Volume 1: O Caminhar
Capítulo 10: O Último Desejo
O som firme e insistente de batidas ecoou na porta dos aposentos do Imperador. Ele ergueu os olhos da pilha de documentos à sua frente, uma expressão cansada tomando conta de seu rosto. O silêncio da madrugada havia sido rompido, e ele sabia que algo incomum estava por vir.
— Entre. — Sua voz reverberou pelo amplo espaço, carregada de autoridade, mas sem pressa.
A porta se abriu com cuidado, revelando um criado de expressão tensa.
— Meu senhor, sinto incomodar a essa hora, mas... o senhor Genji está aqui e deseja vê-lo.
O Imperador franziu as sobrancelhas. Não era todo dia que o Diretor do Banco Imperial surgia sem aviso, ainda mais em horário tão tardio.
— Genji? — Ele repetiu, surpreso, levantando-se da cadeira. — Traga-o até aqui.
O criado fez um gesto rápido, e momentos depois, Genji entrou na sala. Sua figura era peculiar, como sempre. Pequeno e levemente corcunda, ele parecia até mais velho do que o habitual. Seus cabelos brancos caíam em mechas finas, e os olhos vermelhos brilhavam com um misto de cansaço e seriedade. Vestia um terno preto impecável, com um relógio dourado preso ao colete, que ele segurava casualmente na mão enquanto avançava com passos precisos.
— Genji, meu velho amigo. É uma alegria vê-lo, ainda que sua presença seja inesperada. — O Imperador se aproximou, estendendo a mão em um gesto caloroso.
Genji fez uma leve mesura, mas o brilho de humor em seus olhos suavizou a formalidade.
— Se meu corpo não fosse tão velho e frágil, Majestade, talvez eu até tentasse me ajoelhar — brincou, sua voz grave carregada de um respeito genuíno.
O Imperador riu, cruzando os braços.
— Ainda bem que não tentou. Teríamos que chamá-lo de volta para o chão.
Os dois compartilharam um momento breve de camaradagem, mas a seriedade logo voltou a dominar o ambiente.
— O que traz o Diretor do Banco Imperial até mim a essa hora? — perguntou o Imperador, voltando à sua postura reservada.
Genji suspirou, apertando o relógio de bolso por um instante antes de guardá-lo.
— Meu senhor, há alguns meses, Hécate me confiou algo... — Ele parou, como se escolhesse as palavras com cautela. — Chegou no banco, junto de um testamento, uma caixa, que deveria ser entregue a você no caso de sua morte.
O silêncio na sala ficou quase palpável.
— O Conselho... me informou de sua partida, e mantive esse segredo como exigido. Mas agora, é hora de cumprir minha obrigação.
Ele retirou a caixa de um compartimento oculto em sua vestimenta. Era simples, feita de madeira escura com o brasão imperial gravado no topo, mas o pequeno cadeado no centro não tinha fechadura visível.
O Imperador estendeu as mãos para receber o objeto.
— Obrigado, Genji. Por sua discrição e lealdade. — Sua voz saiu firme, mas mais baixa. Ele segurou a caixa com ambas as mãos, como se contivesse algo infinitamente mais valioso do que sua aparência sugeria.
— Com sua licença, meu senhor. — E então, silenciosamente, deixou a sala.
O Imperador permaneceu imóvel por alguns instantes, estudando a caixa. Era como se o objeto emanasse um peso físico, representando anos de amizade, lealdade e sacrifício.
— Ainda acordado, meu amor? — A voz suave de sua esposa o fez virar a cabeça.
Ela estava na porta, com um robe de seda escura, o cabelo raspado brilhando sob a luz do luar. Seus olhos cor de âmbar refletiam preocupação enquanto ela se aproximava, pisando descalça pelo chão frio.
Ele forçou um sorriso, gesticulando para a caixa.
— Genji veio me ver.
Ela parou ao seu lado, dando uma leve olhada na caixa que ele segurava.
— Fazia tempo que não o via assim. Prefere ficar sozinho?
O Imperador ergueu uma sobrancelha, surpreso.
— Você sempre percebe tudo, não é?
Ela sorriu, um sorriso pequeno e caloroso.
— É bom que saiba disso, para lembrar que, se um dia tiver uma amante, eu saberei.
Ele riu baixinho, puxando-a pela cintura com a mão esquerda enquanto a outra repousava em seu rosto.
— Se meu coração um dia ousou sonhar, tenho certeza de que foi seu sorriso que ele viu.
Ela o beijou suavemente antes de dar dois passos para trás.
