Volume 1
Capítulo 28: Porto dos Esquecidos
O cheiro atingiu-os primeiro, uma mistura nauseante de peixe podre, suor humano, ópio queimado e algo mais sutil que Icarus não conseguia identificar até perceber com horror: desespero cristalizado. Nepau erguia-se diante deles como uma ferida infectada na costa, suas construções empilhadas umas sobre as outras sem planejamento ou piedade, desafiando tanto a gravidade quanto o bom senso.
Não havia um porto propriamente dito, apenas uma baía natural protegida por formações rochosas que criavam um labirinto aquático. Dezenas de navios balançavam ancorados em águas que mudavam de cor conforme a luz — ora verde-esmeralda, ora marrom-sangue, dependendo do que havia sido despejado nelas recentemente. Bandeiras tremulavam em mastros sem seguir código ou nação: crânios sorridentes, serpentes enroscadas, símbolos que prometiam salvação ou danação com igual entusiasmo.
— Mantenham as cabeças baixas — Gabi murmurou, ajustando um capuz sobre os cabelos. — E não olhem diretamente para ninguém. Em Nepau, curiosidade é convite para problema.
O Sereia Velada deslizou entre os navios maiores como um rato entre leões adormecidos. Icarus observou embarcações que pareciam ter sido construídas por lunáticos visionários: um galeão com proa esculpida em forma de mulher nua, os seios funcionando como canhões; uma escuna cujo casco fora forjado inteiramente em ferro negro, mais bunker flutuante que navio; uma barca estranha coberta por uma estrutura de vidro que permitia ver seu carregamento — crianças amontoadas como gado, olhos vazios fixos no nada.
Icarus fitou aquelas crianças e algo estranho aconteceu. Onde deveria sentir compaixão, sentiu... outra coisa. Uma sede que nada tinha a ver com água. Sua visão se tingiu de vermelho nas bordas por um instante, e ele pôde quase ouvir o pulso daqueles pequenos corações batendo através do vidro. Balançou a cabeça bruscamente, afastando o pensamento perturbador.
— Não olhe — Liam disse bruscamente, notando a direção do olhar de Icarus, mas interpretando mal a razão de sua tensão.
A cidade propriamente dita era um insulto à arquitetura. Construções de madeira apodrecida se misturavam com tendas de lona rasgada e estruturas de pedra que pareciam ter sido erguidas por diferentes civilizações em épocas distintas, cada uma tentando corrigir os erros da anterior e apenas acrescentando novas aberrações. Não havia ruas, apenas espaços onde as construções ocasionalmente permitiam passagem. Pontes improvisadas conectavam edifícios em diferentes alturas, criando um segundo nível de caos suspenso sobre o primeiro.
E por toda parte, pessoas. Ou o que restava delas.
Piratas com cicatrizes rituais cobrindo rostos que haviam esquecido como sorrir. Mercadores cujos olhos calculavam o valor de tudo — e todos — num piscar de olhos. Mulheres em gaiolas decorativas suspensas em postes, exibidas como mercadoria e acenando com alegria forçada que não alcançava seus olhos mortos. Crianças mendigas que pareciam velhas demais para seus corpos pequenos. E entre todos eles, os Esquecidos — aqueles que haviam perdido nome, passado, futuro, e agora existiam apenas como sombras prestando serviços que ninguém queria nomear.
— Como eles permitem isso? — Icarus perguntou, a voz rouca, mas não tanto de náusea quanto de uma fome crescente que o perturbava.
— Permitem? — Gabi riu amargamente, ajudando Liam a carregar Lucan pelos ombros. O capitão estava consciente mas mal conseguia manter-se de pé, o sangue de múltiplos ferimentos de espada manchando as bandagens improvisadas. — Garoto, ELES são isso. Nepau não tem governo. Tem território. Quem consegue segurar um pedaço de terra por mais tempo vira "autoridade local". Quem consegue manter cinco navios unidos vira "almirante". Não há leis porque não há quem as faça valer.
— Então é anarquia.
— Não — Liam corrigiu, ajustando melhor o peso de Lucan. — Anarquia tem princípios. Isto aqui é... evolução. Só que ao contrário.
