Volume 1: O Caminhar

Capítulo 3: O Tribunal da Noite

 

O Tribunal da Noite não era apenas um lugar de julgamento; as sombras pareciam guardar os gritos dos condenados, e o destino dobrava-se às mãos dos poderosos. O salão parecia respirar—as sombras nos cantos sussurravam, carregando as memórias de todos que haviam sido condenados ali. 

No centro, Icarus Karlai estava de pé sob o único feixe de luz que cortava a escuridão, como um holofote sobre um criminoso prestes a ser executado. Ele sentia o peso do momento não só em seu corpo, mas em sua alma. Cada movimento seu parecia ser julgado pelas figuras sombrias diante dele. 

"O Tribunal da Noite... Cresci ouvindo histórias sobre este lugar, sempre como um aviso. Nunca pensei que um dia estaria aqui—e, pior, em cima desse palanque." 

À frente de Icarus, quatro cadeiras imponentes erguiam-se numa bancada, onde os membros do Conselho o observavam. Atrás deles, três estátuas dominavam o cenário. 

Três estátuas erguiam-se atrás do Conselho. Kalista, a Sombra do Império, com suas adagas cruzadas; Wertz, Guardião da Lei, segurando uma balança; e Vigil, a Lâmina da Eternidade, com sua espada cravada no chão. Símbolos de destreza, justiça e força que sustentavam o Império. 

—Eu sou Jargal Ostrus —disse ele, sua voz expandindo-se pelo salão como o eco de uma sentença irrevogável.—Konsule deste tribunal e criador das leis que regem o Império. Hoje, estou aqui para fazer cumprir a justiça. 

Jargal era uma figura imponente. Vestia uma toga branca impecável com detalhes em vermelho e o brasão da família imperial bordado no peito. Seus cabelos negros caíam lisos até os ombros, e seus olhos vermelhos brilhavam com frieza. 

—Ao meu lado está Krista Kalivez—continuou ele, apontando para a mulher à sua esquerda.—Konsule, guardiã da história do Império. Seu dever é preservar cada evento, cada fato e cada momento que moldou nosso povo. 

Krista inclinou levemente a cabeça em saudação, seus olhos vermelhos fixos em Icarus com curiosidade. Ela também vestia uma toga branca com os mesmos detalhes vermelhos e o brasão imperial, mas seus cabelos já estavam grisalhos, contrastando com a juventude de seu olhar. 

—É um prazer conhecê-lo, Icarus—disse ela, com um sorriso gentil. —Tenho grande interesse em histórias únicas como a sua. 

—Os outros dois que se sentam aqui são Messores, escolhidos pelo próprio imperador—continuou Jargal, apontando primeiro para Plastissax. 

Plastissax esboçou um sorriso frio, quase imperceptível. Sua bengala estava posta em cima da bancada à sua frente. 

—Acredito que já nos conhecemos, mas permita-me formalizar—Plastissax Vigil, o Segundo Messor. 

"Então ele faz parte do Tribunal da Noite..." 

—E ao seu lado está Seraphine Makai—Jargal gesticulou para a quarta cadeira. —O Quarto Messor. 

Seraphine inclinou-se levemente para frente, apoiando o queixo na mão. Seus cabelos vermelhos, tão vibrantes quanto sangue fresco, caíam em ondas até os ombros, emoldurando seu rosto de olhos âmbar. Ela usava uma roupa formal vitoriana; o vestido era feito de um tecido escuro e rico, talvez veludo ou cetim, que refletia a luz das chamas com um brilho sutil. 

—Finalmente nos encontramos, Icarus—disse ela, com um sorriso astuto curvando seus lábios.—Parece que você tem sido assunto de muitas conversas ultimamente. 

Seu olhar naquele momento pareceu perfurar os olhos de Icarus, como se estivesse entrando no fundo de sua alma, hipnotizando-o, fazendo-o entrar em um estado de alucinação. 

Icarus sentia-se despido de todas as suas defesas. Pensamentos que ele mal admitia a si mesmo pareciam expostos. 

"O que é essa sensação desconfortável?", pensou, colocando a mão sobre a cabeça. 

A voz de Jargal tornou-se mais grave, tentando retomar a atenção de Icarus. 

— Icarus Karlai, você entende por que foi trazido diante deste tribunal? 

Icarus chacoalhou levemente a cabeça, olhando para o chão, enquanto tentava retomar seus sentidos aos poucos. Finalmente, conseguiu estabilizar a mente e olhar para Jargal. 