— Ele era mais que um Messor para você, não era?
O Imperador desviou os olhos para a caixa, como se a simples presença dela fosse o suficiente para fazê-lo refletir.
— Para mim, ele nunca foi um Messor.
Ela deu um leve sorriso, passou a mão em seu ombro.
— Vou dormir. Se precisar de mim, estarei no quarto.
O Imperador observou enquanto ela desaparecia pela porta, então voltou sua atenção para a caixa. Sentou-se à escrivaninha de madeira escura, a luz da lua iluminando o objeto à sua frente. Seus dedos traçaram o brasão imperial gravado na tampa, uma expressão indiscernível em seu rosto.
Ao inclinar-se para examinar o cadeado, notou algo peculiar. Uma luz roxa suave pulsava no centro. Ele hesitou por um momento antes de pressionar o dedo contra o cadeado. Com um leve estalo, a trava se abriu, liberando a tampa.
— Um selo com meu sangue? — Ele murmurou, um sorriso pequeno e incrédulo nos lábios. — Como você conseguiu isso, seu maldito, Hécate?
Dentro da caixa, dois itens repousavam: um anel de ouro com o brasão imperial e uma carta selada. O anel era inconfundível — o símbolo do protetor oficial do Imperador, uma posição que Hécate ocupou por décadas.
O Imperador colocou o anel ao lado e pegou a carta, rompendo o selo com cuidado. Levantou-se, caminhando até a janela enquanto desdobrava o papel. A luz da lua banhava sua figura enquanto lia:
"Meu caro amigo,
Se você está lendo esta carta, então o inevitável aconteceu, e eu já não estou mais entre os vivos. Sempre soube que este dia chegaria, e mesmo assim, ao escrever estas palavras, sinto que ainda há algo que deveria ter dito, algo que deveria ter feito. Talvez todos nós sintamos isso quando a última página de nossa história é virada.
A verdade é que minha alma sempre esteve pesada, marcada pelo sangue que derramei e pelas escolhas que fiz. Mas há um alívio em saber que o descanso finalmente me alcançou. Só me pergunto se esse descanso será suficiente para lavar as manchas do passado. Gostaria de acreditar que agora poderei ver Cecilia outra vez, ao menos uma vez, ainda que uma alma como a minha não mereça pisar o mesmo solo que ela.
Lembro-me do dia em que nossos destinos se cruzaram pela primeira vez. Zalameu me levou a um baile e apontou para você, dizendo que aquele seria o menino a quem eu deveria devotar minha vida. Confesso, à época, achei que ele estava louco. Mas então nossos olhos se encontraram, e percebi o quão errado estava. Vi algo em você, algo raro: não apenas poder ou nobreza, mas uma centelha de grandeza e bondade que justificava cada sacrifício que fiz desde então.
Servi a você como Messor, como conselheiro, como amigo. E em todos esses papéis, foi uma honra inigualável caminhar ao seu lado. Se pudesse viver tudo novamente, o faria sem hesitação, mesmo sabendo de todos os erros e perdas que carreguei no caminho. Talvez, se o tempo fosse mais generoso, eu teria desafiado você para mais um duelo, só para relembrar como eram os dias em que éramos jovens, antes de tudo se tornar tão... pesado.
Mas agora, com minha partida, resta-me apenas um pedido. Não, um último desejo. Cuide do meu tesouro. Smael e Icarus são tudo que de fato importava a mim. Eu fui um pai ausente, negligente. Eu sei disso. Mas não deixe que minha ausência apague o amor que tive por eles. Era o mesmo amor que senti por Cecilia, profundo e eterno, embora nunca tenha sido demonstrado da maneira que mereciam.
Agora, não me resta mais nada a dizer além de um adeus. Não um adeus amargo, mas um que carrega a paz de saber que deixo este império nas mãos de alguém como você.
Com gratidão, respeito e uma amizade que nunca morrerá,
Hécate Karlai."
O Imperador baixou o papel lentamente, um leve vento passando pela janela aberta e tocando seu ombro. Ele se permitiu fechar os olhos por um instante, absorvendo o que lera. Assim, uma memória de Hécate surgiu em sua mente
"Você nunca entenderá completamente o peso de uma coroa, meu amigo. Ela te dá poder, mas leva sua alma. Um dia, terá que escolher entre o homem que você é e o trono que carrega."
Um som forte e urgente na porta o tirou de seus pensamentos.
— Entre.
Um guarda entrou apressado, a armadura tilintando.
— Meu senhor, temos um problema. Dois prisioneiros escaparam da masmorra.