Volume 1
Capítulo 25: Irmãos Em Perigo
O convés do Sereia Velada rangia sob o peso da névoa matinal. Icarus dormia encolhido contra uma pilha de cordas, o pingente de prata que Smael lhe dera pressionado contra seu peito. Ao seu lado, Lucan respirava com dificuldade, as bandagens manchadas de vermelho escuro. Gabi mantinha vigília na proa, estudando mapas à luz de uma lanterna fraca.
No sono inquieto de Icarus, o mundo dissolveu-se em luz dourada.
Ele estava em pé num campo de trigo que se estendia até onde a vista alcançava. O céu acima era algo impossível — azul, com uma esfera de fogo que aquecia sua pele. Sol, sua mente sussurrou, embora nunca tivesse visto um. O ar cheirava a terra aquecida e pólen, sensações completamente alienígenas para alguém nascido sob a lua eterna.
E então ele a viu.
A mulher caminhava pelo trigo com passos leves, as hastes douradas se curvando suavemente à sua passagem. Ela sorria — um sorriso simples, genuíno, que iluminava feições que eram versões maduras das suas. Cabelos negros como os dele caíam sobre os ombros, brilhando sob a luz impossível.
A armadura que vestia era obra de mestre ferreiro e devoção. Placas de prata polida se entrelaçavam, cada junta permitindo movimento fluido. Mas eram os entalhes que prendiam o olhar: símbolos que lembravam orações visuais, escrituras em metal. A gorjeira mostrava sete espadas convergindo para um ponto central. O peitoral trazia a imagem de uma árvore cujas raízes e galhos se encontravam, formando um círculo perfeito. Nas ombreiras, asas estilizadas — nem anjo nem demônio, mas algo entre.
Na mão direita, ela segurava uma espada. A lâmina era simples em forma mas complexa em decoração — runas corriam do punho à ponta, tão intrincadas que pareciam se mover sob o sol. O punho terminava num pomo que mostrava um olho fechado.
Ela parou a poucos passos dele, ainda sorrindo. Ergueu o rosto para o sol, fechando os olhos como se saboreasse o calor. Por um momento, foi apenas uma mulher apreciando um dia bonito num lugar que não deveria existir.
Então Icarus notou o que estava além dela.
O campo de trigo terminava abruptamente numa linha precisa, como se cortado por lâmina colossal. Além, erguia-se uma muralha negra que subia até perder-se nas nuvens. Não era feita de pedra comum, a superfície absorvia luz, criando um vazio visual que feria os olhos ao tentar focar.
E entre o campo e a muralha, nas sombras que a parede impossível projetava, coisas se moviam.
Não tinham forma definida, eram manchas de escuridão que pulsavam com vida própria. Mas o pior não era o que se via. Era o que se sentia. Maldade pura emanava delas, tão densa que o ar parecia apodrecer em sua presença. Não era ódio direcionado ou fúria com propósito. Era mal em sua forma mais destilada — a ausência de qualquer coisa boa, a negação da própria esperança. Olhos brilhavam nas sombras, não com luz, mas com uma fome avassaladora.
A mulher seguiu seu olhar e o sorriso diminuiu, mas não desapareceu.
— Eles sempre estiveram lá — disse ela, a voz carregando sotaque suave que Icarus não reconhecia. — Esperando do outro lado. A Muralha os segura. Por enquanto.
Ela voltou a olhar para ele, e agora havia melancolia misturada ao carinho em seus olhos verdes.
— Você tem meus olhos — sussurrou. — Mas espero que tenha a força do seu pai. Vai precisar.
O sol começou a se pôr — não naturalmente, mas como se algo o devorasse pelas bordas. Sombras alongaram-se, alcançando o campo. Onde tocavam, o trigo murchava e escurecia.
A mulher olhou para o fenômeno sem medo, apenas aceitação. Tocou o pingente no próprio pescoço — idêntico ao que Smael dera a Icarus.
— Algumas heranças vêm em forma de ouro — disse ela. — Outras em forma de sangue. As piores vêm em forma de escolhas.
As sombras a alcançaram. Ela sorriu uma última vez, e então—
A quilômetros dali, nos becos mais podres de Nocturna, Smael Karlai flutuava entre consciência e delírio.
Piscada.
Ruas estreitas do Buraco Negro, o bairro que nem os guardas mais corajosos patrulhavam, um Messor era algo inacreditável de ser encontrar ali. O fedor era físico — excrementos, carne apodrecendo, desespero fermentado em cada parede úmida. Juduo carregava-o sem esforço aparente, navegando pelos becos com familiaridade perturbadora.
— Aguenta, garoto — a voz de Juduo vinha distorcida, como através de água. — Conheço alguém que pode ajudar.
Piscada.
Uma porta de ferro, mais ferrugem que metal. Símbolos estranhos gravados com unhas ou garras formavam padrões que doíam ao olhar. Juduo bateu num ritmo específico — três, pausa, dois, pausa, arranhão longo.
