Volume 1

Capítulo 26: Cecília

Dezessete anos antes dos eventos em Velaris Noctem

A Guerra de Emera - Fronteiras Geladas de Norhkaar

A neve caía como cinzas de um mundo queimando ao contrário. Cada floco era uma lâmina minúscula que cortava o ar gélido, acumulando-se em mortalhas brancas sobre os mortos. O céu de Vaikes não conhecia lua nem estrela — apenas um véu cinzento perpétuo que engolia toda luz, deixando o mundo em penumbra eterna.

Hécate Karlai movia-se entre os corpos como a própria morte dada forma. Seu manto negro ondulava contra o branco imaculado, única mancha de escuridão num mundo drenado de cor. Três Vaikeanos jaziam ao seu redor, seus sangues azulados cristalizando em padrões fractais sobre a neve. O primeiro tivera a cabeça separada do corpo num corte tão limpo que ainda mantinha a expressão de surpresa. O segundo fora partido ao meio na altura do abdômen, as entranhas congelando antes mesmo de tocarem o chão. O terceiro — o que tentara fugir — tinha a espada de Hécate atravessada pelas costas, a ponta emergindo do peito como uma flor metálica desabrochando.

A vinte metros dali, Rash lutava contra o quarto guerreiro. Seus movimentos, normalmente fluidos como mercúrio, agora pareciam pesados, forçados. Cada golpe chegava uma fração de segundo atrasado. Cada esquiva deixava-o mais próximo da lâmina inimiga. O vaikeano, percebendo a fraqueza, pressionava com golpes brutais que faziam o ar sibilar.

Rash bloqueou um corte descendente, mas o impacto fez seus joelhos dobrarem. A ausência da lua do Império era como ter metade do sangue drenado — os vampiros se alimentavam de sua luz tanto quanto de sangue, e aqui, nas Terras Geladas onde nem memória de luar existia, eram apenas sombras de si mesmos.

O vaikeano ergueu a espada para o golpe final. Rash tentou rolar para o lado, mas seus reflexos estavam embotados, seus músculos respondendo como através de melado. A lâmina desceu—

E parou.

A espada de Hécate atravessava o peito do vaikeano, cravando-o ao solo congelado com força suficiente para rachar o permafrost. O guerreiro cuspiu sangue azulado, as mãos agarrando inutilmente o metal que o pregava à terra. Seus olhos completamente brancos fitaram Hécate com ódio puro antes de se apagarem como velas ao vento.

Rash caiu de joelhos, o peito subindo e descendo em respirações desesperadas. O suor congelava em seu rosto assim que emergia dos poros, formando uma máscara de cristal que rachou quando ele tentou falar.

— Gra… gratidão, Messor.

Hécate arrancou a espada do cadáver com um movimento casual, limpando o sangue alienígena na neve. Seus olhos vermelhos, que normalmente ardiam como brasas, aqui pareciam opacos, quase humanos. Mas não havia fraqueza neles — apenas a indiferença de quem matara tantos que perdera a conta.

— Volte para o acampamento — ordenou, a voz cortando através do vento uivante. — Se não aguenta o avanço, não deveria ter vindo.

Rash forçou-se a levantar, o orgulho lutando contra a exaustão.

— Estamos em guerra, senhor. Não posso simplesmente—

— Guerra? — Hécate virou-se completamente para encará-lo, e mesmo enfraquecido pela ausência lunar, sua presença era esmagadora. — Isto não é guerra, tenente. É extermínio. Eles mandam grupos de reconhecimento, nós os massacramos. Eles recuam, nós avançamos. Não há glória aqui, apenas—

Parou.

O som chegou carregado pelo vento, tão sutil que poderia ser imaginação. Notas de harpa, delicadas como teias de aranha, tecendo uma melodia que não pertencia àquele lugar de morte. Era bela demais, pura demais para existir num campo encharcado de sangue.

— Saia daqui — Hécate ordenou, a mão apertando o punho da espada. — Agora.

— Senhor, eu—

— AGORA!

Mas era tarde demais.

A névoa se partiu como cortinas de seda, e ela emergiu.

Cabelos negros como a noite de Noctus caíam em cascata sobre ombros cobertos por uma armadura que parecia forjada da própria luz lunar. Não prata comum — era algo mais, metal que captava luz onde não havia nenhuma, brilhando com luminescência própria. Placas entrelaçadas permitiam movimento perfeito, cada junta uma obra de arte em engenharia e devoção. Símbolos gravados cobriam cada centímetro: escrituras sagradas, orações em metal, a fé dada forma bélica.

