Volume 1
Capítulo 24: A volta do Ceifador
O silêncio no Salão da Lua pesava mais que as colunas de obsidiana. Cassius permanecia sentado no trono, a mão pressionando o ferimento sob as vestes. Cada respiração arranhava como vidro moído, e o veneno Vaikeano serpenteava sob sua pele como mercúrio vivo. As velas tremeluziam, projetando sombras que pareciam garras nas paredes. Jargal e Krista mantinham-se de pé, suas figuras rígidas como estátuas funerárias.
— Não é prudente manter todos os Messores longe, Majestade — disse Jargal, as mãos entrelaçadas às costas, os anéis de cargo tilintando suavemente. — Com Hécate ausente, Plastissax investigando as fronteiras, Seraphine... indisposta... e agora Smael e Juduo patrulhando a cidadela... ficamos expostos.
Krista bateu o cajado de ébano no mármore, o som ecoando como osso contra osso.
— Jargal tem razão. Se mais Vaikeanos surgirem enquanto nossa força está dispersa... — Ela pausou, os olhos rubros refletindo as chamas. — O que aconteceu esta noite não foi um ataque isolado. Foi uma declaração. Eles sabem que estamos vulneráveis.
Cassius ergueu o olhar, os olhos fundos brilhando com determinação férrea. Por um momento, pareceu envelhecer uma década, o peso da coroa manifestando-se em cada linha de seu rosto.
— Mandem o corvo para aquele homem.
O cajado de Krista escorregou, batendo no chão com estrondo que reverberou pelas abóbadas. Jargal deu um passo involuntário para trás, o rosto normalmente impassível contorcido em choque genuíno. Até as chamas das velas pareceram vacilar, como se o próprio palácio temesse o nome não pronunciado.
— Majestade... — Krista recuperou o cajado com mãos trêmulas, seus séculos de compostura abalados. — Aquele homem jurou sobre o sangue de três gerações que nunca mais pisaria em solo imperial. Se ele voltar agora, depois de quinze anos...
— Causará um reboliço que fará nossos problemas atuais parecerem sussurros de criança — completou Jargal, a voz rouca de apreensão. — Os boatos já escaparam nosso controle. A trupe de bardos espalha histórias em cada taverna. A ausência de Hécate não pode mais ser escondida após decretarmos cerco. Se ELE aparecer também...
— SILÊNCIO! — A voz de Cassius cortou o ar como chicote embebido em fel. Ele se levantou abruptamente, cambaleando ligeiramente. O movimento brusco reabriu parcialmente o ferimento; sangue fresco manchou a bandagem, escorrendo em fios escarlates sobre o tecido branco. — Acham que não sei disso? Acham que não calculei cada consequência maldita?
Aproximou-se de Jargal, cada passo deixando pequenas gotas vermelhas no mármore branco — um rastro que parecia marcar o próprio declínio do Império. O Konsule Chefe não recuou, mas seus olhos traíram o desconforto.
— Eles estão DENTRO do Império. DENTRO dos meus aposentos sagrados. — Cassius agarrou a gola de Jargal, puxando-o para perto. O hálito do Imperador cheirava a sangue e algo mais — o início da putrefação do veneno. — Atravessaram defesas que jurávamos impenetráveis. Runas que custaram a sanidade de cem runólogos. Guardas treinados desde o nascimento. E mesmo assim, um deles chegou perto o bastante para sentir meu hálito antes de cravar a lâmina.
Soltou Jargal com disgusto, virando-se para a janela que dava para a cidade adormecida.
— Só ele pode trazer o equilíbrio de volta enquanto arrumamos esta casa podre. Só ele tem a brutalidade necessária para o que vem pela frente.
— Mas uma Ordem Real Absoluta... — Jargal ajeitou as vestes, recuperando a compostura. — Majestade, compreende as implicações? Se ele recusar, perde títulos, terras, até o nome. Tornar-se-á pária, excomungado de cada pedra do Império. Nem os corvos carniceiros o reconhecerão.
— E se aceitar, chegará aqui como a fera que sempre foi — acrescentou Krista, aproximando-se com passos medidos. — Quinze anos nas Terras Selvagens... Imperador, ninguém sabe o que ele se tornou. Os últimos relatos falavam de... atrocidades. Aldeias inteiras encontradas sem uma alma viva. Padrões de morte que não faziam sentido militar.