Um apito agudo cortou o ar, seguido por outro, depois outro. Sons de código que Icarus não entendia, mas que pareciam anunciar a chegada deles. Rostos apareceram em vigias, binóculos brilharam em torres improvisadas, e algo que poderia ser civilização — se alguém fosse muito generoso com o termo — começou a tomar forma ao redor deles.
— Navio aproximando-se do Cais da Fome — uma voz amplificada ecoou de um megafone enferrujado. — Declarem carga, destino e capacidade de pagamento. Silêncio será interpretado como hostilidade.
Gabi respirou fundo e gritou de volta:
— Sereia Velada! Carga: feridos! Destino: médico! Pagamento: ouro!
Uma pausa. Então, risadas. Muitas risadas, vindas de múltiplas direções.
— Ouro! — a voz retornou, agora divertida. — Que adorável! Alguém ainda pensa que ouro compra coisas aqui! Aproximem-se do Cais Três. Preparem-se para... negociações.
O Cais Três revelou-se uma plataforma flutuante feita de embarcações menores amarradas juntas e cobertas por pranchas que gemiam perigosamente a cada movimento das ondas. Uma multidão já os esperava — e Icarus percebeu imediatamente que não eram espectadores casuais. Eram avaliadores.
O homem que se destacou do grupo era uma obra de arte em modificação corporal. Metade de seu rosto havia sido substituída por uma máscara de bronze ornamentada, soldada diretamente ao osso. Um dos braços terminava não em mão, mas em uma garra mecânica que se abria e fechava com cliques metálicos. Cicatrizes decorativas cobriam os braços nus em padrões que lembravam mapas de constelações. E quando sorriu, revelou dentes de ouro arranjados em padrões que formavam runas.
— Bem-vindos ao Porto dos Esquecidos — disse ele, a voz soando estranha através dos mecanismos na máscara. — Sou Kapitän Rostro, autoridade portuária desta semana. Presumo que sejam novos aqui, considerando que ainda acreditam em ouro.
Gabi e Liam desceram primeiro, carregando Lucan entre eles. O capitão conseguia se manter parcialmente de pé, mas cada movimento deixava rastros vermelhos no convés.
— Temos um homem ferido. Precisamos de um médico.
— Ah, mas é claro que precisam! — Rostro riu, e os dentes de ouro tilintaram como sinos pequenos. — Todos precisam de algo quando chegam aqui. A questão é: o que têm para oferecer em troca?
Seus olhos — pelo menos o que sobrava deles — passaram sobre cada membro do grupo, parando significativamente mais tempo em Icarus. O híbrido sentiu um arrepio quando aquele olhar o avaliou, mas também sentiu algo mais primitivo — um impulso de mostrar as presas, de rosnar, de estabelecer que não era presa fácil.
— Interessante — Rostro murmurou. — Pele muito pálida. Olhos muito verdes. E... — ele inalou profundamente — um cheiro muito específico. Que delícia rara vocês trouxeram para nosso pequeno mercado.
Icarus deu um passo instintivo para trás, mas Liam, mesmo sobrecarregado com Lucan, conseguiu murmurar:
— Ele é nosso navegador. Especialista em correntes e ventos. Muito valioso para nós.
— Oh, tenho certeza de que é — Rostro concordou, a garra mecânica abrindo e fechando mais rapidamente. — Mas vamos ver... navegador pálido, com olhos de gato e postura de nobreza. Fugindo de algum lugar importante, presumo. Talvez até mesmo... procurado?
A multidão ao redor deles cresceu, formando um círculo que parecia casual mas bloqueava efetivamente todas as rotas de escape. Icarus notou que vários dos observadores portavam armas que variavam do prático ao bizarro: espadas cujas lâminas pareciam ter sido forjadas de ossos enormes, bestas que atiravam arpões em vez de virotes, chicotes com pontas de ferro que se moviam como serpentes.
— Bem — Rostro continuou — vamos ao que interessa. Médico custa caro aqui. Dr. Maggoth é o único com conhecimento suficiente para salvar alguém verdadeiramente ferido. Mas ele não aceita ouro. Aceita... favores. Serviços. Possibilidades.
— Que tipo de possibilidades? — Gabi perguntou, embora sua expressão sugerisse que já suspeitava da resposta.
— O tipo que envolve pessoas específicas ficando aqui por tempo específico — Rostro respondeu. — Trabalhando. Ganhando o tratamento médico através de... contribuição para a comunidade.
