Volume 1
Capítulo 29: Sob Vigia
Os emissários permaneceram em Port Strong por mais uma semana, para vigiar a cidade e auxiliar os moradores nos reparos. Havia muito trabalho a ser feito e mesmo não tendo sinais que os caçadores estavam na floresta, os moradores ainda não estavam tranquilos, principalmente os que eram usuários de magia.
Houve um longo debate pela custódia de Ash e dos demais caçadores que haviam sido capturados, eles se recusaram a dar quaisquer informações e Sira queria levar todos para o Clã do Vento para tentar compensar pelo fato de ter deixado Dimitri Poltergeist escapar, porém, chegou a um acordo com Himiko para que metade deles ficassem em Port Strong.
Relatórios foram enviados para o Clã do Vento e a Ordem dos Templários explicando sobre o ocorrido na cidade e sem poderem adiar mais, a princesa contou sobre Castiel para dar tempo às autoridades de absorverem a situação e mostrar que tudo estava sob controle. Apesar de Sira continuar desconfiada sobre o draconiano, ela pode ver ao longo da semana que de fato ele perdeu suas memórias por não agir de forma suspeita e incoerente com as informações dadas por seus amigos.
A princípio, Alastar não deu privacidade alguma ao draconiano, o acompanhando o tempo todo com a imagem de Castiel descontrolado viva em sua mente. Foi apenas por Jasmim que o guarda deu mais espaço para Castiel, ainda que não o deixasse ficar sozinho por muito tempo.
Luther, Jasmim, Lia, Kira e Jinn fizeram seu melhor para esconder de Castiel suas preocupações em relação ao que aconteceria quando eles chegassem ao Clã do Vento, eles trataram Castiel como se ele fosse desde sempre parte do grupo, mesmo assim ele estava ciente que as coisas iriam ficar complicadas para ele e decidiu continuar escondendo de todas sobre a mulher que havia falado com ele.
Ele aguardou por mais instruções da mulher de cabelos vermelhos, mas desde o incidente ela não voltou a falar com ele novamente e embora ele estivesse frustrado e ansioso por uma resposta, Castiel tinha o pressentimento de que ela iria aparecer quando ele precisasse. Ainda culpado por perder o controle, ele passou a maioria do tempo ajudando a consertar a praça que ele havia ajudado a destruir.
Quando chegou o final daquela semana, grande parte da cidade se concentrou no cemitério repleto de flores, retratos e outros objetos. Himiko solicitou a todos que perderam seus entes queridos trouxessem itens dos falecidos e colocassem em suas lápides para que finalmente pudessem fazer um funeral digno para todas as vidas perdidas.
Diante de todos, Himiko se viu pressionada em relação ao que devia dizer para todas aquelas pessoas que estavam ao seu redor, ela olhou para os filhos de Dariss e Zaleria que estavam aos cuidados de Koloman, em seguida para Margery, depois Nádia que estava com Jinn e por último por Luther que estava com seus amigos.
Juntando toda a sua confiança e sensibilidade, Himiko falou:
— Existem muitas coisas que eu gostaria de dizer a todos vocês, nossa cidade sofreu muito e erros foram cometidos que pioraram as coisas. Uma coisa ficou clara para mim durante esses tempos difíceis, devemos tomar cuidado com nossas boas intenções e refletir sobre o preço que estamos dispostos a pagar nesse processo. Gostaria de dizer que as pessoas que morreram se foram por um propósito maior, mas isso seria cuspir nos sentimentos de todos que ficaram.
A nobre se curvou para multidão ao seu redor e continuou:
— Muitos aqui morreram devido às “boas intenções" alheias, por isso eu peço desculpas a todos vocês, também tenho responsabilidade nisso, não me sinto digna de ser a líder desta cidade! Mães, pais, filhos e filhas foram mortos e eu sei bem como é a dor de perder quem amamos, o vazio que isso cria em nós e parte de mim não acredita que eu tenha honrado a memória dos meus familiares com muitas das minhas atitudes durante a crise que enfrentamos.
Entre olhares tristes e confusos da multidão, Margery assim como outros, tentavam entender o que a nobre estava fazendo. Alguns nobres menores viam aquele momento como uma oportunidade de ouro para tomar o poder, afinal eles já planejavam questionar algumas das atitudes de Himiko assim que os emissários se retirassem da cidade.
“O que ela estava fazendo?!”, pensou Luther.
“A senhora Kami, não desistiria assim, isso não faz sentido!”, pensou Margery.
Porém, Himiko levantou seu rosto não com vergonha, mas determinação.
— Mas não acredito que eles gostariam de me ver remoendo o passado! É nosso dever carregar a tocha e seguir adiante por todos os que se foram, carregamos as pessoas que amamos conosco até o dia que os encontremos novamente nos reinos divinos. Continuaremos tentando e celebraremos suas vidas dando o nosso melhor, lembrem-se de seus nomes e de suas vidas com orgulho. Que essas pessoas não sejam nossa fonte de dor, mas sim de nossa força e inspiração!
