Volume 1: O Caminhar
Capítulo 7: Medo
Icarus fixou o olhar na adaga ao seu lado. A lâmina era simples, mas o brilho fraco da tocha a fazia parecer mais afiada e ameaçadora do que qualquer arma lendária. Ele sentiu o metal frio refletir em seus olhos, um espelho distorcido de sua própria angústia. Ao tocar a adaga com a ponta dos dedos, um pensamento martelou sua mente:
“É assim que termina? Basta um corte e tudo some — a dor, a traição, o vazio que pesa no peito e rouba o ar.”
A ideia de acabar com tudo ali, naquela cela, latejava como um sussurro constante. Seria tão fácil. Um golpe e adeus. Ele não teria mais que sentir o gosto amargo do abandono, nem aquela sensação de ser um intruso no próprio mundo. Sua mão tremia ao pensar nisso. O frio da lâmina contra a pele fazia seu coração disparar. Uma parte dele queria ceder, mas o medo de desaparecer, o medo do que viria depois, o congelava no lugar.
O som de passos e vozes no corredor interrompeu seu turbilhão de pensamentos. Ele se escondeu atrás do joelho, pressionando a adaga contra a coxa para não deixá-la cair. Um guarda surgiu em seu campo de visão, carrancudo, reclamando da perda de tempo causada por Smael ter quebrado o pescoço de Harv. Havia um desdém na voz dele, um cansaço impaciente, e Icarus sentiu cada palavra arranhar a tensão do momento.
Quando o guarda parou diante da cela, Icarus tentou encolher-se ainda mais no canto. O homem o observou com um sorriso doentio, exibindo presas amareladas. O cheiro de suor, álcool e algo apodrecido encheu o ar. Icarus prendeu a respiração; queria desaparecer nas sombras frias das paredes de pedra, mas não havia onde se esconder.
— Olha só quem ainda está aqui, o pequeno herdeiro Karlai — o guarda saboreou as palavras, a voz arrastada, venenosa. — Chegou um pedido até mim, sabe...
Icarus sentiu o estômago revirar. “Um pedido?.”
A fechadura estalou, a porta rangeu. O guarda entrou na cela devagar, prolongando a tensão. O cheiro pestilento de sua respiração envolveu Icarus, quase um manto sufocante. O coração do garoto batia tão forte que parecia querer escapar do peito. Suas mãos suavam, e a adaga escorregava levemente contra a pele. Ele engoliu em seco, a garganta seca como areia.
— Matar crianças não é novidade para mim — o guarda disse com uma calma doentia. — Esmagar ossos pequeninos, calar vozes finas implorando por misericórdia... Nada supera o som de um osso de criança estalando.
Aquelas palavras, ditas com um prazer perverso, arrancaram de Icarus um gemido abafado. Ele queria gritar, pedir ajuda, mas a voz não saía. Só restou um silêncio pesado, como se o ar houvesse sido sugado da cela. Lágrimas subiram, enevoando sua visão. Ele tentou lembrar que era filho de Hécate Karlai, mas sentia-se tão menor que nada. A adaga parecia pesada demais. Por um instante, considerou largá-la, implorar, mas sabia que isso não impediria o horror que se aproximava.
O guarda lambeu os lábios, aproximando a lâmina do rosto de Icarus. O arranhão que a ponta deixou em sua pele provocou uma dor fina e ardida, enquanto o sangue quente deslizava pela face, tornando tudo mais real e terrível.
“Ele vai me matar, vai arrancar meus olhos, meus dedos...” O pensamento rodava na mente de Icarus, girando num turbilhão de pânico. Ele não conseguia respirar direito; cada inspiração era um espasmo de medo. Mas então, outro eco da voz paterna: “Não há honra... apenas quem sobrevive.” Sobreviver. Era isso ou nada.
— Vai chorar, garoto? Vai chamar pelo papai?
O guarda, certo de que Icarus estava paralisado de medo, deu mais um passo à frente, erguendo a lâmina.
