Volume 1

Capítulo 29: A Primeira Canção

O interior do Último Porto cheirava a desespero fermentado — uma mistura de suor, rum barato e sonhos apodrecidos que se entranhava nas paredes de madeira como mofo. Icarus segurou a respiração instintivamente, mas foi pior: sem o ar para diluir, os aromas se concentraram, e com eles veio algo mais primitivo. O cheiro de sangue. Não o sangue derramado nas brigas de taverna, mas o que corria quente nas veias de cada pessoa ali presente.

Cárbara os guiou através do salão principal, onde mesas desniveladas abrigavam a escória de três oceanos. Um homem com metade do rosto derretido jogava dados com uma mulher cujos braços terminavam em lâminas enxertadas. Crianças — não, Icarus se corrigiu, crianças antigas, com olhos que haviam visto demais — serviam bebidas com movimentos autômatos.

— Por aqui — Cárbara abriu uma porta lateral que levava a uma escada estreita. — Os quartos são em cima. Nada luxuoso, mas tem camas e fechaduras que funcionam. Às vezes.

Gabi e Liam carregaram Lucan pelos degraus que rangiam sob o peso. O capitão murmurava delírios febris e palavras desconexas. A cada degrau, gotas de sangue pingavam através das bandagens, e Icarus sentia cada uma como um sino tocando em seus ossos.

O quarto era exatamente o que se esperaria: duas camas estreitas, uma mesa bamboleante, uma janela que dava para um beco onde coisas se moviam nas sombras. Mas era limpo, e isso já era mais do que esperavam.

— Deitem ele aqui — Cárbara indicou a cama mais próxima da janela. — Vou chamar o Dr. Maggoth. É o único médico verdadeiro em Nepau.

— Dr. Maggoth? — Liam franziu o cenho enquanto ajudava a acomodar Lucan.

— Túlio Maggoth. Ex-cirurgião. Perdeu a licença depois de… bem, digamos que ele tem métodos não convencionais. Mas é o melhor que temos. — Cárbara pausou na porta. — Não se assustem com a aparência. Ou com o cheiro. Ou com os instrumentos. Na verdade, tentem não se assustar com nada.

Ela se foi, deixando-os no quarto que parecia ainda menor com quatro pessoas. Gabi imediatamente começou a remover as bandagens de Lucan, revelando ferimentos que haviam piorado durante a viagem. A carne ao redor dos cortes estava escura, com veios negros se espalhando como raízes venenosas.

— Isso não é infecção normal — Gabi murmurou, recuando instintivamente.

O cheiro atingiu Icarus como um murro. Sangue velho, sangue novo, sangue morrendo, mas também algo mais — um odor metálico e errado que fez seus instintos gritarem perigo. Sua visão tingiu-se de vermelho nas bordas, e ele sentiu as presas — que nunca havia realmente notado antes — começarem a latejar em suas gengivas.

— Icarus? — a voz de Gabi pareceu vir de muito longe. — Você está bem?

Ele piscou, forçando-se a focar. Gabi o observava com preocupação, mas também com algo mais. Cautela. Ela havia notado como seus olhos mudaram, como seu corpo inteiro se tensionou na presença de tanto sangue exposto.

— Eu… preciso de ar — conseguiu dizer, a voz rouca.

— Não pode sair sozinho — Liam interveio, sem desviar os olhos de Lucan. — Não aqui. Não parecendo… — ele não completou, mas o significado era claro. Não parecendo com fome.

A porta se abriu antes que Icarus pudesse responder. O homem que entrou era uma contradição ambulante: mãos delicadas de artista em um corpo arruinado por anos de… algo pior que bebida. Dr. Túlio Maggoth tinha o tipo de tremor permanente que vinha de ter visto demais, feito demais, cruzado linhas demais. Mas quando se aproximou de Lucan, algo mudou. As mãos se firmaram, os olhos se focaram, e por um momento ele foi o cirurgião brilhante que um dia salvara vidas impossíveis.

— Ferimento por lâmina vampírica — diagnosticou após um exame rápido, seus dedos traçando os veios negros sem tocá-los. — Forjada em solo de Noctus, pelo padrão de corrupção. Alguém usou uma arma feita para matar da forma mais dolorosa possível.

— Freijor — Icarus disse subitamente, reconhecendo os sinais. — É minério de Freijor. Negro como obsidiana, encontrado apenas nas minas mais profundas de Noctus. Lâminas forjadas com ele são… — ele pausou, lembrando das aulas na Academia — são feitas para “sujar o sangue”, como dizem. Contra humanos, é quase sempre fatal. O metal envenena de dentro para fora.

Dr. Maggoth o estudou com novo interesse.

— Educado. Sim, Freijor. Coisa nojenta. O minério absorve a essência vampírica durante a forja, tornando-se anatema para sangue humano. — Ele abriu sua maleta, revelando instrumentos que pareciam mais ferramentas de tortura que medicina. — Vai precisar de transfusão. Muito sangue novo para diluir o veneno. E mesmo assim…

— Mesmo assim? — Gabi pressionou.

