Volume 1
Capítulo 19: Os dois lobos
No instante em que Nádia foi atingida por Freirr a mente de Bogna foi preenchida por lembranças do tempo que as duas passaram juntas na última década. Cada risada, cada discussão e cada momento aleatório passavam em sua mente enquanto ela via sua amiga cair, no pareceu uma eternidade para Bogna, e angustiada ela falou:
— Não, não, não! Desculpa, desculpa… — Bogna correu até o corpo caído de Nádia que sangrava.
— Filha, por favor se…
— Não, eu não vou me acalmar, você matou ela sem nem ao menos explicar o porquê. A mãe dela acabou de morrer e nós a matamos e vamos deixar o corpo dela largado aqui como se não fosse nada! — falou Bogna interrompendo Freirr.
Freirr se abaixou se aproximando de sua filha que tremia e chorava, ela olhou para Nádia sangrando e suspirou liberando toda a tensão que sentia para conseguir manter o seu foco no objetivo.
— Bogna, cheque o pulso dela… — disse Freirr.
— Não! Eu não quero! — disse Bogna.
— Apenas faça o que eu mandei!
Relutante, Nádia seguiu o pedido da mãe, sendo surpreendida pelo fato de que a elfa ainda estava viva. Ela olhou para sua mãe arrependida por supor o pior, enquanto Freirr acariciava o rosto de Nádia.
— Eu nunca mataria a Nádia, não cuspiria na memória de Lauren dessa forma, a minha única amiga de verdade nesse lugar, embora ela não soubesse a verdade sobre o que somos — falou Freirr.
— Não devia ter presumido tal coisa da senhora — falou Bogna.
— Filha, depois de todos esses anos não me irritaria com isso, fui eu que te ensinei a sempre esperar pelo pior. Só lembre que nossos instintos são superiores ao de qualquer um neste mundo. Então o mínimo que eu espero de você é que cheque as informações, caso não tivesse se deixado levar por suas emoções, não precisaria, nem ao menos, checar o pulso dela. Você foi muito bem treinada para distinguir o som de batimentos cardíacos.
Ficando mais calma, Bogna pode escutar os batimentos cardíacos de Nádia, sendo o único ali além das duas. Todos os outros haviam sido mortos com o chão coberto de sangue, assim como o arpão que antes Bogna segurava, porém, deixou cair no chão quando Nádia foi atingida.
— Levanta filha, nós temos que ir antes que os caçadores venham — disse Freirr se levantando e estendendo a mão para a sua filha.
— Eu sei que agora é tarde demais, mas eu gostaria que pudéssemos ficar. Não acreditava nos Emissários de Vento, mas por alguma razão eu agora acho que eles podem conseguir impedir os caçadores — disse Bogna.
— É possível, mas eu e você vamos estar bem longe daqui quando isso acontecer. Não deixe seu tempo aqui te fazer esquecer o que somos. Agora levanta! Preciso pensar em uma desculpa para os respingos de sangue em nossas roupas…
— Adeus Nádia, eu sinto muito que as coisas tenham que ter sido assim.
Os olhos vermelhos de Freirr voltaram à tonalidade cinzenta de antes e as duas entraram na delegacia. Por não haver pessoas suficientes, as duas cruzaram o corredor dos fundos sem se encontrarem com ninguém e foi apenas ao chegarem ao escritório da delegacia que as duas mulheres chamaram a atenção das pessoas que estavam ali de vigia, que se assustaram ao ver as duas sujas de sangue.
Um dos homens foi até as duas sinalizando para que outro pegasse o kit de primeiros socorros e disse:
— Senhora Brozová, a senhora e sua filha estão bem?! Aconteceu alguma coisa lá fora?