— Trabalhando fazendo o quê? — Liam rosnou, quase deixando Lucan escorregar.
— Ora, isso depende das habilidades individuais! — Rostro gesticulou grandiosamente com a garra mecânica. — Jovens fortes podem trabalhar nos estaleiros. Jovens ágeis podem trabalhar nas casas de entretenimento. Jovens bonitos podem trabalhar nas casas especiais, onde aparência é mais importante que experiência.
Icarus sentiu o estômago virar ao entender as implicações, mas também sentiu aquela sede crescente. Tantas pessoas ao redor, tantos corações batendo, tanto sangue correndo em veias expostas...
— E jovens raros — Rostro acrescentou, olhando diretamente para ele — podem trabalhar para colecionadores particulares que pagam preços excepcionais por... exotismo.
— Não — Gabi disse firmemente. — Encontramos outra forma de pagar.
— Que outra forma? — Rostro pareceu genuinamente curioso. — Não têm bens valiosos. Não têm informações que valham alguma coisa. Não têm nada além de vocês mesmos. E em Nepau, querida criança, pessoas SÃO bens valiosos.
Foi então que Lucan, apoiado entre Gabi e Liam, murmurou algo através dos lábios ensanguentados:
— Lyria... procurem Lyria...
Rostro piscou com o olho humano que lhe restava.
— Desculpem, mas ouvi menção de um nome específico? "Lyria", talvez?
Gabi congelou. Liam quase deixou Lucan cair. Icarus olhou entre os dois, percebendo que algo muito importante estava acontecendo.
— Conhecem alguém chamada Lyria? — Rostro continuou, agora com interesse genuíno substituindo a diversão predatória. — Porque, se conhecem, isso mudaria drasticamente nossa... negociação.
— Por quê? — Gabi perguntou cautelosamente.
— Porque — uma nova voz interveio, feminina e carregada de autoridade — Lyria da Ordem da Prata é uma das poucas pessoas neste buraco podre que todos respeitam. E se ela tem conexão com vocês, então vocês têm proteção.
A multidão se abriu, revelando uma mulher que parecia ter sido esculpida em mármore e depois pintada com sangue. Alta, músculos definidos visíveis sob roupas de couro prático, cabelos ruivos cortados curtos e olhos que haviam visto morte suficiente para não temer mais nada. Uma cicatriz em forma de crescente decorava sua bochecha esquerda, e nas mãos carregava duas espadas curvas que pareciam extensões de seus próprios braços.
— Sou Cárbara — disse ela simplesmente. — E se vocês são amigos de Lyria, então são protegidos por minhas lâminas.
Rostro recuou vissivelmente, a garra mecânica fechando-se em punho.
— Cárbara. Que... surpresa. Não sabia que estava interessada em refugiados aleatórios.
— Não estou — ela respondeu sem tirar os olhos do grupo. — Mas estou interessada em pessoas que mencionam nomes que me interessam. Lyria desapareceu há algumas semanas. Se estes têm informações sobre ela, então me interessam.
Rostro olhou entre Cárbara e o grupo, claramente recalculando os custos de prosseguir com seus planos originais. A multidão começou a se dispersar — aparentemente, quando Cárbara declarava proteção, pessoas sensatas encontravam outros lugares para estar.
— Bem — Rostro disse finalmente — isso é... inesperado. Presumo que nossa negociação está suspensa até que... questões de proteção sejam esclarecidas.
— Presumiu certo — Cárbara concordou. — Agora saiam daqui antes que eu me lembre por que não gosto de gente que vende crianças.
Rostro se afastou, mas não antes de olhar mais uma vez para Icarus com algo que poderia ter sido promessa ou ameaça.
Quando ficaram relativamente sozinhos no cais, Cárbara se virou para eles. Seus olhos passaram sobre cada membro do grupo, mas se detiveram em Icarus com um reconhecimento que fez o híbrido se retesar. Ela sabia. De alguma forma, ela sabia o que ele era.
— Então. Digam-me sobre Lyria. E não mintam — eu conheço o gosto de mentiras.
Gabi trocou um olhar com Liam antes de responder.
