Volume 1: O Caminhar
Capítulo 8: Dura Realidade
Os passos de Smael ecoavam pelos corredores do Palácio Sombrio. A situação de Icarus não era apenas uma questão de justiça, mas de sobrevivência em um jogo político sujo. Ao chegar à porta ornamentada, ele bateu duas vezes, sua mente fervilhando de perguntas sem respostas.
A voz suave de Krista veio do outro lado:
— Entre, Smael.
Ao adentrar o quarto, o calor da lareira envolveu Smael como uma bofetada, contrastando com o frio que parecia crescer dentro dele. Krista estava sentada ao lado do fogo, os olhos vermelhos e penetrantes observando-o com calma.
— O que o traz aqui, jovem Messor? — perguntou ela, a voz gentil, mas sem rodeios.
Ele atravessou a sala em passos largos, parando abruptamente diante dela.
— Eu já sei que Icarus está sendo mantido preso porque é um híbrido, mas o que não entendo é porque isso é uma ameaça tão grande para o Conselho. Por que eles prenderam Icarus logo após o desaparecimento do nosso pai? Ele é apenas uma criança!
Krista pousou o livro que estava segurando em seu colo e suspirou profundamente.
— Smael, você precisa entender que essa situação vai além de Icarus ser apenas um híbrido. — Ela fez uma pausa, buscando as palavras certas. — A família Karlai é a mais respeitada e influente depois das famílias fundadoras. Vocês são um símbolo de poder e tradição. E é exatamente por isso que Icarus representa uma ameaça tão grande.
— Uma ameaça? — Smael franziu o cenho, a incredulidade estampada em seu rosto. — Como um garoto pode ser uma ameaça ao Império?
Krista inclinou-se para frente, o brilho da lareira refletindo em seus olhos.
— A existência de um híbrido na família Karlai abala a base de tudo o que a nobreza valoriza. Se Icarus for reconhecido como um herdeiro legítimo, isso coloca em risco a “pureza” das linhagens nobres. — Ela fez uma pausa, deixando as palavras penetrarem. — Alguns dos Messors e nobres veem isso como um golpe na legitimidade das famílias vampíricas. Para eles, permitir que um híbrido continue a linhagem Karlai seria como trair séculos de tradição.
Smael sentiu o peso das palavras dela. Não era apenas sobre Icarus ser um híbrido. Era sobre poder, controle e o medo de perder o status.
— Então estão usando meu irmão como um peão nesse jogo político? — murmurou ele, a raiva crescendo em seu peito. — E o Imperador? Ele não vê o que estão tentando fazer?
Krista desviou o olhar para o fogo, sua expressão ficando sombria.
— O Imperador está preso entre a lealdade a Hécate e a pressão do Conselho. Muitos nobres já sussurram que ele está sendo "brando demais" ao tolerar a existência de um híbrido na família Karlai. Eles querem forçá-lo a tomar uma posição que preserve a pureza vampírica, e estão usando Icarus como a peça central desse jogo.
Smael passou a mão pelos cabelos, tentando processar tudo.
— Então, o que eu posso fazer? — perguntou ele, quase desesperado. — Como posso proteger meu irmão se todo o Conselho está contra ele?
Krista o observou em silêncio por um momento, como se ponderasse até onde poderia confiar nele. Então, inclinou-se para frente, a voz baixando para um tom quase conspiratório.
— Smael, se você realmente quer salvar Icarus... terá que procurar por Zalameu Karlai.
O nome caiu como um raio sobre Smael. Seus olhos se arregalaram de incredulidade.
— Meu avô...? — Ele mal conseguia acreditar. — Você está sugerindo que eu procure Zalameu? Ele nos despreza! Nunca se importou com nossa família... com Icarus ou comigo!
Krista assentiu lentamente, os olhos sérios.
