Volume 1
Capítulo 27: Primeiro Sol
O som chegou como memória de outro mundo — notas de harpa tecidas no vento salgado, delicadas e impossíveis. Icarus abriu os olhos devagar, ainda preso entre sono e vigília, e então viu.
Luz.
Não a luminescência pálida das lanternas de Noctus ou o brilho frio da lua eterna, mas algo completamente diferente. Uma esfera de fogo pendia no céu azul — azul! — derramando calor dourado sobre as águas que cintilavam como milhões de diamantes líquidos. O sol, sua mente sussurrou, mesmo sem nunca ter visto um antes.
As harpas continuavam, a melodia entrelaçada com o marulhar das ondas, e por um momento Icarus se perguntou se ainda sonhava. Então, tão abruptamente quanto começaram, as notas cessaram. O silêncio que se seguiu foi quase físico, como se o próprio mundo tivesse prendido a respiração.
— Lucan... não, não, não...
A voz de Gabi, carregada de desespero, quebrou o encanto. Icarus se levantou, piscando contra a claridade que fazia seus olhos lacrimejarem. O convés do Sereia Velada estava banhado em luz dourada, revelando detalhes que a escuridão perpétua de Noctus sempre ocultara — a madeira gasta pelo sal, as cordas desbotadas pelo tempo, as manchas de sangue seco que nenhuma quantidade de água do mar conseguira remover completamente.
Lucan jazia contra a amurada, e a visão roubou o fôlego de Icarus. A pele do capitão havia perdido toda cor, tornando-se branca como pergaminho. Veias azuladas serpenteavam sob a superfície translúcida, e sua respiração era tão superficial que mal movia o peito. Os lábios, rachados e sem sangue, moviam-se em palavras silenciosas — orações, maldições ou delírios febris, impossível saber.
— Temos que parar em Nepau — Gabi estava dizendo, apontando para uma massa de terra no horizonte. — É a única chance dele.
— É uma sentença de morte! — Liam rebateu, o braço ainda na tipoia improvisada. — Você sabe o que aquele lugar é. Piratas, traficantes, escória de todos os mares. Entrar lá com ele assim... — gesticulou para Lucan — é pedir para sermos vendidos por partes.
— E se não pararmos, ele morre! — Gabi se virou, os olhos flamejando. — Olhe para ele, Liam! Mais duas horas e estaremos jogando um cadáver ao mar!
— Melhor um funeral no mar do que todos nós em correntes!
Icarus se aproximou, e quando a luz do sol tocou completamente sua pele exposta, sentiu uma sensação estranha. Não era a agonia que esperava, mas um formigamento desconfortável, como estar muito próximo de uma fogueira. Sua pele, pálida como mármore de Noctus, começou a corar onde os raios tocavam — não queimaduras severas, mas algo como uma irritação persistente que prometia piorar com exposição prolongada.
Olhou para Lucan novamente. Um humano. Alguém que, por todas as leis do Império, não deveria significar nada para ele. O lado vampírico de sua natureza sussurrava cálculos frios: já haviam escapado de Noctus, Lucan cumprira seu propósito, continuar arriscando tudo por um homem moribundo era ilógico.
E então, suave como a brisa marinha, uma voz tocou sua mente. Feminina, familiar embora nunca a tivesse ouvido antes, carregando o mesmo tom melódico das harpas que acabara de ouvir.
"Melhor fazer em dúvida do que se arrepender de não ter feito. Erros são o combustível do conhecimento."
Icarus girou, procurando a fonte da voz. O céu azul se estendia vazio em todas as direções, o sol implacável observando seu escrutínio. Não havia nada além de mar e céu e aquela luz impossível que transformava tudo.
— Vamos para Nepau — ele disse, sua voz cortando a discussão.
Gabi e Liam se viraram para encará-lo, surpresos.
— Icarus... — Liam começou.
— Lucan arriscou tudo por nós — Icarus interrompeu, ignorando o desconforto crescente em sua pele. — Não vamos abandoná-lo agora.