Ouvindo o que o homem disse, as outras pessoas no local ficaram tensas segurando suas armas tentando se preparar para o que estava por vir, dependendo da resposta de Freirr. Ela soltou uma risada e disse:
— Não se preocupe Libor, esse sangue não é nosso. Eu e Bogna fomos à entrada principal da cidade para ver como tudo estava e acabamos ajudando com alguns feridos antes de vir para cá. Foi esse o motivo do nosso atraso. Acho que essas roupas não tem mais salvação.
— Como está lá? Eles estão conseguindo conter o avanço dos caçadores? — disse Libor.
— Por enquanto estão, os Emissários de Vento estão se mostrando bem melhores do que pensei que seriam.
Ao ouvirem aquilo todos sorriram se acalmando aliviados que a batalha estava indo bem. A verdade era que a maioria das pessoas ali pedia aos deuses que o inimigo nunca chegasse até ali, mesmo que soubesse haverem outras pessoas se sacrificando, eles temiam por suas vidas.
— Teria algum problema se eu fosse com Bogna até o porão para falar com um dos policiais lá embaixo? Tenho uma mensagem do irmão dele. Não quero demorar muito tempo aqui, precisamos voltar para o nosso posto — disse Freirr se inclinado de forma sugestiva para que o elfo notasse seu decote.
Freirr além do carisma, era uma bela elfa e tão forte quanto Lauren em estrutura corporal que a fazia parecer uma lady das grandes casas élficas. O elfo fingiu ponderar alguns segundos sobre o pedido de Freirr, mas ela sabia muito bem qual seria o resultado do seu pedido.
— Suponho que não tem problema algum, mas não demorem muito lá embaixo, tudo bem? — disse Libor.
— Não se preocupe, meu coração, não vou levar muito tempo — disse Freirr.
“Eca, odeio quando ela faz isso na minha frente”, pensou Bogna.
Os outros homens no local olharam enciumados para Libor que estava feliz demais em ter sido chamado de coração para notar.
Chegando na porta para o porão, o policial que estava de guarda perguntou o que as duas estavam fazendo ali e após a explicação de Freirr, ele se ofereceu para guiar o caminho para as duas mulheres que aceitaram, embora Bogna estivesse revirando seus olhos em sua mente por conta dos olhares maliciosos que o policial tinha sobre as duas.
Na cela da família Damariss, Zaleria chorava nos braços de Dariss preocupada com o destino deles ao ser informada por um dos guardas que Port Strong já estava sendo atacada pelos caçadores. Dariss enquanto consolava sua esposa, notou que Ena, que se sentava distante dos dois, olhava para o teto da cela com seus pensamentos distantes daquele lugar.
— Ena — disse Dariss.
Ao contrário do que Dariss esperava, a elfa olhou para ele no mesmo momento esperando pelo que o nobre tinha a dizer.
— Gostaria de me desculpar por tudo que tem passado, Ena, mesmo não trabalhando há anos para nós você é a que está aqui conosco presa. Sei que não pode significar muito para você, agora que estamos nesta situação, mas a família Damaris não vai esquecer da sua lealdade Ena — disse Dariss.
— Meu marido tem razão! Sinto muito que esteja me vendo neste estado deplorável, mas eu não vou esquecer tudo que tem feito por esta família e tenho certeza que as crianças também estão muito preocupadas com você — disse Zaleria contendo suas lágrimas.
— Fico muito agradecida pelas palavras dos senhores, eu só fiz o meu trabalho. É uma pena que estamos aqui, porém não me arrependo de nada. Só peço aos deuses que as crianças estejam em segurança — disse Ena.
— Como eu disse para minha esposa e você deve ter ouvido, a Himiko não vai permitir que aconteça nada com a “vantagem” que ela tem sobre nós dois. Meus filhos estão seguros, disso eu tenho certeza — disse Dariss.
— Eu só… — Zaleria se interrompeu ao ouvir os detentos do lado de fora se agitando.
Eles não conseguiam escutar tão bem o que acontecia no corredor, mas conseguiram escutar os dois policiais que estavam próximos à porta para cela deles falando:
— O que a Senhora Brozová está fazendo aqui?