A porta abriu sem som. O homem do outro lado era o que pesadelos temiam encontrar em seus próprios sonhos. Alto, magro ao ponto de parecer cadavérico, vestindo um avental de couro tão manchado que as camadas de sangue seco formavam relevos. Cicatrizes rituais cobriam cada centímetro de pele visível, formando padrões que sugeriam propósito. Mas eram os olhos que verdadeiramente perturbavam — completamente negros, sem branco, como poços que haviam visto o fundo do sofrimento e decidiram que gostavam da vista.
— Juduo — a voz era cascalho sendo moído com cacos de vidro. — Quanto tempo.
— Vim cobrar o favor, Mordechai.
O carrasco da Guilda dos Ossos examinou Smael com interesse puramente profissional. Tocou a testa febril, cheirou o suor, até lambeu uma gota de sangue que escorria do nariz do Messor.
— Veneno Vaikeano. Já está no sangue profundo. — Cuspiu no chão, a saliva chiando levemente nas pedras. — Caro. Muito caro.
Juduo não hesitou. Puxou uma moeda do bolso interno do manto. Ouro puro, reluzindo mesmo na penumbra. De um lado, o brasão imperial. Do outro, o perfil do Imperador Cassius, tão detalhado que parecia vivo. Uma practa — cem moedas de prata em uma única peça.
Mordechai pegou-a com dedos que mais pareciam garras, testou com os dentes amarelados.
— Ouro verdadeiro. Cunhagem deste ano. — Guardou no bolso do avental, onde tilintou contra outras coisas metálicas. — Entrem. Rápido. O cheiro de Messor atrai atenção errada neste bairro.
Piscada.
O interior era catedral da atrocidade. O teto alto se perdia em sombras de onde pendiam correntes de todos os tamanhos, algumas com ganchos limpos, outras com… restos. As paredes exibiam instrumentos que mesclavam medicina e tortura com criatividade doentia. Serras que pareciam delicadas demais. Agulhas grossas demais. Tubos que não deveriam existir.
O ar era espesso, úmido, com sabor metálico que grudava na garganta e recusava-se a sair. Velas de cera negra queimavam com chama vermelha, lançando sombras que se moviam independentemente de suas fontes.
E no centro, suspensa como peça principal de altar profano, pendia uma criança.
Não mais que sete anos. Cabelos castanhos sujos de sangue seco. Suspensa de cabeça para baixo por correntes que mordiam tornozelos tão magros que os ossos eram visíveis sob a pele. Um tubo de vidro atravessava a garganta, não perfurando a traqueia, mas passando ao lado, através de incisão cirúrgica precisa. O dispositivo permitia respiração mínima enquanto drenava sangue numa velocidade calculada para não matar.
O sangue descia lento, grosso demais para ser saudável, escuro demais para ser fresco, pingando num cálice de obsidiana decorado com runas que pareciam absorver luz.
Os olhos da criança estavam abertos. Não mortos, mas além da vida. Vendo sem ver. A boca tentava formar palavras que o tubo tornava impossíveis.
— Três semanas neste estado — Mordechai explicou com orgulho de artesão mostrando obra-prima. — Alimentada por soro nas veias. Hidratada pelo mesmo tubo que a drena. O sangue fermenta no corpo ainda vivo, o último ingrediente não posso falar. Único antídoto conhecido para veneno profundo de Vaikeano.
Smael olhou para a criança. Por um momento, apenas um momento fugaz, pensou:
“Icarus tinha essa idade quando o ensinei a segurar uma espada pela primeira vez. Suas mãos eram pequenas demais para o punho.”
O pensamento evaporou. Era apenas recurso médico. Nada mais. Vampiros não desperdiçavam considerações com presas.
Mordechai pegou o cálice com reverência profana. Murmurou palavras numa língua que precedia o Império, fazendo gestos que deixavam rastros no ar viciado. O sangue dentro não era mais vermelho — havia se tornado negro com veios prateados que se moviam como mercúrio vivo.
— Bebe tudo — ordenou, estendendo o cálice. — Sem parar. Sem vomitar. Ou o veneno e o antídoto se matam dentro de você, e você apodrece de dentro pra fora.
Smael pegou o cálice. O peso era errado, leve demais para a quantidade de líquido, como se o conteúdo existisse em estado entre matéria e memória. O cheiro subiu — cobre, medo cristalizado, inocência apodrecida.
Bebeu.
O primeiro gole foi choque. Não apenas no paladar — cada nervo gritou, cada célula reconheceu a a dor fundamental do que entrava. Era sangue, sim, mas sangue que havia sido torturado em algo além. Sofrimento destilado. Tempo coagulado. A essência do medo tornado líquido e fermentado em desespero. Era delicioso.
O cálice vazio caiu, o som ecoando como se estivesse dentro da mente. O mundo explodiu em cores que não tinham nome, em sensações que não deveriam existir. A última coisa que viu antes do negrume total foi a criança — e por um instante terrível, pareceu que ela sorria.
Então tudo ficou escuro.
Vazio.
Icarus acordou com sobressalto, não gritando mas ofegante, como se tivesse esquecido de respirar. O pingente estava frio contra seu peito, exatamente como sempre fora. Prata simples. Sem mudanças. Sem brilhos místicos.