Muitos choraram emocionados e impressionados com as belas palavras de Himiko, e seguindo o costume todos ficaram em silêncio durante um minuto e depois cantaram uma música élfica antiga que os guerreiros costumavam cantar para seus companheiros perdidos em batalha que com tempo se tornou comum de cantar em funerais élficos.
Durante a canção, Margery discretamente olhou para os nobres menores e notou o descontentamento deles com o rumo do discurso de Himiko.
“Vou precisar conversar com senhora Kami sobre eles, depois de tudo que passamos esses abutres já estão pensando na hierarquia”, pensou Margery.
Ao final do funeral muitos foram agradecer Himiko por seu discurso e Nádia assim que pode abraçou a nobre dizendo:
— Nunca escute esse lado bobo dizendo que você não está honrando eles! Tenho certeza que sua família e minha mãe estão orgulhosos da pessoa que você é!
— Obrigada, Nádia! — falou Himiko abraçando Nádia de volta.
— Foi um excelente discurso, você é boa demais com as palavras.
Himiko levantou seu rosto para ver quem falou com ela e notou a princesa Sira acompanhada de seus amigos.
— Fico lisonjeada por ser elogiada pela senhora, mas confesso que tive ajuda de uma certa pessoa com isso — falou Himiko.
Luther deu um sorriso de canto se lembrando da conversa que os dois tiveram depois da emboscada na prisão e a nobre sorriu também.
— Vocês vão mesmo embora amanhã? Gostaria de fazer algo para agradecer por tudo que fizeram por essa cidade — falou Himiko.
— Você não precisa fazer nada, Himiko — falou Luther.
— A senhora já foi gentil o suficiente em nos deixar ficar na sua mansão e comer de graça durante essa semana — falou Jasmim.
— Gostaria de assegurar a senhora que Port Strong não será esquecida, depois de tudo que aconteceu, não só o Clã Aerius como a Aliança vão ficar de olho nessa cidade. Então se eles retornarem, terão pessoas esperando por eles aqui, mas seja cuidadosa com os abutres ao seu redor — falou Sira.
Margery ficou impressionada com a princesa, mas ao ver que os outros emissários também notaram, ela concluiu que os nobres estavam fazendo um péssimo trabalho em esconder suas intenções de olhos mais atentos como os deles.
“Ela é bem perceptiva, não deveria esperar nada menos de uma Princesa Elemental”, pensou Himiko.
— Obrigada pelo conselho, minha assistente disse o mesmo. Vou dar um jeito de resolver isso quanto antes — disse Himiko.
— Gostei da confiança, espero que as coisas fiquem tranquilas por aqui quando formos embora amanhã! — disse Luther.
— Sendo sincera, não acho que Port Strong vai voltar a ser uma cidade tranquila, pelo menos não se eu puder impedir.
…
Na mansão de Castiel andava pelos corredores com uma bandeja de comida e com Alastar o seguindo. Quando o emissário entendeu para onde o draconiano estava indo, ele disse:
— Você vai lá de novo? Uma hora o Sho vai acabar perdendo a paciência com você e lembre-se que ela é uma prisioneira e não é um dos nossos.
Castiel parou no meio do caminho e encarou Alastar.
— Um dos nossos? — falou Castiel.
— Esses caçadores são assassinos, eles não nos veem como pessoas, para eles somos todos monstros que precisam ser exterminados. Você devia se lembrar bem disso, não consigo nem acreditar que você conseguiu convencer os outros a mantê-la em um quarto separado — falou Alastar.
Embora os olhos azuis de Alastar passassem a maioria do tempo calmos, por um instante o draconiano pode ver uma fagulha de ódio vindo do Emissário de Vento.
Querendo evitar um debate improdutivo, Castiel voltou a caminhar até a entrada para o quarto de Ash onde estava Sho e dois policiais, assim que Sho pôs seus olhos em Castiel, ele disse:
— Eu não consigo entender você, por acaso ficou interessado na prisioneira ou algo assim para ficar vindo aqui diariamente?!
Os dois policiais presentes disfarçaram seus risos, todavia Castiel não esboçou reação alguma e com um suspiro Sho falou:
— Seja breve, já está ficando tarde e como temos uma longa viagem pela frente, é melhor você estar descansado.
— Obrigado pela compreensão — disse Castiel.
No quarto, Ash estava sentada na cama com o olhar distante, seu tornozelo direito estava preso a cama e impossibilitava ela de caminhar pelo espaço livremente pelo ambiente, mas durante a semana toda a caçadora não mostrou nenhuma intenção em fugir.
O homem colocou ao lado da elfa a bandeja e foi só então que ela olhou para Castiel.
— Por que você veio aqui de novo? Eu já não te disse que não vou contar nada? Esse seu truque de bancar o policial bom não vai funcionar comigo, eu fui treinada melhor que isso. Também não vai adiantar me usar de isca, o senhor Poltergeist não irá retornar ou se comprometer pelo meu erro — disse Ash.
— Todo mundo continua me perguntando isso, está ficando irritante. Eu já disse que não estou aqui para convencer você a nada, sinceramente o seu destino não está em minhas mãos e talvez nem mesmo o meu — falou Castiel.