— Cinquenta por cento de chance. Talvez menos. — Dr. Maggoth não suavizou as palavras. — Preciso de doador compatível. Humano puro, de preferência. Sangue vampírico só aceleraria a corrupção do Freijor.

Icarus sentiu o mundo inclinar. A palavra ‘sangue’ ecoava em sua mente como tambor de guerra. Humano. Fresco. Fluindo de veia para veia. Suas mãos tremeram, e ele as fechou em punhos tão apertados que as unhas — quando ficaram afiadas assim? — cortaram as palmas.

— Eu posso doar — Gabi se ofereceu.

— Não — Liam a cortou. — Você tem costelas quebradas. Perder sangue agora seria perigoso.

— Então você—

— Braço quebrado. O corpo precisa de todo sangue possível para curar. — Liam olhou significativamente para Icarus. — Resta nosso amigo navegador.

Dr. Maggoth seguiu o olhar, estudando Icarus com olhos clínicos que haviam visto coisas demais para se surpreender facilmente. Mas algo no que viu o fez inclinar a cabeça.

— Híbrido — não era pergunta. — Interessante. Muito interessante. Sangue híbrido contra veneno de Freijor… nunca tentado. Poderia neutralizar, já que carrega essência vampírica mas também vitalidade humana. Ou poderia reagir… explosivamente.

— Então é arriscado demais — Gabi concluiu.

— Tudo em medicina é risco calculado — Dr. Maggoth rebateu. — Mas tem outro problema. — Ele se voltou para Icarus. — Você já se alimentou? Como vampiro, quero dizer?

O silêncio que se seguiu foi denso o suficiente para cortar. Icarus sentiu os olhos de todos sobre ele, esperando, julgando.

— Faz tempo — conseguiu dizer. — Bastante tempo.

— Se faz tempo... — Dr. Maggoth murmurou, quase reverente. — Isso muda as probabilidades. Sangue não corrompido pela alimentação… poderia ser exatamente o antídoto para Freijor. Mas também significa que você está faminto. Quanto tempo consegue segurar antes de…

— Não sei — Icarus admitiu, e a honestidade doeu mais que mentira. — Está… piorando.

— Então precisamos agir rápido — Dr. Maggoth já preparava seus instrumentos. — Antes que a fome o faça perder o controle.

Icarus obedeceu, observando sua própria pele pálida sob a luz fraca. Túlio passou álcool no local — o cheiro afiado cortou momentaneamente os outros aromas — e então veio a agulha.

A dor foi mínima, mas a sensação… Icarus sentiu seu sangue deixando o corpo, fluindo através do tubo transparente. Escuro demais para ser totalmente humano, claro demais para ser vampiro puro. Algo entre, como tudo nele.
— Interessante coloração — Túlio murmurou enquanto conectava o outro extremo do tubo a Lucan. — Nunca vi exatamente esse tom. Como vinho tinto misturado com prata líquida.

O sangue começou a fluir para Lucan, e algo mudou no ar do quarto. Uma tensão elétrica, como antes de tempestade. Icarus sentiu uma conexão se formar — não física, mas algo mais profundo. Podia sentir o coração de Lucan lutando, podia sentir o veneno recuando diante de algo que não entendia.

Mas também sentiu outra coisa. À medida que seu sangue saía, a sede crescia. Não gradualmente, mas em ondas que ameaçavam afogá-lo. Cada batimento cardíaco era um grito de fome. Os outros no quarto deixaram de ser pessoas e se tornaram fontes de alimentação — Gabi com seu sangue feminino que prometia ser doce, Liam com sua essência guerreira que seria forte e amarga, Túlio com décadas de álcool que dariam um sabor único…

— Icarus — a voz de Gabi cortou através da névoa vermelha. — Seus olhos…

Ele piscou, forçando-se a focar. No vidro da janela, viu seu reflexo — os olhos haviam mudado, as íris verdes agora brilhavam com luz própria, as pupilas dilatadas como as de predador.

— Quanto… quanto mais? — conseguiu perguntar, a voz mais rouca, mais grave.— Só mais um pouco — Túlio respondeu, mas Icarus viu a mentira. Lucan precisaria de muito mais.

— Espere — Cárbara apareceu na porta, carregando algo enrolado em pano. — Antes que nosso jovem amigo decida que somos aperitivos, talvez isso ajude.

Ela desembrulhou o objeto — um violão. Velho, com marcas de uso, mas bem cuidado. As cordas brilhavam como fios de prata sob a luz..

— Disse que sabia tocar — ela estendeu o instrumento. — Prove. Música acalma feras. Vamos ver se acalma a sua.

Icarus pegou o violão com mãos trêmulas. O peso familiar do instrumento era como encontrar um amigo perdido. Seus dedos encontraram as cordas, e por um momento, apenas as segurou, sentindo a tensão do metal contra a pele.

E então começou.