Apenas um pingente e a memória de um sonho perturbadamente vívido.
— Pesadelo? — Gabi perguntou sem desviar os olhos dos mapas.
— Algo assim — murmurou Icarus, esfregando os olhos.
Lucan remexeu-se em seu canto, gemendo baixo. A febre havia voltado. Precisavam de ajuda médica real, não apenas bandagens improvisadas.
— Vem ver isso — Gabi chamou, acenando para que se aproximasse.
Icarus levantou-se com as pernas bambas e foi até ela. O mapa mostrava a costa oeste, marcada com anotações em tinta fresca.
— Estamos aqui — ela apontou. — Rocatus fica aqui, já em território de Abhadia. Mas para chegar lá… — seu dedo traçou uma rota que passava por águas marcadas com múltiplos símbolos de perigo. — Temos que passar próximo a Nepau.
— Nepau? — Liam, que havia se aproximado silenciosamente, cuspiu ao ouvir o nome. — Aquele buraco dos infernos.
— O quê é Nepau? — Icarus perguntou.
— Não é o quê, é onde — Gabi explicou, enrolando parcialmente o mapa. — Uma região inteira sem lei. Nem o Império, nem Abhadia, nem ninguém controla aquelas águas e ilhas.
Lucan, do seu canto, acrescentou com voz rouca:
— Porto livre. — Tossiu, manchando os lábios de vermelho. — Se você está fugindo de algo e tem moedas, Nepau te acolhe. Se não tem moedas… vira mercadoria.
— Quantos navios patrulham aquelas águas? — Icarus perguntou.
— Impossível saber — Gabi respondeu. — Muda toda semana. Alianças se formam e se quebram como ondas. A única constante é que todos querem dinheiro.
— E temos que passar por lá?
— Próximo — Gabi corrigiu. — Mas perto o bastante para que patrulhas possam nos avistar. E se avistarem…
— Vão querer saber o que um navio com design imperial faz naquelas águas — Lucan completou. — E não vão aceitar ‘estamos de passagem’ como resposta.
— Quanto ouro temos? — Icarus perguntou.
— Pouco — Gabi respondeu. — Talvez o suficiente para subornar uma patrulha pequena. Mas se encontrarmos uma frota…
— Se encontrarmos uma frota, vamos ter que atender qualquer demanda — Lucan disse, fechando os olhos. — Em Nepau, tudo tem preço. E eles sabem que navios fugindo geralmente carregam coisas valiosas.
— Ou pessoas valiosas — Liam acrescentou, olhando significativamente para Icarus.
Ficaram em silêncio, cada um processando as implicações.
— Podemos contornar? — Icarus sugeriu.
— Adiciona uma semana à viagem pelo mar aberto — Gabi respondeu. — Águas mais perigosas, tempestades frequentes. E… — olhou para Lucan — ele não tem uma semana.
O vento mudou de direção, trazendo cheiro de sal e algo mais — fumaça distante, talvez de fogueiras em ilhas sem nome.
— Com sorte, passamos durante a noite sem ser notados — Gabi disse, mais para si mesma do que para os outros. — Podemos ter vantagem.
— Em Nepau, a única lei é sobreviver — Lucan murmurou. — Pelo menos impérios têm códigos, mesmo que tortos. Lá… é cada um por si.
— Quanto tempo até chegarmos lá?
— Três dias com vento favorável — Gabi calculou. — Quatro se tivermos que manobrar.
— Então temos dois dias para pensar num plano — Icarus disse.
— Plano? — Liam riu sem humor. — O plano é simples: se vierem, damos o que pedirem e rezamos para ser suficiente. Em Nepau, resistência significa morte. Ou pior — mercado de escravos.
Lucan tossiu novamente, mais sangue manchando os lábios.
— Icarus — chamou fracamente.
O híbrido foi até ele, ajoelhando-se.
— Se eles descobrirem o que você é… um híbrido vale fortunas no mercado negro. Para colecionadores, para experimentos, para… — não terminou, mas o horror estava implícito.
— Vamos dizer que sou outra coisa — Icarus sugeriu.
— Seus olhos te denunciam — Gabi disse da proa. — Verdes demais, brilhantes demais, copo pálido demais. Qualquer um com experiência vai saber.
— Então o que fazemos?
— Rezamos — Lucan respondeu, fechando os olhos. — Rezamos para qualquer deus que ainda se importe com fugitivos no mar.
No horizonte, nuvens se acumulavam, prometendo tempestade. E além delas, em algum lugar nas águas sem lei de Nepau, navios sem bandeira patrulhavam como abutres, esperando por presas fáceis — ou valiosas.
Em Nocturna, Smael Karlai ardia em febre enquanto veneno e antídoto duelavam em suas veias. Em algum lugar além das fronteiras, um corvo voava com pergaminho selado.
E no convés de um navio roubado, um garoto navegava em direção a águas onde a única moeda aceita era desespero, e a única lei era a ausência dela.
Três dias.
Tinham três dias antes de descobrir se a sorte — essa deusa caprichosa — ainda se lembrava de seus nomes.
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