— Por que a roupa dela e da Bogna estão manchadas de sangue? Será que aconteceu alguma coisa lá fora?
A nobre olhou para seu marido com a respiração acelerando pensando na possibilidade de Poltergeist ter enviado alguém para dar um fim a eles.
— Amor, será que eles já chegaram aqui? — disse Zaleria.
— Vai ficar tudo bem, vamos tentar escutar o que está acontecendo — disse Dariss segurando firme a mão de sua esposa.
No corredor, o policial que desceu com as duas mulheres foi parado por um dos policiais que estavam de guarda que disse:
— Alan, o que está acontecendo? Os caçadores conseguiram chegar aqui?
— Nada disso, Rían. Elas só deram assistência a alguns feridos, aí acabaram sujando as suas roupas, trouxe elas porque tinham uma mensagem para um dos policiais — disse Alan.
Ouvindo a explicação de Alan, os detentos, que também estavam nervosos com a chegada dos caçadores, se acalmaram.
— Filha, por favor, espere aqui — disse Freirr.
Alan se virou para falar com Freirr, entretanto ela continuou andando em direção ao final do corredor sem dizer uma palavra sequer, Bogna ficou parada atrás de Alan e Rían esperando.
— Acho que ela já conseguiu encontrar com quem queria falar. A senhora Brozová disse querer entregar uma mensagem para alguém aqui — disse Alan.
— Mensagem? Do que diabos você está falando?!
Freirr parou em frente aos dois policiais que estavam de guarda na porta que dava para a sala onde estava a cela da família Dariss e com um sorriso gentil em seu rosto, ela disse:
— Preciso falar com uma pessoa que está dentro da sala, vocês se importariam de abrir para mim?
— Espera, senhora Brozová! A senhora não tinha me dito que queria dar uma mensagem para um dos policiais aqui? — disse Alan.
— Não precisam me chamar de senhora, podem me chamar pelo meu primeiro nome. Podem ficar tranquilos que eu só preciso de um minuto dentro dessa sala — disse Freirr.
Um dos policiais que estava de guardando a entrada olhou para outro em busca de uma resposta do que deveriam fazer. Freirr colocou sua mão na maçaneta da porta para abri-la, mas um dos policiais segurou seu braço.
A mulher encarou o policial que ficou paralisado ao ver que semblante calmo dela havia mudado para outra coisa e ela se soltou do policial que a segurava. Nenhum dos policiais conseguiu entender direito o porquê, mas todos deram um passo para se distanciar de Freirr, mesmo os que já estavam distantes. Os detentos intimidados ficaram em silêncio, a aura daquele ambiente havia mudado completamente.
— Obrigada — disse Freirr com uma entonação mais forte que antes.
“Ela parece uma pessoa completamente diferente… é por isso que eu estou sentindo medo dela?”, pensou Alan.
Assim que Freirr entrou na sala e no mesmo momento que cruzou a porta sentiu uma forte energia negativa, Dariss confuso com o que estava acontecendo ali se levantou e foi até a grade de sua cela dizendo:
— Freirr, o que você está fazendo aqui?! Aconteceu alguma coisa do lado de fora?!
— Eu não vim falar com você, Dariss — disse Freirr.
— Você está atrasada, ele já está aqui — disse Ena se levantando do chão.
— Ena?! — disse Zaleria.
— Só permaneçam quietos se querem ver seus filhos novamente — disse Ena.
— Se… senhora Brozová, me desculpe, mas preciso retirá-la daqui, seu minuto já acabou — disse um dos policiais que guardava a porta juntando toda sua coragem.
Se xingando internamente, os olhos de Ena ficaram vermelhos enquanto ela abria a cela com suas próprias mãos. Freirr cansada do policial, investiu contra ele com um soco e em seguida quebrou o pescoço dele.