Castiel como de costume se sentou no chão enquanto Ash menos resistente que das outras vezes começou a comer sem cerimônias. No tempo que estava em Port Strong, o draconiano achava divertido como grande parte dos elfos que via eram brutos e menos preocupados com etiqueta.
Ele pensou em mexer com a caçadora como estava fazendo nos outros dias, porém havia outras coisas em sua mente que estavam afetando seu humor negativamente e a caçadora notando isso falou com indiferença:
— É inacreditável, ver você está todo relaxado no mesmo ambiente que a sua inimiga. Não pense que está seguro aqui, só porque está me tratando bem e nem fique fingindo estar preocupado como se estivéssemos no mesmo barco.
O draconiano olhou de canto para a caçadora e disse:
— Podemos ser inimigos aos seus olhos se você quiser, mas quer saber o motivo de eu estar vindo aqui todo o dia?
— Esquece, você não precisa dizer “policial bom” — disse Ash.
— Você não é uma pessoa ruim e estava preocupada comigo mesmo eu sendo seu “inimigo”, de começo achei que fosse um equívoco meu, mas a Jasmim me contou que você contou que eu só havia perdido o controle devido à Emissária de Sangue.
Ash virou seu rosto para que Castiel não notasse o conflito nela. A elfa pensou em seu irmão e em seguida se lembrou do olhar assustado de Castiel durante a batalha contra a Ena.
“Vocês são parecidos até mesmo quando estão assustados, eu odeio isso…”, pensou Ash.
— Só fiz isso porque você me protegeu e não queria ficar devendo uma ao meu inimigo — disse Ash.
— Ainda assim, obrigado por não me ver mais como um monstro — disse Castiel.
“Ele ainda estava pensando nisso que eu disse?!”, pensou Ash.
Ash se manteve em silêncio, Castiel olhou para o teto pensativo e após um tempo ele disse:
— Você disse que não estamos no mesmo barco e de fato isso é o que deve parecer para você que está presa aqui enquanto eu estou andando livre, mas eu não sei se isso vai continuar assim. A Princesa do Vento, os seus guardas e até mesmo a senhora Kami, olham para mim com desconfiança. Eles não me veem como um assassino ou um monstro, porém tenho certeza que me veem como uma ameaça, afinal para eles eu também não deveria existir.
— Era de se esperar, pelo que as histórias dizem, os draconianos foram os primeiros a usar runas mágicas nesse mundo e detém um enorme poder, como você mesmo demonstrou — disse Ash.
— A Kira me disse algo assim, mas eu não lembro de nada disso e sinceramente não sinto nada especial. Tudo que eu quero é descobrir quem eu sou, mas agora vou ter que ir para um lugar onde outras pessoas vão decidir o meu destino e mesmo meus amigos tentando me tranquilizar posso ver que eles também não fazem ideia do que virá a seguir.
Sem saber o que dizer, Ash permaneceu em silêncio e Castiel riu desconfortável com a sua situação.
— Você está tão preocupada com o que vai acontecer a seguir quanto eu, não é? — falou Castiel.
Tomando o silêncio da caçadora como resposta, Castiel se levantou para sair e disse ao pegar a bandeja:
— Nossa situação não é tão diferente quanto pensa Ash.
Assim que Castiel deixou o quarto, Sho disse:
— Não falou nada para ela sobre os seus outros companheiros capturados, não é?
— Porque você pergunta logo o que você quer?! — disse Castiel.
— Calma, Castiel — disse Alastar.
— Você quer que eu fique calmo, então peça para ele parar de ficar me fazendo as mesmas perguntas idiotas uma atrás da outra, se eu não quisesse cooperar ou tivesse más intenções eu já teria agido.
— Então você pensou nisso? — disse Sho.
— Vá se ferrar! Eu não vou trair os meus amigos e só para você lembrar: fui eu que ajudei a defender a cidade! — disse Castiel.
Os dois guardas e os policiais ficaram tensos ao ver os olhos de Castiel ficarem vermelhos, mas não durou muito tempo e ele seguiu pelo corredor com Alastar o acompanhado.
Do lado de dentro quarto, Ash pode ouvir a voz de Castiel ofendendo Sho e pensando em voz alta, ela disse:
— Eu não consigo te entender, mas você está errado, não estamos no mesmo barco…
“Desculpe senhor Poltergeist, eu falhei em cumprir com a minha promessa. Eu não consigo ver usuários de magia como monstros. Continuo querendo impedir que outras pessoas passem pelo que passei e diante da escória eu não vou ter misericórdia, mas não posso mais matar pessoas que não fizeram nada, só porque um dia eles podem fazer. Pude ver no draconiano que eles sofrem que nem qualquer um, na verdade, eu sempre vi, só ignorei”, pensou Ash.
— Você não é um monstro Castiel, você é uma pessoa boa! Eu não. Consciente ou não, eu estava ajudando a matar pessoas inocentes em nome de uma causa maior e por causa disso talvez nunca consiga proteger as pessoas dos verdadeiros monstros que abusam da magia — disse Ash para si mesma.
Novamente o olhar de Ash ficou distante enquanto ela refletia sobre toda a sua trajetória e temia o que estava por vir.