Mas eram os olhos que prendiam a atenção. Verdes como esmeraldas iluminadas por dentro, carregando uma intensidade que fazia o olhar de Hécate parecer suave em comparação. Havia algo neles — não crueldade, não ódio, mas uma certeza absoluta que era ainda mais perturbadora.

Na mão direita, ela segurava uma espada que fazia as lâminas comuns parecerem gravetos. Runas pulsavam ao longo da lâmina, mudando de cor e forma como se estivessem vivas, contando histórias em línguas mortas. O punho terminava num olho fechado esculpido em obsidiana.

Ela sorriu. Não um sorriso de batalha ou ameaça, mas algo genuíno, quase caloroso.

— Saudações, Primeiro Messor — sua voz carregava sotaque suave, musical. — Sou uma serva. Uma bellator.

Hécate puxou sua espada do chão, assumindo postura de combate.

— Quem é você?

— Alguém que busca entender — ela respondeu, inclinando levemente a cabeça. — As bellators não servem a nações ou reis. Servimos à esperança de que um dia a guerra seja apenas uma memória ruim.

— Então está no campo de batalha errado — Hécate respondeu, estudando-a. — Aqui só há morte.

— Toda morte começou com um mal-entendido — ela disse suavemente. — Por que vocês de Noctus insistem em matar os vaikeanos? Por que não podemos simplesmente viver em paz?

— Vocês invadem nossas fronteiras. Matam nossos colonos. A guerra é—

— Não — ela interrompeu gentilmente, quase com pena. — Você sabe que não é por isso que existe esta guerra. Por favor, não insulte minha inteligência fingindo acreditar em em falácias governamentais.

Hécate atacou.

A velocidade foi tal que Rash não conseguiu processar o movimento. Num instante Hécate estava a dez metros de distância; no seguinte, sua lâmina descia num arco mortal que poderia partir montanhas. O Primeiro Messor movia-se com força brutal que desafiava as leis da física — e mais impressionante, parecia imune à fraqueza que afligia outros vampiros ali. A ausência da lua não o tocava.

O estrondo do impacto foi ensurdecedor. Uma onda de choque espalhou-se do ponto de contato, levantando uma cortina de neve e estilhaços de gelo. O solo rachou em teias de aranha que se espalharam por metros.

Quando a nuvem de detritos baixou, Rash engasgou.

Cecilia havia aparado o golpe não com força bruta, mas com redirecionamento perfeito. A lâmina de Hécate deslizara pela sua num ângulo calculado, toda aquela violência canalizada para o vazio ao seu lado. Ela não bloqueara — havia usado a própria força dele contra ele.

— Impressionante — ela comentou, dando um passo circular. — Mas sua espada está cheia de raiva. Por quê?

Hécate girou e atacou novamente, uma sequência brutal — corte horizontal, estocada, golpe ascendente. Ela fluía ao redor dos ataques como água contornando pedras. Não havia desperdício em seus movimentos, apenas a economia sublime de quem transformara defesa em arte.

O que se seguiu foi menos batalha e mais demonstração filosófica. Hécate atacava com fúria calculada, cada golpe carregando força para pulverizar granito. Cecilia defendia, desviava, redirecionava — nunca atacando, nunca retaliando, apenas sobrevivendo com graça minimal.

— Lute! — Hécate rugiu, frustração sangrando através de décadas de controle.

— Estou lutando — ela respondeu serenamente, seu corpo girando como dançarina para evitar outro golpe mortal. — Contra a necessidade desta violência. Cada ataque seu grita uma verdade: você não quer estar aqui.

As lâminas se encontraram numa cascata de faíscas. Hécate forçou, músculos tremendo com esforço. Ela cedeu — não por fraqueza, mas estratégia — deixando-o se desequilibrar com a própria força.

— Bellators aprendem a ouvir o que as espadas dizem — ela continuou, saltando sobre um corte baixo. — A sua chora. Por quê?

— Cale-se!

Ele mudou de tática, incorporando o ambiente — chutou neve em seus olhos, usou cadáveres como obstáculos, forçou-a para terreno irregular. Por um momento, funcionou. Ela teve que ajustar a movimentação, adaptar-se ao novo ritmo.

Mas então algo mudou.

Seus olhos verdes se arregalaram, fitando algo além de Hécate. Não atrás dele — através dele, como se visse algo tecido em sua própria alma. Uma sombra, um futuro, algo que não deveria estar ali.

A guarda baixou por uma fração de segundo.