No corredor Bogna, Alan e Rían escutavam sons de gritos vindo do andar de cima e pela presença pesada que a mulher sentia, não demorou muito para ela entender quem era, afinal a própria Ena havia avisado que ele já estava ali. Os detentos voltam a ficar agitados ao ouvirem os gritos que mesmo do subsolo dava para escutar perfeitamente.
— Todo esse esforço para sairmos daqui sem deixar uma trilha, não serviu para nada — disse Ena.
— Não! Não! Não! Isso não pode estar acontecendo comigo! — disse Zaleria.
Ouvindo os gritos da nobre, o outro policial que estava perto da porta entrou para averiguar o que estava acontecendo e o porquê seu amigo ainda não havia saído com Freirr. O resultado da sua curiosidade acabou sendo fatal ao ter o mesmo destino de seu companheiro pelas mãos de Freirr.
Na outra ponta do corredor, Alan, Bogna e Rían estavam focados demais nos sons de grito vindo do térreo para prestar atenção nos gritos vindo do final do corredor, que estavam sendo abafados pelos barulhos que os detentos estavam fazendo, pedindo para serem soltos. Para Bogna a angústia era maior que para os policiais, já que ela suspeitava sobre a identidade da pessoa que estava matando as pessoas no andar de cima.
Bogna conseguia ouvir os sons dos gritos dos policiais como se estivesse ao seu lado, por conta dos seus sentidos apurados. Mesmo que tentasse, ela não conseguia ignorar o som da lâmina e dos ossos sendo quebrados com as mobílias, porém para seu desespero tudo ficou em silêncio. Alan, sabendo que era o seu dever cuidar da porta, segurou direito o rifle que carregava consigo e disse:
— E-eu vou subir para ver para ao menos tentar ver se são os caçadores, por favor esperem aqui.
Enquanto Alan subia as escadas, Bogna escutava seus batimentos cardíacos acelerados e acreditava fortemente que ele estava a segundos de ter um ataque do coração.
— Mãe! — falou Bogna cerrando os punhos ao escutar sons de passos vindo do lado de fora se aproximando da porta.
Dentro da sala, Dariss levou sua esposa até o fundo da cela tentando se afastar das duas mulheres de olhos vermelhos.
— Eu sei o que vocês são! Eram para estarem extintos, suas aberrações! Não acredito que permiti que você se aproximasse das minhas crianças! Pelos deuses! Até mesmo você conseguiu me ganhar durante todos esses anos, Freirr! — disse Dariss chorando e com olhar cheio de ódio.
— Mesmo após os insultos, eu vou tentar ser razoável e te dar uma oportunidade de reconsiderar suas palavras. Pense bem nos seus filhos Dariss, pense na sua esposa — disse Ena.
— Não! Não! Não! — disse a esposa de Dariss em choque.
As mãos de Dariss tremiam enquanto ele segurava sua esposa em seus braços, a razão dizia que ele se mantivesse em silêncio, todavia suas emoções tinham uma opinião muito diferente.
— Não me peça para me reconsiderar filho do demônio! Vocês são Emissários do Sangue, mestiços imundos de Hemall, deviam ter caído com seu maldito império! — disse Dariss cuspindo no chão — Espero que você, Freirr e Bogna morram, tenho certeza que ela tem o sangue imundo da sua mãe!
— Hahahahahahaha, você é um tolo Dariss! Eu realmente não sei o que eu faço com você agora! — falou Ena rindo de forma macabra enquanto se aproximava dos nobres.
— Mãe, ele está aqui! — disse Bogna do lado de fora.
Daquela vez o grito foi tão alto que nem as vozes desesperadas dos detentos conseguiu abafar sua voz para os ouvidos apurados de Freirr que trocou olhar com Ena se preparando para o pior.
E o pior já está ali descendo as escadas em direção a Bogna que tinha seus olhos vermelhos tentando se mover para o que estava por vir.