— E os rumores... — Jargal baixou a voz. — Dizem que ele não envelhece mais. Que fez pactos com coisas que rastejam além da Muralha Negra.
— BASTA! — Cassius agarrou a borda da mesa de ébano, os nós dos dedos brancos como ossos expostos. A madeira rangeu sob a pressão. — Rumores e sussurros! É isso que nos resta? O grande Império de Noctus reduzido a temer histórias de ninar?
Respirou fundo, tentando controlar a fúria que ameaçava consumi-lo. Quando falou novamente, sua voz era baixa, perigosa.
— Escute bem, Jargal. Escreva a ordem. Use o pergaminho negro, sele com sangue imperial e as três runas de compulsão. Se ele tentar queimar a mensagem, que as palavras se gravem em sua pele. Se tentar fugir, que cada passo o traga mais perto. Faça-o entender que não há escolha.
O Konsule Chefe sustentou o olhar imperial por longos segundos. Era um duelo silencioso de vontades, décadas de serviço contra a autoridade absoluta. Por fim, Jargal curvou-se profundamente.
— Como ordenar, Majestade. Que as palavras sejam seladas em sangue e enviadas nas asas da necessidade. — Pausou na porta. — Mas permita-me registrar oficialmente minha objeção. Estamos soltando algo que não poderemos controlar novamente.
Enquanto Jargal saía para buscar os materiais necessários, Krista aproximou-se do Imperador. Estudou-o com olhos que haviam visto impérios nascerem e morrerem.
— Tem certeza de que ele virá? Depois de tudo? Mesmo com o sumiço do—
— Não pronuncie o nome — Cassius interrompeu bruscamente. — Não aqui. Não agora. Já não ageunto mais ouvir.
Krista assentiu lentamente.
Cassius tocou o ferimento, sentindo o veneno Vaikeano pulsar sob a pele. Cada batimento cardíaco espalhava a corrupção um pouco mais.
— Ele virá. Não por mim. Não pelo Império. — Uma sombra de algo indefinível cruzou seu rosto. — Mas pelo próprio filho.
A ponte do Véu Noturno estendia-se sobre o abismo que separava o palácio da cidadela. Era uma obra de engenharia e magia: arcos de obsidiana entrelaçados com correntes de prata, runas pulsando suavemente ao longo dos corrimãos. O vento cortante subia do precipício, carregando o cheiro de névoa e desespero das profundezas.
Smael apoiava-se pesadamente contra um dos pilares de entrada, a respiração curta criando pequenas nuvens no ar gélido. Três dias sem dormir. O ferimento nas costas — cortesia da lâmina de Rash — latejava a cada batimento cardíaco, e o sangue seco grudava a camisa na pele. Suas pálpebras pesavam como chumbo, e o mundo ocasionalmente desfocava nas bordas.
Do outro lado da ponte, emergindo da névoa como pesadelos materializados, os dois Vaikeanos circundavam. Suas peles azuladas brilhavam sob a luz lunar, e os olhos completamente azuis — sem íris, sem pupila, apenas um mar vazio — fixavam-se nos dois Messores. Eram maiores que os vampiros, músculos densos sob peles marcadas por padrões tribais em cicatrizes. O ar ao redor deles era mais frio, como se trouxessem o inverno do norte em seus ossos.
— Filhos da noite eterna — sibilou o mais alto, sua voz como vento através de ossos. — Vocês profanam nossa passagem sagrada.
O segundo, mais atarracado mas igualmente letal, girou uma corrente com pontas de gelo nas extremidades.
— O sangue negro de vocês manchará estas pedras. Uma oferenda para os Deuses Adormecidos.
Smael tentou erguer Frey, mas a lâmina tremeu em sua mão. O mundo girou ligeiramente, e ele precisou piscar várias vezes para focar.
— Não posso... — murmurou, o orgulho lutando contra a exaustão.
Juduo pousou a mão no ombro do companheiro, firme mas gentil.
— Pode. — Sua voz carregava uma calma antinatural. — Estes filhotes esqueceram que estão sob a lua do Império, não sob as auroras geladas de suas terras.
Com movimentos deliberados, Juduo despiu o manto negro de Messor, dobrando-o cuidadosamente e entregando a Smael. O gesto era ritual, solene. Sob o manto, seu torso era um mapa de guerra: cicatrizes entrecruzadas formando padrões quase artísticos, cada uma contando uma história de sobrevivência. Algumas eram antigas, brancas como marfim. Outras, mais recentes, ainda carregavam o tom púrpura da cura vampírica.