Icarus ergueu o olhar, tentando encontrar alguma pista nos olhos frios à sua frente, mas tudo o que viu foi uma máscara de indiferença. — Não, Konsule, eu... não sei. 

Jargal ergueu uma sobrancelha, como se esperasse por mais. Quando nenhuma resposta veio, ele continuou: 

— Vamos começar do princípio. — Ele fez um gesto para Krista, que observava Icarus com uma curiosidade que beirava a compaixão. 

Krista inclinou-se para frente, os dedos cruzados sobre a mesa. — Icarus, preciso perguntar... Seu pai, Hécate, alguma vez mencionou sua mãe? Um retrato, uma história, qualquer lembrança? 

"Por que estão perguntando sobre minha mãe agora?"  

— Não... Ele nunca mencionava ela. Somente uma vez escutei a palavra "Cecilia". Meu pai nunca teve prazer em falar sobre isso, ele era um tanto... reservado. O meu irmão, Smael, também nunca expressou qualquer coisa. 

— Não gosta de mencionar, é?  Ela inclinou-se, os olhos âmbar brilhando com algo perigoso. — Que interessante. Então você cresceu sem saber nada sobre sua própria mãe? 

— Sim... — Icarus respondeu, sua voz quase um sussurro. — Tudo o que sei é o nome dela. 

Krista trocou um olhar rápido com Jargal, que assentiu levemente antes de se voltar para Icarus.  

— E seu irmão? Ele nunca revelou nada? Nem mesmo uma lembrança, um fragmento de quem ela era? 

— Não. Smael dizia que eram ordens do nosso pai. Eu nunca entendi o porquê. 

Seraphine soltou uma risada baixa, o som reverberando pelas paredes de pedra. — Quem diria... até mesmo o grande Hécate tinha segredos familiares. 

O silêncio que se instalou novamente era opressivo. Icarus sentiu as mãos começarem a suar. Seraphine o estudava intensamente, e ele podia sentir cada movimento dos olhos dela vasculhando seus pensamentos mais profundos. 

Então, Krista falou, sua voz quase suave demais para o peso que carregava. 

— Seu pai, Hécate, veio até nós muitos anos atrás, pouco depois que você nasceu.  

Icarus ficou sem entender, olhando ansiosamente para Krista, esperando por sua continuação. 

— Mas, Konsule, o que meu pai poderia ter feito de tão grave para o Tribunal da Noite ter sido convocado?  

Krista olhou para Icarus com compaixão e empatia, sabendo que a criança à sua frente não tinha culpa do deslize de seu pai. 

— Seu pai, Hécate... Ele quebrou as regras do nosso mundo. Apaixonou-se por uma humana. E desse amor impossível, Icarus, você nasceu. 

Aquilo soava como uma verdade que ele sempre temeu. Metade humano? Ele sempre achou que o vazio que sentia era só fraqueza. Agora, parecia ter um nome. Humano. Um insulto. 

“Meu pai… o lendário Hécate… foi capaz de trair as leis do Império… por amor a uma… humana?” 

A palavra “humana” reverberava em sua mente como um insulto. De repente, todas as vezes que sentira ser diferente de seu irmão ou até mesmo dos demais vampiros ganharam um sentido amargo. 

“Metade humano… eu sou essa desgraça?” 

Ele cerrou os dentes, tentando manter a postura — estava, afinal, diante do Tribunal da Noite. Não podia se dar ao luxo de demonstrar fraqueza. Mas o desalento tomou conta de seus olhos. 

Icarus sentia a bile amarga subir pela garganta. Uma sensação de traição latejava no peito, quase tão forte quanto o ódio que agora surgia contra o próprio pai. 

“Por que ninguém me contou? Por que todos me deixaram viver sem saber quem eu realmente era?” 

Sua respiração começou a falhar. Ele fechou os punhos. Sentia o olhar de todos — era como se cada um ali o julgasse por simplesmente existir. De canto de olho, percebeu Seraphine e seu ar de escárnio: para ela, ele devia ser só uma aberração. 

Algo em Icarus quebrou. Uma raiva selvagem tomou conta do seu corpo, fazendo seu sangue ferver. As presas começaram a pontar, e ele sentiu a pulsação latejar com fúria em suas têmporas. 

— Eu não pedi para nascer assim! — A indignação transbordou. — Se ele… se meu pai fez o que fez, por que eu devo ser julgado como um criminoso? 

A voz dele falhou entre a revolta e as lágrimas contidas. Era impossível distinguir se aquilo que brilhava em seus olhos era ódio ou desamparo. Então, ele apertou as mãos contra o peito, como se quisesse conter o coração prestes a explodir. 