Num impulso desesperado, Icarus lançou-se para frente com um grito sufocado. A adaga que Rash lhe dera brilhou por um instante na luz antes de mergulhar profundamente no pescoço do guarda. O som foi horrível — um estalo de carne perfurada, seguido por um gorgolejo úmido.
O guarda arregalou os olhos, o sorriso se deformando em choque. Ele tentou falar, mas apenas sangue borbulhou em seus lábios. Seus dedos se fecharam em torno do braço de Icarus, enquanto a outra mão tentava agarrar o pescoço do garoto, mas já não havia forças.
— Você... maldito... — o guarda tentou, mas a voz se perdeu em um gorgolejo enquanto caía de joelhos.
“Pai, eu... fiz o que precisava.” Ele repetiu essas palavras, tentando acreditar nelas. Por que não se sentia aliviado? A culpa crescia, sufocando qualquer esperança de consolo.
O gosto metálico do sangue ainda queimava em sua boca. Ofegante, ele se forçou a continuar se movendo. Não havia tempo para remorso... não naquele momento. Mas as lágrimas teimavam em vir. Uma criança... era isso que ele ainda era, mesmo depois de atravessar aquela linha.
Os olhos de Icarus se encheram de lágrimas; sua visão embaçou enquanto ele se ajoelhava ao lado do corpo. Nunca imaginara que tirar uma vida seria assim. Não lembrava em nada as histórias de seu pai. Aquilo era real, visceral, horrível.
Ele se arrastou até um canto da cela, as mãos trêmulas cobrindo o rosto manchado de sangue. O gosto metálico ainda pairava na boca, misturado às lágrimas que escorriam. Sentia-se fraco, impotente, como a criança que havia cruzado uma linha sem volta.
— Sobreviver... — sussurrou para si mesmo, a voz frágil. — Só... sobreviver.
Mas ele sabia que, mesmo tendo sobrevivido, algo dentro dele se perdera para sempre.
Então, ouviu um sussurro vindo da cela ao lado.
— Rápido, pegue as chaves dele! — chamou um dos homens na cela dos escravos, as mãos agarrando as barras. — Libere-nos, e podemos ajudar você!
Icarus se obrigou a levantar e sair da cela. Em seguida, virou-se, encontrando o olhar dos prisioneiros. Havia desespero e esperança misturados em seus rostos. Ele hesitou por um momento. Ajudá-los poderia aumentar suas chances de escapar, mas também poderia atrair mais atenção.
Outro homem acrescentou:
— Conhecemos passagens secretas nestas masmorras. Já trabalhamos aqui antes de sermos presos. Podemos guiá-lo para fora.
Icarus respirou fundo, sentindo o peso da decisão. Algo dentro dele dizia para não confiar totalmente neles. Além disso, o tempo era essencial.
Determinando-se a seguir o instinto, Icarus engoliu o medo e se aproximou do guarda caído, as mãos ainda trêmulas. Ele vasculhou as vestes ensanguentadas e encontrou um molho de chaves. Ao lado da cintura do homem morto, uma espada curta repousava, a lâmina refletindo a luz da tocha. Icarus estendeu a mão, mas hesitou. As manchas de sangue no cabo pareciam pulsar, um lembrete do que acabara de fazer. A adaga que ele mesmo usara — ainda suja, pegajosa — pesava na cintura.
Por um instante, só o som distante de vozes sussurrando ecoou pelas paredes da masmorra. Icarus mordeu o lábio, enojado pelo cheiro de ferro e morte. A espada certamente o ajudaria na fuga, mas ele não conseguia se forçar a pegá-la. Não queria que o sangue do guarda o perseguisse a cada movimento de lâmina. Não queria mais nada que lembrasse aquele ato horrível.
Com um tremor no queixo, ele tirou a adaga da cintura e a largou ao lado do corpo sem vida. Recusou-se a carregar aquele peso. Levantou-se, segurando apenas o molho de chaves, o coração apertado e a garganta seca. Desarmado, mas não livre de culpa, decidiu que encontraria outra forma de escapar — uma que não o obrigasse a empunhar mais instrumentos de morte.