Mas eram seus olhos que verdadeiramente perturbavam. Completamente brancos — eram vazios, mas brancos como pérolas, como luas gêmeas, irradiando uma luz própria suave.
— Sabe o que dizem sobre lutar na ponte? — Juduo perguntou casualmente, como se conversasse sobre o clima. — Dizem que os mortos observam do abismo. Que aplaudem os vencedores e amaldiçoam os perdedores.
Estalou o pescoço, o som ecoando no silêncio.
— Vamos dar a eles um espetáculo digno.
O primeiro Vaikeano rugiu, avançando com velocidade sobrenatural. A lâmina curva em sua mão deixou um rastro de geada no ar. O golpe desceu em diagonal, mirando partir Juduo da clavícula até o quadril.
Juduo não recuou — deslizou para dentro da guarda do oponente, o movimento tão fluido que parecia água contornando pedra. A lâmina passou tão perto que cortou três fios de seu cabelo, mas não tocou a pele. Seu cotovelo subiu num arco perfeito, encontrando o queixo do atacante com precisão cirúrgica. O estalo de mandíbula quebrando ecoou sobre o abismo como galho seco numa fogueira.
Sem pausa, sem sequer um momento para respirar, Juduo agarrou o pulso armado do Vaikeano. Seus dedos encontraram pontos de pressão específicos — conhecimento acumulado em décadas estudando anatomia de várias espécies. Torceu com força calculada. Os tendões estalaram como cordas de violino arrebentando. A lâmina caiu, girando em direção ao precipício, mas antes que desaparecesse na névoa, Juduo a chutou. O metal girou no ar num arco impossível, cortando a bochecha do segundo atacante que se aproximava pelas costas.
— Previsíveis — murmurou Juduo. — Sempre atacam em pinça. Tática de lobos.
O Vaikeano ferido rugiu, sangue azulado escorrendo pelo rosto. Investiu com ambas as mãos estendidas, garras de gelo puro brotando das pontas dos dedos — cada uma com quinze centímetros de morte congelada.
Juduo abaixou-se no último instante possível, as garras passando onde sua cabeça estivera, tão perto que cristais de gelo se formaram em seus cabelos. Usando o momentum do agachamento, varreu as pernas do inimigo com um movimento circular. O Vaikeano começou a cair, mas Juduo já havia se erguido, usando a força das próprias pernas como mola. Seu joelho encontrou o plexo solar do oponente no momento exato em que a gravidade puxava o corpo para baixo.
A física do impacto foi devastadora. O Vaikeano cuspiu sangue azulado misturado com fragmentos de gelo — seus órgãos internos parcialmente congelados pelo trauma. Seu corpo foi arremessado para trás, deslizando perigosamente perto da borda da ponte.
O primeiro, com a mandíbula deslocada pendendo em ângulo grotesco, tentou um ataque desesperado. Mesmo ferido, movia-se com a ferocidade de um predador encurralado. Juduo girou sobre o calcanhar direito, o movimento tão preciso que deixou uma marca circular na pedra. Agarrou o braço estendido do atacante e, num movimento que parecia mais dança que combate, usou a força do próprio Vaikeano contra ele.
Era o princípio da água — não resistir, mas redirecionar. O corpo massivo do guerreiro do gelo foi arremessado contra um dos pilares da ponte. O crânio encontrou a obsidiana com som úmido de melão maduro se partindo. Teias de rachadura se espalharam pela pedra negra.
Mas os Vaikeanos eram filhos do inverno eterno. A dor era uma velha companheira, a morte uma amante rejeitada. Ambos se levantaram, cambaleantes mas ainda letais. Sangue azulado escorria de ferimentos que matariam humanos três vezes. Eles se entreolharam — comunicação silenciosa de guerreiros que lutaram juntos por décadas.
Avançaram em sincronia perfeita. Um alto, mirando a cabeça. Outro baixo, visando as pernas. A corrente com pontas de gelo girava criando uma barreira mortal. Era um ataque coordenado, refinado em centenas de batalhas.
Juduo sorriu — um sorriso que não alcançava os olhos brancos perlados.
— Agora sim está interessante.
No momento em que eles atacaram, Juduo fez o impensável. Saltou, não para trás em defesa, mas direto para cima. Suas mãos encontraram uma das correntes ornamentais que decoravam a ponte — relíquias da construção original, quando a travessia era protegida por mais que pedra e magia.
