Volume 1: O Caminhar

Capítulo 1: Início de um Pesadelo

Uma brisa fria serpenteava pelo vazio, seus dedos gélidos arranhando a pele de Icarus enquanto ele permanecia suspenso em um mar de sombras. O mundo ao seu redor era uma escuridão, estendendo-se para o infinito, onde até mesmo o eco de seu próprio coração parecia ser devorado pelo vazio. 

Então, como um suspiro carregado pelo vento, uma voz sussurrou seu nome. Não era uma voz qualquer — era algo antigo, quebrado, como o roçar de folhas secas. A figura diante dele emergiu lentamente, seus contornos indistintos oscilando, como se fosse feita da própria noite. 

Icarus quis gritar, mas a escuridão parecia roubar o ar de seus pulmões. Tudo o que conseguiu foi um sussurro rouco: 

— Quem... quem é você? 

A resposta não veio em palavras, mas em um arrepio que desceu por sua espinha. A mão espectral se aproximava, quase tocando sua pele. No instante em que os dedos frios estavam prestes a envolvê-lo, uma explosão de luz o cegou. 

Ele abriu os olhos com um sobressalto. O teto familiar de seu quarto se materializou acima dele. Seu peito subia e descia com respirações curtas e rápidas, o sabor amargo do medo ainda em sua língua. 

"Esses sonhos nunca param." 

Darius estava de pé ao lado de sua cama, com sua expressão sempre serena, mas uma sutil preocupação nos olhos, que evitavam encarar diretamente Icarus. 

— Mestre Icarus, já está na hora de levantar-se — disse Darius em seu tom calmo habitual, inclinando a cabeça em respeito. 

Icarus passou a mão pelo rosto suado, ainda tentando se livrar do sonho. 

— Bom dia, Darius — respondeu ele, tentando soar mais controlado. Observou a postura rígida do servo, que mantinha uma distância respeitosa, apesar de tantos anos de convivência. 

Darius observou Icarus esfregar as têmporas. 

— Pesadelos novamente? 

— Sim... o mesmo de sempre. Uma figura me chama, mas nunca vejo o rosto. 

Darius hesitou por um momento. 

— Sonhos recorrentes... Alguns dizem que são presságios. 

Icarus deu um sorriso de canto. 

— Talvez. Ou só minha mente me pregando peças. 

Icarus levantou-se devagar, sentindo o frio do mármore sob seus pés descalços. Com um movimento lento e deliberado, afastou as pesadas cortinas, permitindo que a luz frágil da lua inundasse o quarto. Do alto daquela janela, ele tinha uma visão privilegiada de Nocturna. 

As torres erguiam-se como dedos tentando tocar as estrelas, e a bruma que pairava sobre as ruas dava à cidade uma vista etérea, como se estivesse suspensa entre dois mundos — o dos vivos e o das sombras. As luzes que dançavam pelas vielas pareciam mais com almas perdidas do que simples chamas. 

Ao levantar os olhos para o céu, notou os morcegos que voavam em padrões graciosos. Suas asas cortavam o ar com um silêncio elegante, e, por um momento, ele os invejou. 

Enquanto Darius se ocupava com as roupas, Icarus dirigiu-se ao espelho antigo próximo à penteadeira. A moldura de ébano estava desbotada pelo tempo, mas o vidro ainda refletia com clareza. Seu reflexo o encarava com olhos verdes profundos, brilhantes como esmeraldas. Cabelos negros caíam desordenados sobre a testa, emoldurando um rosto pálido. 

Icarus vestiu-se em silêncio, colocando as roupas que Darius selecionou: uma camisa escura de tecido leve e um colete ornamentado com detalhes prateados. Ajustou o broche da família Karlai em sua lapela, o dragão negro envolto em uma rosa vermelha. 

— Perfeito como sempre — comentou Darius, dando um passo atrás para admirar o resultado. 

Icarus sorriu. 

— Não conseguiria sem sua ajuda. 

— É muito gentil, senhor. 

Ao sair do quarto, Icarus vasculhou os corredores da residência. As paredes estavam decoradas com retratos de antepassados e histórias da família Karlai. Quando parou diante de uma grande pintura de seu pai, Hécate, seus passos diminuíram. No retrato, Hécate ostentava uma expressão majestosa, olhos vermelhos fixos e intensos, e longos cabelos negros que caíam sobre os ombros. Uma marca intensa atravessava o olho esquerdo. O semblante de Hécate apresentava uma severidade quase inacreditável, como se a vida tivesse esculpido aquele semblante. 

"Meu pai... Será que dá para considerar um? Sempre tão frio, distante..." 

Icarus desviou o olhar, e inspirou fundo, afastando os pensamentos. Ainda podia lembrar, como um filme em sua mente, o olhar de Hécate. Um peso familiar se instalou em seus ombros, mas ele apertou o passo, deixando a pintura para trás como quem tenta escapar de uma sombra. 

Quando finalmente chegou ao salão principal, encontrou seu irmão Smael à cabeceira da mesa, imerso em um livro antigo. 

Icarus se aproximou, apoiando as mãos no encosto de uma cadeira. 

— Ainda tão dedicado à leitura, irmão? 

Smael ergueu o olhar lentamente, seus olhos vermelhos penetrantes fixando-se em Icarus. 

