Volume 1
Capítulo 23: Salão da Lua
O sino de emergência ribombou sobre Velaris Noctem como um trovão de guerra. Três badaladas – não quatro, nem duas – e a cidade entendeu: código imperial de cerco.
O incêndio no cais ainda consumia a madeira salgada, tingindo o céu com fumaça negra. Nobres abandonaram taças de prata, carregadores jogaram caixas ao mar, prostitutas desceram pelos telhados, e até os gatos se encolheram nas sombras. A cidade, viva e consciente, entendeu que a noite girara de eixo.
Smael Karlai, cabelos negros colados de sangue, corpo em brasas por dentro e por fora, arrastou os últimos passos até encostar o tenente Rash sobre uma pilha de cordas chamuscadas. O corpo exalava morte recente — convincente, mas definitiva.
O fogo atrás dele crescia, lambendo as pranchas, como se quisesse proteger a encenação.
Um guarda juvenil, ainda com espinhas na testa, correu até ele, cota de malha chacoalhando no peito.
— Messor Karlai! Tentativa de assassinato contra o Imperador… O Salão da Lua foi convocado!
Smael não respondeu. Apenas olhou, além do incêndio, para o Sereia Velada que partia no nevoeiro. As velas recolhidas e o casco escuro deslizavam com precisão. No tombadilho, Icarus fitava-o uma última vez. Nenhum aceno, nenhuma lágrima. Apenas um reconhecimento silencioso: nós sobrevivemos — por agora.
Smael sussurrou:
— Boa sorte, Ikki.
Sacou da bainha a Frey, sua espada de fio negro, e cortou o estandarte em chamas pendurado no guindaste. O fogo, como se entendesse a ordem, cessou na direção do corte. Um gesto simbólico — e talvez mágico. Montou no primeiro cavalo que não tivesse fugido e mergulhou na Estrada de Mármore Negro, a avenida ancestral que conectava o Porto de Velaris à cidadela imperial.
O cavalo galopava contra a aurora ainda ausente, açoitando os cascos no mármore como um tambor de guerra. Dois, três, quatro cavalos caíram no caminho, incapazes de acompanhar a urgência. O quinto, um garanhão preto chamado Certeiro, resistiu graças a um frasco de sangue puro que Smael despejou-lhe nas narinas. Sangue de vampiro alimenta monstros e montarias.
Quando os portões de Noctus surgiram por entre a neblina da madrugada, estandartes roxos tremulavam em cada torre. A emergência nacional estava decretada — e a cidadela inteira parecia conter o fôlego.
À entrada, Nortúmbrius aguardava, couraça negra com detalhes rubros, olhos famintos por respostas. O vampiro veterano, capitão da guarda interna , encarou a chegada de Smael.
— Karlai, sem protocolo. O Salão já se reuniu. Portos lacrados. Nenhuma entrada autorizada.
— Exceto a minha — rosnou Smael, desmontando com sangue escorrendo pelas costas.
Nortúmbrius fez menção de responder, mas engoliu a frase.
Quando Smael entrou no palácio de alabastro, o cheiro de incenso não vencia o rastro de sangue fresco que exalava dos corredores. Mas o pior estava à frente.
A aurora não rompia em Noctus; ela apenas cedia terreno à escuridão menos densa. O céu púrpura cobria a cúpula imperial como uma cortina de veludo molhado, e dentro da sala do Conselho, o silêncio era denso o bastante para ser cortado a fio. O Imperador Cassius, envolto em mantos cinzentos manchados de sangue seco, mantinha-se em pé diante do semicírculo de cadeiras — os Messores à esquerda, os Senadores à direita.
Seus olhos estavam fundos, as bochechas marcadas por veias que pulsavam lentamente. O ferimento no abdômen ainda não fechara por completo. Krista Kalivez havia implorado para que repousasse, mas Cassius recusara. O trono não era para os vivos — era para os que suportavam.
A porta se abriu com um ranger contido.
Smael Karlai entrou.
Vestia o manto negro dos Messores, rasgado no ombro e com o sangue seco tingindo as bordas. O cabelo encharcado pingava discretamente no mármore branco. Caminhou até o centro da sala sem uma palavra, os olhos baixos. Um dos guardas apoiou-lhe uma das muletas, que ele recusou com um aceno de cabeça.
Cassius inclinou-se.
— Relate.
Smael ergueu os olhos. — Rash me atacou. Disse que queria a glória pela missão. Mas falhou.
Um murmúrio ecoou entre os Senadores.
Morthem franziu o cenho. — O tenente Rash? Um herói de guerra?
— Um herói é só um vilão com a sorte de morrer cedo — sussurrou Smael. — Ele me feriu, tentou matar Icarus. Disse que a fama de capturá-lo fortaleceria sua posição.
Berion se inclinou. — E o corpo?
O pano prateado reluzia sob a luz fraca do salão. Quando o tecido foi puxado, alguns Messores baixaram os olhos. Outros, como Plastissax, fecharam as pálpebras em sinal de luto silencioso.
À mão de Rash estava ali.
— Uma traição fácil demais — disse Plastissax, com a voz firme. — Rash era inteligente. Demais para deixar rastros tão evidentes.