— Sim, Zalameu é uma figura temida e evitada, até pelos seus aliados. Mas ele ainda tem uma influência considerável no Conselho, mais do que você pode imaginar, Hécate pode ter sido o pilar que manteve o Império unido nos últimos anos, mas foi Zalameu quem uniu esse império ao lado do antigo Imperador. Ele era conhecido como o Ceifador por um motivo... ele foi o responsável por subjugar as províncias rebeldes e garantir a ascensão do Império.
Smael sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir o apelido do avô. Zalameu Karlai sempre fora uma presença distante, uma sombra aterrorizante que pairava sobre a família, um homem conhecido por sua brutalidade.
— Ele sempre nos evitou, parecia ter repulsa de mim e de Icarus. Por que ele ajudaria agora?
Krista levantou-se da cadeira, aproximando-se de Smael. Ela colocou uma mão leve em seu ombro, seus olhos fixos nos dele.
— Porque, apesar de tudo, ele ainda valoriza o nome Karlai. Se há alguém que pode influenciar o Conselho e impedir que Icarus seja executado, é Zalameu. — Ela fez uma pausa, olhando profundamente nos olhos de Smael.
Smael sentiu o peso da responsabilidade esmagá-lo. Não se tratava apenas de salvar Icarus, mas de enfrentar o homem que sempre o desprezou.
— Então, você está me dizendo que minha única chance é convencer o homem que mais nos odiou a nos ajudar...
Krista assentiu.
— Exatamente. Será uma jornada perigosa, mas se alguém pode mudar o destino de Icarus, é Zalameu. Ele ainda tem aliados secretos no Conselho, e o respeito que ele impõe é uma arma que você pode usar... se conseguir sobreviver a ele.
Smael respirou fundo, tentando reunir sua coragem.
— Se esse é o único jeito, vou encontrá-lo.
Krista observou enquanto ele se dirigia à porta, um brilho de preocupação em seus olhos.
— Cuidado, Smael. Conhecer Zalameu pode ser tão perigoso quanto enfrentar seus inimigos. E lembre-se... ele pode ser o Ceifador, mas não é mais o homem que era.
Smael lançou um último olhar por sobre o ombro, sua expressão endurecida.
— Eu nunca hesitei em enfrentar monstros, Krista. E não vai ser agora que vou recuar.
Nas profundezas úmidas das masmorras. O silêncio era interrompido apenas pelo gotejar constante de água e pelo som de seus passos cautelosos.
— Por aqui — sussurrou Lucan, apontando para uma passagem lateral.
Icarus hesitou.
— Mas a saída é pelo outro lado. A escada em espiral leva ao andar superior.
Lucan balançou a cabeça.
— Não podemos voltar por onde viemos. Haverá guardas nos esperando. Precisamos encontrar outra rota.
Enquanto discutiam, um dos cinco prisioneiros em uma cela próxima estendeu a mão magra entre as barras enferrujadas.
— Ei, jovens! — chamou o homem, a voz fraca, mas urgente. — Conheço um caminho para fora daqui. Posso mostrar a vocês.
Icarus virou-se, olhando para o prisioneiro. O homem tinha olhos fundos, a pele pálida e os lábios rachados. Havia um brilho de esperança em seu olhar.
— Você sabe uma saída? — perguntou Icarus, dando um passo na direção da cela.
— Sim, sim! — confirmou o prisioneiro, esticando a mão ainda mais. — Me tire daqui, e mostrarei o caminho.
Icarus pegou o molho de chaves que havia recuperado do guarda.
— Talvez ele possa nos ajudar — disse, começando a procurar a chave certa.
Lucan observava a cena com atenção.
— Icarus, espere.
— O que foi? Se ele sabe uma saída, devemos ajudá-lo.
Antes que pudesse girar a chave, Lucan moveu-se com rapidez surpreendente, agarrando a gola de Icarus e puxando-o para trás. No mesmo instante, o prisioneiro lançou-se contra as barras, os dedos esqueléticos agarrando o ar onde Icarus estava momentos antes. Um sorriso doentio distorcia seu rosto.
— O que está fazendo? — exclamou Icarus, chocado e confuso.
O prisioneiro começou a rir, um som agourento que ecoou pelos corredores sombrios.