A primeira nota nasceu não dos dedos, mas de algum lugar profundo dentro dele. Era uma nota simples, uma única corda vibrando, mas continha mundos. Era o som de uma criança chorando pela primeira vez, era o último suspiro de um homem velho, era o vento atravessando campos de trigo que nunca existiram sob o sol de Noctus.

A segunda nota veio como resposta à primeira, não mais alta ou mais baixa, mas diferente — se a primeira era pergunta, esta era a consideração da pergosta. Seus dedos se moveram sem pensar, encontrando harmonias que não sabia que conhecia.

A melodia começou a tomar forma como névoa se condensando em chuva. Era antiga — não velha, mas antiga da forma que as montanhas são antigas, que o mar é antigo. Era a canção que as mães cantavam antes de haver palavras para canções, quando o mundo era jovem e a música era a única linguagem.

Icarus fechou os olhos e deixou a música fluir através dele. Cada nota era uma gota de água criando ondulações num lago perfeitamente calmo. As ondulações se encontravam, se sobrepunham, criavam padrões de interferência que se tornavam novos sons, novas harmonias.

Seus dedos dançavam sobre as cordas como amantes reunidos após longa separação — ternos mas urgentes, precisos mas cheios de emoção contida. A melodia subia e descia como a respiração de alguém dormindo, natural e inevitável.

E então algo mudou. A música deixou de ser algo que ele tocava e se tornou algo que acontecia. As notas fluíam dele como sangue de ferida, mas em vez de enfraquecer, cada nota o fortalecia. A sede ainda estava lá, ainda queimava, mas agora fazia parte da música — o baixo profundo que dava peso à melodia, a tensão que tornava a resolução mais doce.

Sem perceber, começou a tecer variações. A melodia simples se ramificou como árvore crescendo em tempo acelerado. Aqui uma flourish que lembrava risos de criança, ali um trinado que soava como lágrimas caindo em água parada. As notas se entrelaçavam, se separavam, dançavam juntas e sozinhas.

A música contava uma história sem palavras — a história de um menino que descobriu não ser quem pensava, que fugiu de casa carregando sangue nas mãos e dúvida no coração. Contava sobre amizades improváveis forjadas em desespero, sobre lealdade que transcendia espécie ou império. Contava sobre fome — não apenas de sangue, mas de pertencimento, de propósito, de lar.

Os harmônicos soavam como sinos distantes, cada um uma memória: o rosto severo de um pai distante, o sorriso raro de um irmão protetor, o peso de um pingente de prata contra o peito. As cordas graves murmuravam segredos: o gosto de medo na garganta, o cheiro de sangue em mãos trêmulas, o som de um império se despedaçando em silêncio.

A música construía e construía, camada sobre camada, até que o pequeno quarto não podia mais contê-la. Ela vazou pelas frestas da porta, desceu pelas escadas como água procurando seu nível, encheu a taverna com algo que Nepau havia esquecido que existia — beleza sem preço, arte sem agenda, humanidade sem condições.

E então, quando parecia que a música explodiria de sua própria intensidade, Icarus a trouxe de volta. As camadas se desfizeram uma a uma, as harmonias se simplificaram, as variações retornaram ao tema original. Mas não era a mesma melodia simples do início — era a simplicidade que vem após a complexidade, a paz que vem após a tempestade, o silêncio que vem após a confissão.

As últimas notas penduraram no ar como estrelas prestes a cair. Icarus deixou-as vibrar até que morressem naturalmente, até que o silêncio as abraçasse como mãe abraça filho cansado.

Quando abriu os olhos, lágrimas escorriam pelo rosto de Gabi. Liam tinha a expressão de quem viu algo sagrado e não sabia como processar. Dr. Maggoth havia parado no meio de um procedimento, seringa suspensa no ar, completamente imóvel.

E na porta, uma multidão silenciosa. Rostos marcados por vidas impossíveis mostravam algo que Nepau havia proibido — vulnerabilidade crua, humanidade nua, esperança não filtrada pelo cinismo.

— Isso foi… — Cárbara começou, então parou. Não havia palavras adequadas.

Icarus olhou para suas mãos, surpreso ao ver que não tremiam mais. A sede ainda estava lá, mas agora ele a conhecia, a havia nomeado, a havia transformado em música. E algo que pode ser transformado em arte pode ser controlado.

— Seu sangue — Dr. Maggoth disse subitamente, checando Lucan. — Está funcionando. O Freijor está recuando. É como se… como se a música tivesse mudado a natureza do próprio sangue.

Era impossível, claro. Música não podia alterar biologia. Mas em Nepau, onde o impossível era commodity diária, ninguém questionou.

— Você toca amanhã — Cárbara disse, e não era pergunta. — E todas as noites que quiser ficar. Quartos grátis, comida grátis, proteção da casa.

— Só por música? — Icarus perguntou.

— Não — Cárbara respondeu, olhando para a multidão que lentamente se dispersava, cada pessoa carregando um fragmento da melodia em seus corações. — Pelo que sua música faz.​​​​​​​​​​​​​​

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