... o que...
O pé de cabra de metal desceu novamente, desta vez estilhaçando os ossos de seu antebraço direito. O grito de Morthem foi abafado por um soluço de dor.
O homem mascarado se ajoelhou ao seu lado, a cabeça inclinada com curiosidade aviária.
— Nosso plano era simples, senador — a voz, distorcida pela máscara, era fria e decepcionada. — Desacreditar. Destruir. Preparar o terreno. Você achou que podia controlar a narrativa sozinho? Achou que um dramaturgo teria mais lealdade a seu ouro do que à sua arte? Você falhou em prever a variável humana, Morthem.
— Guardas! — engasgou o senador.
— Foram... persuadidos a tirar uma noite de folga — disse o Homem-Coruja. — Seu fracasso esta noite nos custou meses. A opinião pública está dividida, não unificada contra nosso inimigo. Isso exige... disciplina.
Ele se levantou, limpando uma poeira inexistente do pé de cabra.
— Considere isso um lembrete de sua posição nesta... conspiração. Você é uma ferramenta, Morthem, não o arquiteto. Da próxima vez que sua iniciativa ameaçar nossos objetivos, não serão seus ossos que quebrarão. Será seu pescoço. Estamos entendidos?
Morthem, chorando de dor e humilhação, conseguiu assentir freneticamente.
— Excelente. Tenha uma boa noite, senador. Gelo e silêncio são seus melhores amigos agora.
O Homem-Coruja se retirou com a mesma quietude com que chegou, deixando Morthem quebrado no chão de sua própria opulência, em uma poça de arrogância despedaçada.
A quilômetros de distância, em mundo completamente diferente, outra performance chegava ao fim.
A taverna O Último Porto estava lotada além da capacidade. Piratas se espremiam contra mercenários, contrabandistas compartilhavam mesas com assassinos, e todos — todos — estavam em silêncio absoluto.
No pequeno palco improvisado, Icarus tocava.
Esta noite, a música era diferente. Não a melancolia de memórias perdidas ou a esperança desesperada de pertencer. Esta era música de aceitação — de alguém que finalmente entendera que lar não é lugar, mas momento. E este momento, nesta taverna impossível, com esta audiência improvável, era lar suficiente.
As notas dançavam como fagulhas sobre água, cada uma contando pequena história. Aqui, o riso de uma criança que aprendera que amanhã existia. Ali, o suspiro de um velho que lembrava que ontem também tivera beleza. Entre elas, tecidas como fios de ouro em tapeçaria, a verdade simples de que todos sangravam a mesma cor quando a música tocava fundo suficiente.
Icarus fechou os olhos e deixou a canção fluir. Não pensou em impérios ou linhagens, conspirações ou fugas. Pensou apenas na próxima nota, e na próxima, e em como cada uma tornava o silêncio que viria depois um pouco mais suportável.
No fundo da taverna, meio escondida entre sombras e fumaça, uma figura pequena observava com intensidade que destoava de sua aparência jovem. Cabelos castanhos cortados curtos, roupas simples de viajante, mas eram os olhos que traíam algo mais — verdes como os de Icarus, brilhando com reconhecimento impossível.
Quando a última nota morreu e os aplausos explodiram como represa rompida, ela sorriu. Um sorriso pequeno, secreto, conhecedor. Suas mãos foram para a bolsa gasta ao lado, dedos acariciando a forma familiar dentro.
Esperou a multidão começar a se dispersar, alguns indo pedir mais bebidas, outros simplesmente precisando de momento para processar o que haviam experienciado. Então, com movimentos fluidos de quem crescera se movendo sem ser notada, aproximou-se do palco.
Icarus a viu aproximar e algo… algo se mexeu dentro dele. Não reconhecimento — como poderia reconhecer alguém que nunca vira? — mas ressonância. Como duas cordas afinadas na mesma frequência, vibrando em harmonia sem se tocar.
Ela parou a dois passos de distância, estudando-o com aqueles olhos impossivelmente familiares. Então, sem palavra, abriu a bolsa.
O violino que revelou era arte transformada em instrumento. Madeira escura como chocolate amargo, verniz que capturava luz e a devolvia multiplicada, cordas que pareciam fios de lua. Mas eram os detalhes que prendiam o olhar — entalhes delicados na voluta formando padrões que lembravam os símbolos na armadura de Cecilia, cravelhas de marfim com minúsculas rosas gravadas.
Ela o ergueu, posicionou o arco, e esperou.
Não era desafio. Era convite.
Icarus entendeu sem palavras. Dedilhou acorde no violão — Dó maior, simples e puro. Ela respondeu com a mesma nota no violino, mas onde a dele era terra, a dela era ar. Onde a dele era âncora, a dela era voo.
E então, como se tivessem ensaiado a vida inteira, começaram a tocar juntos.
A taverna, já silenciosa, pareceu prender respiração coletiva. As duas melodias se entrelaçavam como amantes dançando, ora em uníssono, ora em harmonia, ora perseguindo uma à outra através de escalas e arpejos. Era conversa sem palavras, reconhecimento além de memória, sangue chamando sangue através de música.
Os piratas mais durões tinham lágrimas nos olhos. Assassinos endurecidos por décadas de morte descobriam que ainda podiam sentir beleza. E Cárbara, atrás do bar, apertava um pano com força suficiente para rasgar enquanto observava mistério se desdobrar em melodia.
A música construiu e construiu, violão e violino criando catedral de som em taverna que nunca conhecera santidade. E então, no momento de clímax perfeito, as duas vozes se uniram numa única nota — pura, impossível, transcendente.
O silêncio que se seguiu foi sagrado.
A garota baixou o violino, aquele sorriso secreto ainda brincando nos lábios. Fez pequena reverência — para Icarus, para a audiência, para a própria música — e então, sem uma palavra sequer, guardou o instrumento e desapareceu na noite de Nepau.
Icarus ficou no palco, dedos ainda formigando, coração batendo ritmo que não era totalmente seu. Ao redor, a taverna lentamente voltava à vida, conversas começando em sussurros reverentes.
Mas ele mal notava. Porque naquele momento, parado em palco manchado de cerveja em taverna cheia de criminosos, Icarus Karlai entendeu algo fundamental:
Não importava que império o renegasse. Não importava que sangue o definisse. Não importava que conspirações giravam ao redor de seu nome.
Ele tinha música. E hoje, por breve momento impossível, não estivera sozinho nela.
Do lado de fora, Nepau continuava sua dança perpétua de violência e comércio. Mas dentro do O Último Porto, algo havia mudado. Uma nota diferente fora adicionada à sinfonia de desespero da cidade.
E em algum lugar nas vielas escuras, uma garota com violino e segredos caminhava em direção a destino que só ela conhecia, deixando atrás apenas memória de música e promessa não falada de que histórias iniciadas em palcos podiam ter finais além de tragédia.
E às vezes, em mundo de escuridão perpétua, isso era revolução suficiente.
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