— Então qual a razão dele se virar contra Smael? — indagou Lysa, sarcástica. — O mesmo Smael que era o irmão do fugitivo?
— Rash já havia servido com honra sob o comando de Hécate — retrucou Plastissax. — Nunca demonstrou ambição política. Isso… não se encaixa.
Todos sabiam. O silêncio que se instalou não era de dúvida — era de medo.
Cassius quebrou a tensão com a voz rouca.
— O Conselho deve saber… que o Primeiro Messor desapareceu. Hécate sumiu há semanas. E é possível que sua ausência tenha encorajado movimentos como o de Rash.
Dessa vez, os murmúrios viraram gritos. Lysa levantou da cadeira. Berion bateu com o punho na mesa circular.
— O senhor está admitindo que Hécate foi neutralizado? — vociferou Morthem.
Cassius se manteve imóvel. — Admito que ele está ausente. Como, por quê, ou por quem… ainda ignoramos.
O ambiente ferveu.
— E mesmo assim decide suspender a caçada ao bastardo? — bradou Lysa.
Foi quando Cassius deu um passo à frente, as vestes se abrindo o suficiente para deixar à mostra a bandagem manchada no ventre.
— Um vaikeano atravessou os corredores da ala real e me feriu no próprio aposento. Rash está morto. Hécate sumido. Se os senhores estão mais preocupados com um híbrido ferido e uma herança de sangue do que com o colapso iminente da segurança imperial… então não merecem os assentos que ocupam.
O silêncio caiu como uma sentença.
— O que está dizendo? — perguntou Berion, a voz falhando.
Cassius sorriu. Um sorriso fino. — Estou dizendo que a prioridade agora é encontrar quem abriu os portões para o gelo entrar.
Um mapa foi projetado por Krista no véu translúcido de névoa acima da mesa. Um ponto brilhou: As Fronteiras Glaciais de Norhkaar, onde se escondem as tribos dos Vaikes. Reunidos sob um único nome, eles são descendentes das linhagens do gelo, nômades ancestrais que renunciaram à luz e ao som para cultuar os deuses esquecidos da aurora negra. Cada clã traz marcas de suas tempestades. Seus corpos são mais densos. Suas peles, azuladas como geada sobre prata. Onde os humanos sangram, os Vaikes congelam e seguem.
Plastissax ergueu o queixo. — Se eles decidiram agir, é porque sabem que Hécate não retornará tão cedo. E isso… muda o jogo.
Cassius passou os olhos sobre todos. — A caçada a Icarus está suspensa. Temporariamente. Não por clemência. Mas por inteligência.
Morthem levantou-se. — O Senado jamais aceitará isso.
Cassius caminhou até ele. Com a voz baixa:
— O Senado serve ao Império. Não o contrário.
A tensão partiu como um fio esticado demais. Seraphine, mesmo ela, permaneceu em silêncio — os olhos fixos na mão de Rash.
Cassius recuou. — Esta reunião terminou.
Os Messores se levantaram e se curvaram com precisão. Os Senadores hesitaram, um ou outro bufando ou resmungando, mas foram se retirando.
Quando restaram apenas Krista, Jargal, Plastissax, Juduo e Smael, Cassius assentou-se lentamente no trono. O suor escorria pela têmpora.
— Juduo. Smael. Fiquem.
Os dois se entreolharam. O restante saiu, sem palavra.
Cassius esperou o silêncio tomar forma antes de falar.
— O ataque do vaikeano em meus aposentos não foi um acidente. Alguém o colocou dentro do palácio. Alguém… que ainda anda pelos corredores.
Smael respirou fundo.
— Quer que encontremos o traidor?
— Quero que silenciem os ratos. — O Imperador os fitou com pesar. — E se encontrarem mais dessas criaturas, matem sem hesitar. Um invasor é um erro. Quatro é infiltração.
Cassius tossiu sangue na palma, discretamente.
Juduo curvou-se. — E se o traidor for… um dos nossos?
— Então cuidem para que ninguém descubra. Até que seja necessário.
Quando os dois saíram pelas colunas externas do palácio, a noite já beijava os pátios.
Não trocaram palavra. Smael ainda mancava, a ferida puxando-lhe a respiração. Juduo observava as sombras com olhos de serpente. Quando chegaram à escadaria dos salgueiros, foi ali que as tochas morreram — uma, depois outra.
Um som cortou o ar. Não um passo. Um corte.
— Abaixem-se! — rosnou Juduo.
Quatro silhuetas vestidas de negro surgiram das colunas — encapuzados, armas curvas, movimentos quase sem som.
O primeiro veio direto em Smael. Ele reagiu no limite: desviou e cravou o punho na mandíbula do inimigo, mas a dor da ferida o fez ceder. Outro golpe veio de trás, rasgando sua ombreira.
Juduo sacou duas adagas e mergulhou na escuridão como um espectro de prata. Uma lâmina atravessou a garganta de um atacante antes que ele piscasse. Smael recuperou o equilíbrio e girou com a perna boa, acertando o joelho do segundo inimigo.
Mas os outros dois já cercavam.
— Eles sabem onde atacar — rosnou Smael.
Juduo recuou, os olhos faiscando. — São caçadores.
O último homem puxou o capuz. O rosto era azulado, os olhos completamente brancos.
E sorria.
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