Volume 1: O Caminhar

Prólogo: O Mais Forte

Nocturna, a capital do Império, vivia sob a vigilância da lua cheia, sua luz fria derramando-se sobre torres e ruas estreitas. A cidade era um mosaico de sombras e brilhos distantes, como estrelas confinadas à noite. Aqui, o Palácio Sombrio abrigava em seu núcleo o Tribunal da Noite, envolvido por um silêncio que parecia vivo, preenchendo cada canto. 

O espaço estava repleto de sombras, envolvendo os Messores e Konsules que se sentavam em seus lugares altos. O ar exalava um aroma de cera em chamas e pergaminho desgastado. 

No centro do salão, Hécate Karlai, o Primeiro Messor, permanecia imóvel. Seus olhos rubros fixavam-se naqueles à sua frente, emanando uma intensidade que contrastava com sua postura serena. 

— Hécate Karlai — a voz do Jargal, o Konsule Chefe, ecoou pelo salão —, você entende por que foi convocado aqui? 

Hécate inclinou a cabeça levemente, sem mexer um músculo.  

— Todos aqui sabem o motivo, Jargal. Não vamos desperdiçar o tempo com formalidades vazias. 

O salão mergulhou em um silêncio denso, como se a própria noite tivesse parado para escutar. Jargal manteve-se firme, mas seus dedos tamborilavam no braço de sua cadeira. 

— Você não precisa que eu lhe relembre quem escreveu esta lei, Hécate — disse, enfatizando o termo 'Imperador', como se tentasse trazê-la de volta à razão. — Mas não esperava que fosse você quem a dobrasse em nome de algo tão... humano.

Hécate cerrou os olhos por um instante, o rosto fechado. 

— Não se trata de algo humano. Se há um preço a pagar, sou eu quem deve pagá-lo, não uma criança que mal compreende o crime de sua existência. 

Plastissax, o Segundo Messor, observava em silêncio até então, mas agora inclinou-se levemente, a bengala apoiada firme no chão. 

— Hécate, acredita que este tribunal seja cego às razões do seu coração? — Ele inclinou-se um pouco para frente, a voz firme — O Império é mantido por ordem, não por exceções. O que nos propõe ao desafiar nossas leis tão abertamente? 

Os olhos de Hécate brilharam com intensidade, e sua figura pareceu expandir-se, dominando o espaço ao seu redor. 

— Proponho que entendam que há uma diferença entre desobedecer e proteger. Eu não quebro as leis por capricho; eu as moldo para que meus filhos vivam. 

Krista inclinou-se ligeiramente para frente, seus olhos fixos em Hécate. 

— Hécate, suas palavras carregam peso. Um deslize aqui pode manchar a honra dos Karlai. — Ela fez uma pausa, observando-o com atenção. — Cecília... ela significava muito para você, não é? 

Ele não respondeu de imediato, mas o silêncio trouxe consigo uma dor que nenhum nome poderia carregar sozinho. 

Seraphine, a Quarta Messor, soltou uma risada seca que quebrou o momento. 

—Primeiro você desonrou nosso sangue escolhendo uma humana, e agora arrasta todos nós com sua covardia. 

Hécate desviou o olhar de Krista e fixou-se em Seraphine. Ela sorriu, um sorriso que demonstrava sua personalidade venenosa. Ele sabia que ela não perderia a chance de atacá-lo. 

Num piscar de olhos, Hécate estava diante dela. Sua mão cerrou-se em sua garganta, esmagando o ar de seus pulmões. Seraphine tentou lutar, mas o aperto era brutal, inescapável. 

Seu rosto, normalmente esculpido em uma máscara fria e controlada, agora se contorcia em ódio cru, quase animalesco. 

— Prove minha paciência mais uma vez, Seraphine, e nem mesmo o Imperador impedirá que eu arranque sua língua — disse ele, grave, enquanto seus dedos apertavam ainda mais. 

Os dedos de Hécate eram ferros quentes, cravados na garganta dela. Não era força. Era puro poder, brutal e incontrolável. 

Jargal ergueu a mão em um gesto contido. 

— Hécate... solte-a. — Ele sabia que forçar a mão ali só traria mais destruição. — Enquanto você viver, o destino de Icarus será decidido pelo Imperador. 