Em vez de libertar todos os prisioneiros, Icarus foi diretamente à cela do homem solitário de cabelos negros desgrenhados. Aproximou-se das barras, e o homem ergueu o olhar lentamente. Seus olhos eram de um cinza profundo, marcados por rugas nas extremidades, como se tivessem testemunhado mais do que um homem deveria ver numa única vida. Havia algo nele — uma calma inabalável, uma presença que preenchia o espaço ao redor.
Por um instante, Icarus ficou em silêncio, sentindo uma estranha conexão. Era como se uma energia invisível emanasse do homem, densa e poderosa, semelhante à que sentia na presença de seu pai. Não era exatamente a mesma, mas a intensidade era inegável, como se estivesse diante de alguém que carregara o peso de inúmeras batalhas.
O homem inclinou a cabeça levemente, um sorriso cansado surgindo em seus lábios.
— Bem, garoto, vai ficar me encarando o dia todo ou tem algo em mente? — A voz dele era rouca, mas carregava um tom descontraído, quase bem-humorado, contrastando com o ambiente sombrio da masmorra.
Icarus engoliu em seco, tentando achar as palavras certas.
— Estou fugindo — disse, a voz saindo mais firme do que esperava. — E preciso de ajuda. Não tenho outra opção.
O homem arqueou uma sobrancelha, apoiando-se casualmente na parede da cela.
— E o que o faz pensar que posso ou quero ajudá-lo?
Icarus respirou fundo, sentindo a urgência da situação apertar seu peito.
— Sinceramente, é uma aposta. Você me lembra alguém, e acredito que possa me ajudar.
O homem soltou uma risada baixa, cruzando os braços.
— Uma aposta, hein? Gosto disso. Bem mais interessante do que ficar aqui mofando.
Icarus percebeu que ele não parecia preocupado ou ansioso, apesar das circunstâncias. Havia uma confiança tranquila nele, como se nada pudesse abalar sua calma.
— Então, vai me ajudar? — perguntou Icarus, sentindo uma centelha de esperança.
O homem esticou os braços acima da cabeça, espreguiçando-se como se tivesse acabado de acordar de um longo sono.
— Claro, por que não? Uma boa escapada é exatamente o que eu precisava para animar o dia. Além disso, parece que você poderia usar uma mão amiga.
Antes de abrir a porta, Icarus hesitou por um instante.
— Posso perguntar... o que você fez para estar aqui? — Seus olhos buscaram os do homem. — Só quero entender com quem estou lidando.
O homem deu de ombros, um brilho divertido nos olhos.
— Justo. Sou membro da Ordem da Prata. Fui capturado durante uma missão.
O coração de Icarus quase parou. As histórias sobre a Ordem da Prata surgiram em sua mente.
— Essa ordem... — murmurou, dando um passo para trás.
O homem levantou as mãos em sinal de rendição.
— Ei, calma lá. Não sou do tipo que machuca crianças, especialmente aquelas que me oferecem liberdade. Além disso, as coisas são um pouco mais complicadas do que essas histórias que você deve ter ouvido.
Icarus sentiu-se dividido. Sabia que não tinha muito tempo, e sozinho suas chances eram mínimas. Ele observou o homem novamente, procurando qualquer sinal de ameaça. Mas tudo o que viu foi honestidade despreocupada.
“Se eu estiver errado, vou pagar com a vida. Mas talvez, só talvez, ele seja minha única chance.”
— Certo — disse finalmente, inserindo a chave na fechadura. — Não sei se é a decisão certa, mas não tenho escolha.
A porta se abriu com um rangido, e o homem saiu, esticando os músculos como se estivesse se livrando de anos de tensão.
— Ah, liberdade. Como senti sua falta — comentou, olhando ao redor com um sorriso satisfeito. Em seguida, voltou-se para Icarus. — Meu nome é Lucan, a propósito.
— Icarus.
Lucan deu uma palmadinha amigável no ombro do garoto e então observou o rastro de sangue que escorria da cela de onde Icarus saíra.
— Muito bem, Icarus. Vamos tirar você daqui antes que os guardas notem a pequena bagunça que fez.