— Tolos! Deveriam ter me deixado ajudar. Agora, nenhum de vocês sairá vivo.
Icarus sentiu um calafrio percorrer sua espinha.
— Por quê? Por que ele tentou me atacar?
Lucan lançou um olhar sombrio às outras celas, onde sombras deformadas se agitavam como espectros perdidos. Ele apontou com um gesto brusco para os prisioneiros, sua voz carregada de uma severidade que Icarus não estava acostumado a ouvir.
— Olhe ao redor, Icarus . Essas pessoas já não são mais... conscientes. O que o Império fez com elas, o que essas paredes testemunharam... Eles foram despedaçados — não apenas fisicamente, mas no que restava de suas almas.
O jovem vampiro virou o olhar para as celas próximas, forçando-se a encarar o horror que Lucan descrevia. O cheiro era nauseante — uma mistura de suor, urina e o fedor de carne apodrecida. Os prisioneiros eram pouco mais do que sombras de si mesmos, como bestas acuadas.
Um homem magro como um esqueleto se balançava incessantemente no chão de sua cela, os olhos arregalados, fixos em algum pesadelo invisível que o devorava de dentro para fora. A pele dele, coberta de hematomas e cortes, era como um pergaminho manchado, rasgado em lugares que nunca mais cicatrizariam. Ele murmurava palavras desconexas, uma mistura de súplicas e gritos de dor reprimidos, seus lábios rachados se movendo numa oração sem esperança.
Do outro lado, uma mulher permanecia imóvel, sentada no canto mais escuro de sua cela. Seu corpo tremia, mesmo em completo silêncio, como se estivesse em constante convulsão. Os olhos dela eram esferas vazias, como se a luz tivesse sido sugada para sempre. As lágrimas que escorriam por seu rosto sujo pareciam sangue misturado à sujeira.
Uma mão magra e ossuda emergiu das trevas de outra cela, dedos retorcidos como garras tentando alcançar Icarus. A pele do prisioneiro estava em carne viva, os dedos sem unhas e ensanguentados. Ele sussurrava em um tom rouco, desesperado.
— Por favor... tire-me daqui... eles arrancaram meus olhos... eu só quero... quero morrer...
Icarus sentiu um frio percorrer sua espinha, o ar ao redor dele parecia ter se tornado mais denso, quase impossível de respirar. Ele virou o rosto, incapaz de suportar a visão por mais um segundo. Mas as imagens já estavam gravadas em sua mente. Era como se as sombras daqueles seres quebrados o agarrassem, puxando-o para um abismo sem fim.
Lucan observou o jovem tentando recompor-se, seus próprios olhos endurecidos pela familiaridade com aquele inferno.
— Eles foram quebrados... como você quebra um cavalo selvagem até que ele só saiba obedecer ou morder. Esses homens e mulheres foram reduzidos a cascas, e a única coisa que os mantém vivos é o ódio... ou a loucura. Se os soltarmos, vão nos trair sem pensar duas vezes, só para tentar escapar deste pesadelo — ou para nos arrastar para ele.
Icarus mal conseguia processar o que via. O mundo sombrio de Nocturna parecia cada vez mais monstruoso. Enquanto suas mãos tremiam levemente, ele voltou seu olhar para Lucan, que observava tudo com uma serenidade fria.
— Isso é... isso é monstruoso... Ninguém merece isso...
Lucan inclinou-se, os olhos brilhando friamente.
— Acredite em mim, garoto, o mundo não se importa com o que é merecido. Aqui, você aprende rápido que a piedade pode ser uma faca que corta sua própria garganta.
Icarus tentou afastar a náusea crescente, mas sabia que nunca mais esqueceria os rostos daqueles prisioneiros.
E enquanto eles se afastavam, ele podia jurar que os sussurros de agonia dos prisioneiros continuavam ecoando, como um lamento espectral que ficaria com ele por muito tempo depois de terem escapado daquele labirinto sombrio.
Relutante, Icarus assentiu, lançando um último olhar de pena aos prisioneiros antes de seguir adiante.