Podia sentir o formigamento se intensificar, prometendo bolhas se ficasse muito mais tempo exposto, mas havia algo quase libertador na sensação — como se o sol estivesse revelando uma parte dele que a escuridão eterna sempre ocultara.
— O sol está te machucando — Gabi observou, preocupada.
— Estou descobrindo que posso suportar mais do que pensava — Icarus respondeu, finalmente recuando para a sombra parcial das velas. — Ajuste o curso. Vamos para a toca dos lobos.
Nas Terras Selvagens, onde civilização era palavra esquecida, Zalameu Karlai estava em pé no centro de sua morada espartana. A construção era agressiva em sua simplicidade — paredes de pedra bruta, móveis que pareciam arrancados da própria montanha, nenhum conforto além do estritamente necessário para sobrevivência.
Em suas mãos massivas, uma carta já meio destruída. O pergaminho negro com selo imperial era insulto suficiente — Ordem Real Absoluta, as palavras que nem ele podia ignorar sem perder o direito de existir. Mas era o conteúdo que fazia seus olhos arderem com fúria antiga.
Retorno imediato. Situação crítica. Hécate...
O resto era burocracia velada, mas Zalameu conhecia Cassius bem demais. O imperador não invocaria o Ceifador por menos que desespero. E mencionar Hécate...
— O que meu filho está fazendo? — rosnou, amassando completamente a carta.
A irritação queimava como ferro em brasa. Depois de tudo, depois de todos os avisos, Hécate havia falhado. De alguma forma, em algum lugar, seu filho tinha tropeçado, e agora Cassius ousava arrastar Zalameu de volta para limpar a bagunça.
Caminhou até a janela, observando a desolação que escolhera como lar. Aqui, onde apenas os mais desesperados ou insanos ousavam viver, ele encontrara algo que o Império nunca oferecera — silêncio de seus próprios demônios.
Ou quase silêncio. As memórias nunca calavam completamente.
"Ashenmoor queimando. Gritos que duraram três dias. O cheiro de..."
Fechou os punhos até os nós dos dedos branquearem. Se Hécate tinha falhado, se colocara a família em risco, se forçara Zalameu a retornar para aquele ninho de víboras...
Começou a preparar sua partida com movimentos brutalmente eficientes. Cada item empacado era um lembrete de promessas quebradas. Jurara nunca mais servir. Jurara que o Ceifador estava morto.
Mas juramentos eram luxo que um Karlai não podia se dar quando a família sangrava.
E alguém ia pagar por fazê-lo quebrar sua palavra.
No salão privado do Senado, cinco figuras se reuniam como sempre faziam — em silêncio calculado.
— As rotas comerciais do norte estão... congestionadas — Morthem comentou, traçando linhas invisíveis sobre a mesa de mármore. Seus dedos se moviam com precisão militar, como se vissem soldados onde outros viam apenas madeira polida.
— Investimentos em arte sempre foram lucrativos — Berion respondeu, girando uma moeda entre os dedos com a destreza de quem movia fortunas há décadas. — Especialmente quando o retorno é... garantido.
Lysa passou o polegar pela borda de uma lâmina antiga, o gesto casual de quem conhecia o peso de metal contra carne.
— Algumas tradições merecem ser honradas. Outras... descartadas.
— Mudanças exigem tempo certo— Ilvara observou, seus olhos jovens estudando cada rosto como se memorizasse fraquezas. — Mover cedo demais é tão fatal quanto mover tarde demais.
Harol limpou o suor da testa com mão trêmula.
— E se as variáveis mudarem? Se... complicações surgirem?
— Complicações — Morthem repetiu — são oportunidades disfarçadas. Cada problema revela uma solução que antes era impensável.
— Desde que tenhamos recursos para implementá-las — Berion acrescentou, a moeda parando entre seus dedos. — Investidores esperam retornos.
— Alguns retornos — Lysa murmurou, ainda acariciando a lâmina — valem qualquer investimento inicial.
Ilvara sorriu.
— A questão é definir prioridades. Todos queremos prosperidade, mas nem todos concordamos sobre... métodos.
— Métodos — Harol repetiu nervosamente — podem ser... ajustados conforme necessário.