Hécate não desperdiçou a oportunidade.

Seu ombro colidiu com o peito dela com força de aríete. O impacto a levantou do chão, arremessando-a contra uma formação rochosa a cinco metros de distância. O estrondo do impacto fez a pedra rachar, e ela deslizou para o chão, a espada caindo de seus dedos.

Hécate avançou, lâmina erguida. Ela tentou se levantar, mas ele já estava sobre ela, a ponta da espada a milímetros de sua garganta. Ambos sabiam a verdade: naquele nível de poder, um golpe limpo era morte certa. Não havia margem para erro, não havia segunda chance.

— ACABE COM ELA! — Rash gritou da distância, finalmente encontrando a voz. — É uma bellator! Você seria lenda! O vampiro que matou uma guerreira divina!

Cecilia — pois esse era seu nome, embora Hécate ainda não soubesse — olhou para os olhos vermelhos acima dela. Não havia medo ali. Apenas uma curiosidade suave, como se estivesse vendo algo que outros não podiam.

— Vejo bondade em você — ela disse suavemente. — Escondida, enterrada sob camadas de dever e sangue, mas está lá. Você ama. Você ama alguém… um filho?

As palavras o atingiram como golpes físicos. Como ela podia saber? Smael tinha apenas três anos, estava seguro em Noctus, longe desta guerra.

Hécate ergueu a espada, preparando o golpe final. O arco foi perfeito — décadas de prática condensadas num único movimento que separaria a cabeça do corpo sem resistência.

Ela sorriu.

A lâmina parou a centímetros de seu pescoço.

— Por que sorri? — a voz dele saiu rouca, quase um sussurro.

— Porque vou encontrar meu senhor — ela respondeu com serenidade absoluta. — E porque foi uma honra lutar contra o Primeiro Messor. Não há vergonha em cair para o melhor.

Algo aconteceu em Hécate naquele momento. Algo que ele não conseguia nomear, não conseguia entender. Era como se uma porta há muito fechada tivesse sido entreaberta, deixando entrar um raio de luz em um quarto escuro. Não era piedade — Hécate não conhecia tal coisa. Era… reconhecimento. Como se olhasse num espelho distorcido e visse não seu reflexo, mas o que poderia ter sido.

— MATE-A! — Rash berrou novamente, começando a se aproximar. — É uma ordem! Ela é inimiga do Império!

Hécate moveu-se num borrão. A espada desceu — mas não para o pescoço. A lâmina penetrou o abdômen dela, atravessando a armadura como se não existisse. Sangue — vermelho, humano, impossivelmente vivo — fluiu do ferimento.

Cecilia arquejou, mas o sorriso não deixou seus lábios.

— Volte ao acampamento — Hécate ordenou a Rash sem se virar. — Vou avançar mais ao norte. Sozinho.

— Senhor, eu devo—

— VOLTE! — A voz de Hécate carregava o peso de comando absoluto, o tipo de ordem que marcava a alma. — Agora, tenente. Não me faça repetir.

Rash recuou como se tivesse sido golpeado. Curvou-se rigidamente, deu meia volta e começou a marcha de volta, cada passo mais rápido que o anterior até estar correndo, fugindo da aura assassina que Hécate projetava.

Quando o silêncio voltou, Hécate ajoelhou-se ao lado de Cecilia. Ela estava pálida, o sangue formando uma poça escarlate na neve branca. Mas respirava. Superficialmente, com dor, mas respirava.

Algo o compeliu a tocar seu pescoço, checar o pulso. No momento em que seus dedos tocaram a pele dela, uma dor lancinante atravessou sua mão. Era como tocar ferro em brasa, mil agulhas penetrando cada nervo. Ele recuou instintivamente, olhando para a palma que mostrava queimaduras que já começavam a curar.

Tentou novamente. A dor voltou, ainda mais intensa, subindo pelo braço como veneno. Mas Hécate Karlai não era homem de ceder à dor. Cerrou os dentes e manteve os dedos no lugar, sentindo o pulso fraco mas constante sob a pele que o queimava.

Ela estava viva. Morrendo, mas viva.

E pela primeira vez em sua existência, Hécate Karlai não sabia o que fazer com essa informação.

A neve continuava caindo, cobrindo os mortos e os quase-mortos com igual indiferença. E em algum lugar além da névoa, o som fantasma de uma harpa ainda ecoava, tocando uma melodia que falava de escolhas ainda por fazer e destinos ainda por escrever.​​​​​​​​​​​​​​​​

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