— Tenho que me manter à altura do nome da nossa família. — Fechou o livro com cuidado, empurrando-o para o lado. — E você? Não deveria estar estudando agora? 

Icarus deixou-se cair em uma cadeira, desabotoando o colete com um suspiro. 

— Tenho meus momentos de folga. Ou você já esqueceu como é ter um?  

Um meio sorriso surgiu nos lábios de Smael, enigmático como sempre. 

— Sonhou com o quê, desta vez? 

Icarus parou, a mão ainda no colete, encarando o irmão com surpresa. 

— Como sabe que eu sonhei? 

— Você sempre acorda com essa expressão. — Smael fez um gesto vago com a mão. — Como se estivesse voltando de outro mundo. 

— Apenas... sonhos estranhos. Nada de novo. 

Smael inclinou-se para frente, o olhar afiado. 

— Sonhos nunca são apenas sonhos, Ikki. 

Icarus resmungou ao ouvir o apelido, desviando o olhar. 

— Já disse para não me chamar assim. 

— Claro, claro. — Smael deu de ombros, mas a provocação brilhava em seus olhos. — E então? Como vão seus estudos? 

— Bem o suficiente. — Icarus recostou-se, tentando manter a compostura. 

Smael riu baixo. 

— "Bem o suficiente"? Os professores não param de falar sobre você, sabia? Dizem que é um prodígio. 

— E desde quando você dá ouvidos a rumores? 

— Quando me convém. — Smael inclinou-se novamente. — Já está na idade de treinar combate corpo a corpo. O que acha de deixar eu te ensinar? 

— E qual seria a sua proposta? 

— Treinamento básico. Mãos limpas, só nós dois. O que acha? 

Icarus observou o irmão por um instante, medindo suas intenções. O olhar de Smael, afiado como o fio de uma navalha, não piscava. 

— Certo... por que não? — Um leve sorriso surgiu no canto de seus lábios. — Preciso aprender a me defender. 

Smael inclinou a cabeça, claramente satisfeito. 

— Amanhã, então. Vai ser uma preparação e tanto para sua prova de ingresso no exército. 

Antes que pudessem continuar, um som distinto interrompeu a leve conversa entre os irmãos. Um corvo pousou no parapeito da janela próxima, soltando um grasnado agourento.  

Darius, que acabara de chegar ao salão, parou abruptamente, os olhos fixos na ave.  

— Um corvo... — sussurrou, visivelmente perturbado.  

Icarus virou-se para Darius, uma expressão de surpresa no rosto.  

Antes que Darius pudesse responder, Smael também percebeu a presença do corvo. Sua expressão mudou instantaneamente, a confiança dando lugar a uma seriedade intensa. Ele levantou-se rapidamente da cadeira.  

— O que os cães dele estão fazendo aqui? — murmurou, os olhos fixos na ave.  

O ambiente, antes sereno, tornou-se opressivo num instante. O corvo soltou um grasnado agudo, ecoando como um grito pela sala, antes de alçar voo e desaparecer como uma sombra que se dissipa em um canto escuro.  

Houve um sussurro, baixo e insidioso, como o farfalhar de tecido contra pedra. Icarus girou na direção do som, o coração martelando no peito. Da escuridão, uma figura encapuzada emergiu, seus passos tão leves que pareciam flutuar sobre o mármore. Outros dois surgiram logo atrás, seus mantos negros ocultando tudo, exceto o emblema de um corvo inscrito em prata — os Assassinos do Crepúsculo.  

O ar do salão ficou subitamente mais frio, denso, sufocante. Icarus sentiu cada músculo de seu corpo enrijecer, o tempo desacelerando enquanto seus olhos fixavam-se nos estranhos.  

A figura à frente ergueu uma mão pálida, apontando diretamente para ele.  

— Icarus, filho de Hécate, você foi convocado pelo Tribunal da Noite. Venha conosco imediatamente. 

A voz era fria, sem emoção, ressoando como um eco distante. Icarus sentiu o sangue gelar em suas veias.  

"Mas o que eu fiz?"  

Antes que pudesse responder ou sequer pensar, Smael caminhou até eles. Colocou-se entre Icarus e os intrusos, seus olhos agora brilhando intensamente em um vermelho ameaçador.  

Com um movimento rápido, ele estendeu o braço, a mão aberta, e sussurrou uma única palavra: 
— Frey. 

Seu longo cabelo negro esvoaçou com a súbita corrente de ar que percorreu a sala. Um som profundo reverberou, como um trovão distante, enquanto a espada de Smael, guardada em seus aposentos, cortava o ar, voando diretamente para sua mão. 

No momento em que a empunhou, uma rajada de vento varreu a sala, arrancando os capuzes dos assassinos e revelando seus rostos pálidos e olhos vazios.  

Smael ergueu a espada diante de si, a lâmina refletindo a luz em um brilho ofuscante.  

— Como ousam invadir a casa de um Messor e ameaçar a família Karlai? — Sua voz ecoou pelos quatro cantos da sala. — Vou arrancar suas línguas para que morram em silêncio. E, quando terminarem de sangrar, farei com que seus corpos sejam devorados vivos pelos cães. — Ele parou, inclinando levemente a cabeça. — Expliquem-se agora, ou não restará nem os ossos de vocês para enterrar. 



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