— Exato — Morthem dobrou as mãos. — Flexibilidade será essencial nos próximos dias.
Berion guardou a moeda.
— Três noites para... consolidar posições. Depois disso, o mercado ficará bem mais claro.
— Clareza — Lysa disse, finalmente guardando a lâmina — é tudo que precisamos.
Ilvara se levantou primeiro.
— Então estamos... alinhados?
Cada um assentiu, mas nenhum olhou diretamente para os outros.
A reunião terminou sem despedidas. Nas sombras do corredor, cinco ambições distintas se separaram, cada uma carregando seus próprios planos para os mesmos objetivos.
No Palácio Sombrio, a tensão era evidente como névoa venenosa. Cassius estava em pé diante da janela de seu escritório privado, observando a cidade em eterna penumbra. O ferimento do ataque Vaikeano latejava sob as bandagens, lembrança constante de quão vulnerável se tornara.
— Doze Vaikeanos dentro da cidadela — Juduo estava dizendo, sua voz tensa. — Não batedores ou assassinos solitários. Uma força de infiltração coordenada.
— Como? — Cassius se virou, os olhos flamejando. — Como doze guerreiros do gelo atravessaram cada defesa, cada guarda, cada runa de proteção?
— Alguém os deixou entrar — Juduo respondeu simplesmente. — Não há outra explicação. As runas foram desativadas por dentro. Os guardas dos pontos-chave estavam convenientemente ausentes.
— O Senado — Cassius cuspiu a palavra como veneno.
— Mas qual deles? — Juduo considerou. — Morthem tem a mente para isso — sempre foi três passos à frente de todos. Berion tem os recursos — comprar tantos guardas custaria uma fortuna. Lysa tem a vontade — ela nunca perdoou a ascensão dos Karlai sobre as famílias antigas. Harol... Harol tem o desespero de quem sabe que está afundando e quer levar todos junto.
Cassius ia responder quando batidas urgentes interromperam. Um guarda entrou, curvando-se profundamente.
— Majestade, Jon Saltador solicita audiência. Diz ser... sobre uma questão artística de interesse imperial.
Cassius e Juduo trocaram olhares. A Trupe dos Bardos nunca procurava o palácio sem motivo. E "questão artística" era código antigo para informação sensível.
— Interesse artístico? — Juduo franziu o cenho. — Desde quando a Trupe—
— Desde sempre — Cassius cortou, entendendo o jogo. — Mande-o entrar.
Jon Saltador entrou com seus passos característicos, mas desta vez cada movimento parecia coreografado. As mãos dançavam no ar como se conduzissem uma orquestra invisível, e quando se curvou, foi com o floreio exagerado de quem transformara reverência em arte.
— Majestade! — sua voz carregava a ressonância treinada de quem falava para plateias. — Venho como humilde servo das Musas, portador de dilemas que atormentam a alma criativa! Pois eis que me encontro diante do mais cruel dos enigmas — como um artista pode servir simultaneamente à Verdade e à Beleza quando ambas exigem sacrifícios mutuamente exclusivos?
Gesticulou dramaticamente, como se arrancasse palavras do próprio ar.
— Vereis, contemplo uma obra — 'A Dança dos Destinos Entrelaçados' — onde duas almas de mundos distintos encontram-se no teatro do Destino! Ah, mas que palco trágico é este, onde Amor e Dever duelam com espadas afiadas em lágrimas!
— Espadas e lágrimas? — Juduo rosnou, claramente irritado com a teatralidade.
Jon girou, a capa esvoaçando, e apontou para uma tapeçaria na parede como se ela contivesse profecias.
— Observai os fios desta trama, nobre Messor! Cada linha tecida conta uma história, mas é na tensão entre os fios que mora a verdadeira arte! Muito apertado — se rompe! Muito frouxo — se desfaz! Mas na medida exata... ah! Surge a obra-prima!
Voltou-se para Cassius com um movimento que fez suas vestes girarem como pétalas ao vento.