Por um longo momento, Hécate manteve o olhar fixo em Seraphine, que agora ofegava, os olhos revelando medo e ódio. Finalmente, ele a soltou, e ela caiu de joelhos, recuperando o fôlego. Mesmo assim, o olhar de desprezo que lançou a Hécate deixava claro que aquilo não seria esquecido. 

Hécate olhou para o todos ali presentes, a raiva ainda queimando em seus olhos. 

— Toquem em um dos meus filhos, e eu os esmago até não restar nada além de carne e ossos estilhaçados. 

O silêncio dominou o salão. Ninguém ousou responder. Hécate saiu, sem olhar para trás, com a capa negra balançando conforme atravessava o corredor sombrio do palácio. 

As portas do Tribunal se fecharam atrás de Hécate, mas o peso do julgamento continuou a persegui-lo até os jardins da mansão Karlai. A lua, silenciosa testemunha, parecia tão distante quanto a solução que ele buscava. 

Ele parou ao ver uma figura — seu amigo de longa data, o Imperador — ao lado da velha árvore ancestral da família. 

De pé, imóvel, seus olhos fixos numa lápide simples entre as raízes torcidas da árvore. O nome “Cecilia” gravado nela. 

Sem se virar, o Imperador falou, passando a mão carinhosamente pela lápide: 

— Quando a conheci, soube que ela ia fisgar seu coração, velho amigo. Você mudou muito, Hécate. 

Hécate permaneceu em silêncio, os olhos fixos na lápide. 

— Quando foi que mudei tanto?... — murmurou ele, quase para si mesmo. 

O Imperador soltou um suspiro, seu semblante refletindo a dor de velhas memórias. 

— Eu te conheci como o mais feroz dos guerreiros. Mas seus olhos... Eles ficaram mais suaves desde que ela apareceu. Ela te deu algo que seu pai te roubou. 

A lembrança de uma noite ao lado da lareira invadiu a mente de Hécate. Ele segurava Icarus, ainda bebê, enquanto Smael brincava ao seu lado, rindo. O calor do fogo parecia tão distante agora. 

— Sabe que não posso abandonar essa criança, não sabe? 

— Acredite, essa decisão pesa sobre mim mais do que você imagina. Enviar você para a guerra é a única maneira de protegê-lo de consequências mais severas. 

A frustração o queimava por dentro, tão feroz que seus dedos quase cavavam feridas na palma das mãos. 

— Você carrega a coroa, meu amigo. Não é para isso que ela serve? Para moldar o que deve ser? 

O Imperador deu um passo à frente, colocando a mão no ombro de Hécate. 

— Você acha que eu não quero ajudá-lo, Hécate? Mas a coroa não permite luxos como amizade. Se eu abrir exceção para você, outros nobres questionarão minha autoridade. Se eu fraquejar, o Império se transformará em um campo de batalha. 

Hécate desviou o olhar, a tensão evidente em seu rosto. 

— Então somos ambos prisioneiros de nossos deveres. 

— Parece que sim. 

O Imperador suspirou e virou-se, desaparecendo nas sombras sem uma palavra final. O vento preencheu o vazio que ele deixou para trás. 

Hécate permaneceu onde estava, seus olhos vazios fitando a lápide. O nome gravado parecia brilhar sob a luz da lua, cada letra fazia seu coração  pulsar mais forte. 

— Cecilia... — murmurou ele, os olhos fixos no nome gravado. Ele se lembrou do som de sua risada, um eco caloroso que antes enchia os jardins onde agora só havia silêncio. Suas mãos, tão acostumadas à violência, desejavam segurar seus cabelos pela última vez. 

Ele levantou a cabeça, como se estivesse evitando que lágrimas caíssem sobre o solo onde sua amada havia sido enterrada. Observando a lua que iluminava feições tão amargas, renovou sua promessa, ainda tentando manter-se forte perante o túmulo. 

— Não precisa se preocupar. Enquanto estiver aqui, ninguém vai tocar em nossos filhos... — sussurrou ele, com os olhos fechados, sentindo as lágrimas queimarem, mas sem permiti-las cair. — Mesmo que isso custe a minha vida. 

A noite, fria e indiferente, envolveu Hécate em sua dor. A velha árvore parecia guardar não só a lápide, mas também o homem quebrado que permanecia de pé apenas pelos filhos que precisava proteger.  



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