— Ela é irmã de nosso capitão. Estava investigando algo em Noctus quando desapareceu. Lucan veio procurá-la e acabou nos ajudando a escapar.
Cárbara estudou o rosto pálido e ensanguentado de Lucan.
— Sim. Posso ver a semelhança. Os olhos têm a mesma teimosia. — Ela suspirou. — Lyria esteve aqui há algum tempo. Procurando informações sobre movimentações estranhas nas rotas comerciais entre Noctus e Abhadia. Falou sobre vampiros aristocratas fazendo negócios com mercadores humanos. Disse que era impossível, mas as evidências estavam lá.
— O que ela descobriu? — Liam perguntou, ainda sustentando Lucan.
— Que havia vampiros de famílias antigas financiando operações de tráfico em águas neutras. Usando dinheiro imperial para comprar influência em territórios livres. Construindo uma rede que permitiria... chamemos de "comércio especializado" entre impérios — Cárbara fez uma careta. — E então ela desapareceu. Da noite pro dia.
Icarus sentiu uma peça do quebra-cabeça se encaixar em sua mente. Os senadores conspiradores. Os investimentos que Berion mencionara. As "rotas comerciais" de Morthem.
— Vocês acham que ela foi capturada? — Gabi perguntou.
— Não sei — Cárbara admitiu. — Mas sei que quem a levou conhecia Nepau bem o suficiente para fazê-la desaparecer sem deixar rastros. E isso significa que alguém com muito poder e muito dinheiro queria que ela calasse a boca.
Ela olhou para Lucan novamente, notando como o sangue continuava a escorrer através das bandagens.
— Ele precisa de cuidados. E vocês precisam de lugar seguro para ficar enquanto ele se recupera. Tenho uma taverna não muito longe daqui. Posso arranjar ambos, mas vai custar.
— Quanto? — Icarus perguntou, sentindo os olhos de Cárbara sobre ele novamente.
Cárbara inclinou a cabeça, estudando-o com interesse renovado. Ela sabia. Definitivamente sabia. Mas tudo que disse foi:
— Trabalho. Vocês ficam, comem, dormem de graça, mas limpam pratos e servem os clientes. — Ela fez uma pausa. — A criança sabe fazer alguma coisa numa taverna?
Icarus se endireitou, afastando a fome que crescia e tentando soar mais confiante do que se sentia.
— Se você tiver um violão, posso tocar. — Ele a encarou diretamente. — E faço uma proposta: se você gostar da minha música, Liam e Gabi se hospedam de graça também.
Cárbara ergueu as sobrancelhas, claramente surpreendida pela ousadia. Por um momento longo, ela o avaliou — não como Rostro havia feito, como mercadoria, mas como alguém medindo o caráter de uma pessoa.
— Confiante — ela murmurou. — Gosto disso. Muito bem, menino. Você tem uma chance. Mas se for ruim, todos vocês pagam trabalhando dobrado.
— E se for bom?
Cárbara sorriu, e foi a primeira expressão genuinamente calorosa que Icarus vira desde chegarem a Nepau.
— Então descobriremos se um vampiro jovem consegue tocar bem o suficiente para impressionar uma taverna cheia de piratas bêbados.
Gabi engasgou. Liam quase deixou Lucan cair novamente. Icarus congelou.
— Calma — Cárbara disse, gesticulando para que mantivessem a voz baixa. — Conheço vampiros quando vejo. E sei que você não é como os outros. Ainda tem coração, não apenas sede. — Ela começou a caminhar, indicando que os seguissem. — A pergunta é: consegue manter esse coração quando a sede ficar mais forte?
Icarus não respondeu, mas seguiu, ajudando a carregar parte do peso de Lucan. Em sua mente, ecoava a pergunta de Cárbara, e ele temia a resposta. Porque a cada criança que via nas ruas, a cada pulso que ouvia batendo nas veias dos transeuntes, a sede crescia.
E ele não sabia quanto tempo conseguiria resistir.
A taverna de Cárbara chamava-se "O Último Porto", e o nome era adequado. Era o tipo de lugar onde pessoas vinham quando não havia mais nenhum outro lugar para ir. Construída no que parecia ter sido um antigo depósito, era grande o suficiente para acomodar uma centena de pessoas, mas escura o suficiente para que ninguém visse claramente o rosto de ninguém a menos que quisesse.
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