— E assim, Majestade, encontro-me no limiar do sublime e do perigoso! Pois minha história — ah, que história! — trata de uma rosa que floresceu onde não deveria florescer, amada por aquele cujo jardim fora consagrado apenas a lírios imperiais!
Cassius estudou Jon com fascínação genuína. O homem era um verdadeiro performer.
— E qual seria o dilema artístico, mestre Jon?
Jon pressionou a mão contra o peito como se a pergunta lhe tivesse atravessado o coração.
— O dilema, Majestade, é que toda grande tragédia deve escolher seu final! Será a rosa arrancada pela tempestade, suas pétalas espalhadas pelo vento cruel do dever? Ou crescerá ainda mais bela, provando que alguns jardins foram feitos para flores impossíveis?
Caminhou até a janela, os braços estendidos como se abraçasse a própria cidade.
— Mas eis o tormento que me devora! Meus patronos — almas generosas, porém talvez sedentes de... digamos, melodias específicas — sussurram preferências em meus ouvidos. 'Mostra-nos', dizem, 'como rosas e lírios não podem coexistir!' Mas meu coração de artista grita: 'E se puderem? E se a verdadeira beleza nascer justamente da impossibilidade?'
Juduo revirou os olhos, mas Cassius se inclinou para frente, intrigado.
— E qual voz você ouve mais alto, Jon? A dos patronos ou a do coração?
Jon girou novamente, desta vez com movimento mais lento, quase melancólico.
— Ah, Majestade, eis a pergunta que rouba o sono do artista verdadeiro! Pois que vale a arte que não ecoa nos corações? Mas que vale o coração que não pode se expressar? É como perguntar ao vento se prefere ser brisa ou tempestade!
Aproximou-se da escrivaninha imperial, as mãos traçando padrões invisíveis no ar.
— E assim venho buscar não censura, mas... inspiração! Pois quem melhor que aquele que governa corações para compreender qual melodia verdadeiramente ressoa na alma de um povo?
Cassius se levantou, circundando lentamente o menestrel.
— Uma pergunta interessante, mestre Jon. Mas talvez a questão seja: sua rosa... ela ainda floresce, ou conhecemos apenas sua memória?
Os olhos de Jon brilharam com entendimento perigoso.
— Ah! Eis a questão que transforma melodia em sinfonia! Pois que poder tem uma rosa morta senão inspirar outras a florescer? E que poder tem uma rosa viva senão provar que jardins podem ser... replantados?
— E se descobríssemos que a rosa... deixou sementes?
Jon congelou por uma fração de segundo, depois ergueu as mãos ao céu como se invocasse as próprias musas.
— Então, Majestade, teríamos não uma tragédia, mas uma lenda! Pois que história é mais poderosa: a do amor que morre, ou a do amor que transcende a própria morte para florescer em formas inesperadas?
— Cuidado, mestre — Cassius disse suavemente. — Algumas lendas são perigosas demais para ser contadas.
— E algumas — Jon rebateu, curvando-se profundamente — são perigosas demais para não ser.
Quando se endireitou, todo o drama havia sumido de seus olhos, substituído por cálculo frio.
— Três noites, Majestade. A rosa florescerá no palco. Resta saber... que jardim a plateia escolherá ver.
Depois que ele saiu, Juduo explodiu.
— Que espetáculo foi esse? O homem fala como se estivesse no palco!
— Porque está — Cassius murmurou, ainda observando a porta. — Sempre esteve. E acabamos de ser convidados para a plateia de um espetáculo muito mais perigoso do que imaginávamos.
— Significando?
— Significando que Jon não veio negociar. Veio nos avisar — Cassius voltou à escrivaninha. — A pergunta é: aviso ou ameaça?
Nas águas distantes, Icarus navegava sob um sol que sua pele híbrida lentamente aprendia a tolerar. Nas Terras Selvagens, Zalameu começava uma jornada que muitos prefeririam que nunca acontecesse. E em algum lugar, Hécate...
Mas essa era a parte mais aterrorizante.
Ninguém sabia onde Hécate estava.
E na ausência do Primeiro Messor, todos os outros predadores começavam a mostrar as presas.
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