Usando-a como pivô, girou o corpo horizontalmente. A física do movimento era impossível para humanos, improvável mesmo para vampiros. Mas Juduo há muito transcendera categorias simples. Seus pés, calçados em botas reforçadas com placas de aço, atingiram ambos os rostos em sucessão rápida. O primeiro golpe quebrou o nariz já ferido do Vaikeano mais alto. O segundo estilhaçou os dentes da frente do portador da corrente.
Soltou-se da corrente, executando uma pirueta no ar antes de pousar entre eles com a graça de um gato. Os Vaikeanos, atordoados mas não derrotados, tentaram se virar.
Tarde demais.
As mãos de Juduo moveram-se em padrões precisos — não golpes brutais, mas toques quase gentis em pontos específicos. Era uma arte antiga, anterior ao Império, anterior mesmo aos primeiros vampiros. Conhecimento roubado de monastérios perdidos nas montanhas além do mundo conhecido.
Nuca — interrompendo o fluxo de comandos do cérebro. Rim esquerdo — colapsando o sistema de filtragem de toxinas. Nervo atrás do joelho — paralisando a perna instantaneamente. Garganta — não um soco, mas pressão aplicada em três pontos simultâneos.
Cada toque parecia suave como a carícia de um amante, mas os efeitos eram devastadores. O sistema nervoso dos Vaikeanos entrou em colapso cascateado. Um caiu de joelhos, convulsionando enquanto o corpo tentava processar comandos contraditórios. O outro tentou gritar, mas apenas gorgolejos escaparam da traqueia colapsada — não quebrada, mas temporariamente paralisada.
Em menos de trinta segundos, dois guerreiros Vaikeanos — cada um capaz de massacrar um esquadrão inteiro de soldados comuns — jaziam quebrados no mármore da ponte.
Juduo ajoelhou-se ao lado do que ainda estava consciente, observando com curiosidade clínica enquanto o guerreiro tentava desesperadamente fazer os pulmões funcionarem.
— Sabe qual seu erro? — perguntou suavemente. — Vocês confiam demais na força. No gelo. Na fúria. — Tocou levemente a testa do Vaikeano. — Mas o corpo, não importa quão forte, ainda obedece a regras. E eu passei oitenta anos aprendendo cada uma delas.
Levantou-se, calmamente vestindo seu manto novamente. Nem uma gota de suor manchava sua testa. A respiração estava tão calma quanto se tivesse acabado de dar um passeio matinal.
— A lua imperial tem suas vantagens — disse, retornando para onde Smael se apoiava, os olhos arregalados de admiração e talvez um pouco de medo. — Fortalece aqueles que nasceram sob sua luz. E eu, meu jovem amigo, nasci na noite mais escura do ano mais sombrio que o Império já viu.
Ofereceu o braço para Smael se apoiar.
— Vamos. Você precisa de cuidados médicos e descanso. Deixe que a guarda limpe... isto.
Enquanto se afastavam dos corpos — um ainda convulsionando fracamente, o outro imóvel exceto pelo ocasional espasmo — Smael encontrou voz para perguntar:
— Como... como você fez aquilo? Eles eram guerreiros Vaikeanos. Cada um vale dez dos nossos em combate direto.
Juduo considerou a pergunta enquanto guiava o Messor ferido.
— Força é apenas uma variável na equação da vitória. Conhecimento, precisão, timing... estas são as constantes. — Pausou, olhando para trás onde os corpos começavam a atrair corvos curiosos. — Além disso, eu tive um excelente professor.
— Quem?
Por um momento, algo sombrio passou pelos olhos brancos de Juduo.
— Alguém que o Imperador está prestes a chamar de volta. Alguém que faz o que acabei de fazer parecer uma dança infantil.
Smael sentiu um arrepio que nada tinha a ver com o vento gelado. Enquanto isso, ao longe, um corvo grasnava, cortando a noite com um pergaminho negro em suas garras. A Ordem Real Absoluta voava para além das fronteiras conhecidas, procurando aquele que jurara nunca mais servir.
Nas profundezas do abismo sob a ponte, os mortos realmente observavam. E, se alguém pudesse ouvi-los, perceberia que não aplaudiam.
Eles rezavam.
O equilíbrio do Império pendia agora nas asas de um pássaro e na resposta de uma fera que aprendera a dormir com os olhos abertos.
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