— Eu… sou mesmo uma mancha no nome Karlai? — murmurou Icarus, a voz embargada pela mistura de ódio e dor. — Então… por que ele me manteve vivo? Ele deveria ter me matado desde o começo, se minha existência era um ultraje às leis sagradas do Império. 

Então, Plastissax interveio. 

— Por esse crime, Hécate Karlai deveria ter sido condenado à morte, mas... 

Seraphine se inclinou mais para frente, um sorriso perverso se espalhando por seus lábios. 

— Ah, mas Hécate não foi morto, pois, veja bem, ele ameaçou incendiar o Império. Declarou que, se tocassem em um fio de cabelo de seus filhos, ele faria um rio de sangue com os nossos pescoços. — Sua risada fria ecoou pelo salão. — Quem diria, o grande Primeiro Messor, um tolo. 

O sangue de Icarus fervia, seus punhos cerrando-se até os nós dos dedos ficarem brancos. Ele não pôde evitar — seus olhos, até então cheios de medo, se estreitaram, lançando um olhar que parecia uma lâmina diretamente para Seraphine. Por um breve instante, o ar na sala congelou. 

Seraphine perdeu o sorriso. A expressão nos olhos de Icarus incomodou-a de uma forma inesperada, talvez ela se recordasse de algo, alguém ou um instante. O seu semblante se contorceu de ira. Imediatamente, ela deslizou da bancada com a rapidez de uma cobra e, num momento tão veloz que as chamas das tochas trepidaram, suas mãos geladas e ásperas estavam envoltas na garganta de Icarus. 

— Cuidado, garoto — sibilou ela, a voz baixa e venenosa, enquanto apertava com força. — Esse olhar pode te custar a vida. 

Os dedos de Seraphine apertavam como garras de ferro, cada respiração um esforço inútil. O mundo ao redor parecia se dissolver; as estátuas no fundo do tribunal pareciam observá-lo com desdém, enquanto o brilho das tochas se transformava em sombras. Mas seus olhos não desviaram. Ele não podia ceder. Não cederia. 

Plastissax apareceu ao lado dela em uma velocidade que desafiava os ouvidos dos presentes, o som seco de sua bengala golpeando o braço de Seraphine ecoou pelo salão. Ela soltou Icarus, que caiu de joelhos no chão, ofegando, enquanto seus pulmões queimavam em busca de ar. 

Plastissax inclinou-se perigosamente perto de Seraphine, seu rosto a centímetros do dela, a bengala pressionada contra seu ombro. 

— Tire suas mãos do garoto, Seraphine. — Sua voz era fria como aço. — Este é um tribunal, não um matadouro. Se ousar tocar nele novamente, eu cortarei seus braços e os pendurarei como advertência. 

Seraphine riu, um som cruel e agudo que ecoou pelo salão. Ela recuou, esfregando o braço onde fora atingida, como se a dor fosse um mero incômodo. 

— Sempre tão sério, Plastissax... — ela murmurou, os olhos estreitando-se como os de uma predadora irritada. — Você e seus princípios... Um dia, esses seus preciosos códigos vão acabar te matando. 

Jargal golpeou a mesa. O impacto não foi apenas um som, mas uma onda que fez as tochas tremerem e ecoou como um trovão contido. 

— Seraphine, ultrapasse os limites mais uma vez e eu mesmo executarei a sentença. 

Krista levantou-se devagar, os olhos fixos em Seraphine, o rosto outrora sereno agora tão frio quanto pedra esculpida. 

— Controle-se, ou será arrastada para fora deste tribunal. E, desta vez, ninguém intercederá. 

Seraphine inclinou a cabeça, como uma loba diante de uma alcateia que ousava desafiá-la. Mas o brilho de escárnio em seus olhos persistia. 

— Tão sérios... tão frágeis — murmurou, um sorriso curvando seus lábios. Ela olhou novamente para Icarus, a voz resvalando entre zombaria e aviso. — Tome cuidado, garoto. Olhos que desafiam um predador costumam ser arrancados primeiro. 

Icarus tremia, mas não desviou o olhar. Mesmo enquanto o ar ainda queimava em sua garganta, ele sentiu algo despertar em si: um calor furioso, tão instintivo quanto a sobrevivência. Ele se forçou a ficar de pé, as pernas vacilando, mas firmes. 

Seraphine estreitou os olhos, um lampejo de irritação passando por seu rosto antes de se virar e retornar ao seu lugar. 

Plastissax ajustou sua bengala com um estalo seco. 

— O espetáculo terminou. Continuemos, antes que isso se torne um massacre. 



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