Volume 1
Capítulo 4: O que nos une?
— Ela foi levada… Uma outra ambulância já passou por aqui.
Devagar Alex fechava seus olhos, como se fosse insuficiente o ato de desviar o foco de seu filho. A postura retraída preocupava imediatamente Edward, nunca havia presenciado um lado mais frágil de seu pai.
— Ela está muito mal? Por que a ambulância levou apenas ela? Poderíamos ter i—
— Não tinha mais espaço… precisaram de uma equipe grande para sua mãe. Levaram em consideração nossas feridas e acabaram priorizando ela. Demorou um pouco, mas depois chegaram uma outra ambulância e alguns bombeiros. O resgate só aconteceu de forma eficaz pois um motorista parou para nos ajudar…
Cada palavra proferida por uma voz fraca e serena, apenas trouxe mais forças para as paranoias do garoto. As sentenças, como pequenas facas envenenadas pela culpa, cortavam os corações de ambos. Alex segurava com força as lágrimas enquanto buscava mais uma vez a razão por ter feito tal manobra. Pensar no pior causara uma leve tontura em Edward, sentia de forma mais intensa o calor em sua volta. Precisava encontrar algum tipo de apoio e assim fez ao recordar do possível resquício de otimismo. Respirou fundo e disse com uma entoação esperançosa:
— A ambulância chegou rápido, ela vai ficar bem! E outra coisa, a menina… ela ficou bem, certo? Não foi preciso uma outra ambulância para ela. Então imagino que ela está salva.
Cerrou os punhos e repetiu, mentalmente, incansáveis vezes a sua auto confirmação de que as coisas seriam resolvidas. Contudo, o tom esperançoso foi desgastado no ritmo dos movimentos de seu pai. A postura encolhida rapidamente foi distorcida, Alex se ergueu em um movimento brusco. Abriu o peito de forma imponente enquanto fitava, com um olhar intenso, a expressão vívida de Edward. “É verdade, eu lembrei”, pensou o adulto no mesmo instante que decidiu cerrar os dentes.
Algo pegajoso e quente começou a borbulhar em suas entranhas. O motivo de sua manobra equivocada estava em sua frente. A responsabilidade de um pai desmoronava enquanto as palavras de Edward ecoavam em sua mente.
Confuso e assustado, o filho recolheu as sobrancelhas buscando compreender a postura agressiva do pai. Mas antes mesmo de formular sua pergunta, Alex decidiu retomar a conversa.
— A criança?
— Sim ela mesma! — Encolheu os ombros na tentativa de entender se havia cometido algum erro.
— Edward, nunca existiu essa criança! — Fechou por completo o rosto ao se aproximar cada vez mais da presença de seu filho.
O garoto por reflexo dava alguns passos para trás, buscava fugir da ferocidade repentina à sua frente. O crescente tremor no olhar, acompanhado pela frieza que percorria seu corpo, evidenciava o impacto da afirmação de seu pai. A cada passo, a ameaça de Alex se tornava mais clara, fazendo Edward se encolher cada vez mais.
As mãos levemente trêmulas, com as palmas abertas, estenderam-se na direção do pai, em uma tentativa desajeitada de apaziguar a situação. A postura curvada refletia-se na voz retraída do garoto.
— Eu vi ela… sei que a salvamos… Talvez tenha sido levada por outra ambulância. — Apesar da confiança aparente em suas palavras, o olhar fechado revelava a crescente insegurança do garoto.
—- O motorista, que parou para nos ajudar, chegou poucos minutos depois do ocorrido e não encontrou nenhum rastro de uma outra pessoa… — Deixou de se mover mas continuou com o olhar afiado, em conjunto com a testa enrugada. Em definitivo, estava longe de controlar sua impulsividade.
— Pai, eu vi ela… — Após retroceder, a partir de alguns atrapalhados passos, ousou recuperar o contato visual com Alex, mas ainda achou necessário se manter cabisbaixo.
— Nada estava em nossa frente! Entenda de uma vez, até mesmo sua mãe não viu absolutamente nada de diferente.
A voz grave de Alex reforçou brutalmente a falta de evidências para o garoto se sustentar. Desarmou os braços, precisava encarar a realidade que tanto queria fugir. Diante do garoto, desfez-se a frágil esperança otimista — no fim, não houve qualquer heroísmo. As migalhas de culpa, agora se transformaram em uma pesada montanha que pressionava seu peito. O mar de lágrimas escorreu sem qualquer tipo de resistência, motivo suficiente para começar a esfregar seus olhos de forma desenfreada.
O rumo dramático da conversa fez com que de forma gentil tanto o bombeiro quanto a enfermeira, que estava a caminho de Edward, tentassem alterar o cenário.
— Bom, precisamos ir para o hospital. Certo enfermeira? — questionou o bombeiro se posicionando entre os dois familiares.
— Você roubou minhas palavras. — Gentilmente agachou em frente ao choroso menino. — Vamos Edward, precisamos te analisar e você pode ficar ainda mais próximo de sua mãe… as coisas ainda estão inacabadas. — Lúcia sabia bem de sua incapacidade de interferir na relação familiar, no entanto o coração da enfermeira estremeceu ao visualizar tamanha sofrência.
O choro e a tentativa de acolhimento da enfermeira desarmaram a raiva de Alex, deixando-o com uma expressão tímida e envergonhada. Com passos hesitantes até o carro, iniciou sua próxima fala.
— Vamos para o hospital, ela precisa da gente… — Passou pela presença do filho e continuou. — Sejamos fortes.
Os punhos cerrados realçaram a raiva de Alex consigo mesmo. “Culpar o próprio filho? O que estou fazendo?”refletiu sobre suas atitudes falhas. Mas a indignação apenas se agravou ao reparar que lhe faltavam forças para mudar. Em um suspiro, empurrou seus problemas para frente, apenas gostaria de se agarrar em seu próprio conselho.
Edward concordou e, com passos hesitantes, voltou-se para a ambulância estacionada do outro lado da rua. A enfermeira segurou seu braço com firmeza gentil, guiando-o pelo caminho. A cada passo, o garoto respirava mais fundo, e as lágrimas que antes escorriam incontrolavelmente começaram a rarear.
O caminho até o hospital mais próximo durou um pouco mais de meia hora, contudo a tempestade de aflição e de incertezas transformou o pequeno percurso em uma grande jornada. Tanto pai quanto o filho permaneceram em silêncio até enxergarem a fachada do estabelecimento.
Ainda que estivessem em uma cidade menor do que a planejada para a viagem, o lugar surpreendia com sua estrutura moderna e bem cuidada. No centro do estacionamento, pequeno e lotado, destacava-se uma vistosa árvore, velha e robusta, que parecia carregar décadas de história em seus galhos. A ambulância serpenteava entre os carros estacionados para enfim parar na área de embarque e desembarque. Com a ajuda da enfermeira e do motorista, os passageiros desceram, agora de frente para a imponente porta de entrada.
A estética do prédio de 4 andares, quase por completo envidraçado de cor preta escura, intimidava. Logo após atravessar a porta, um grande balcão acomodava 3 recepcionistas, ocupados em atender uma fila de pacientes. O ar frio, proveniente do ar condicionado, causava um grande choque térmico em Edward, mas de alguma forma ainda preferia esse frio arrepiante.
— Me sigam por favor!
Lúcia começou a conduzir os dois para o lado esquerdo da recepção, um pequeno corredor levou todos para uma, cheia, sala de espera. A confusão da mistura de diferentes conversas causara irritação, o garoto de forma irracional começava a se sentir como o centro das atenções daquelas pessoas desconhecidas.
— Esperem só um instantinho preciso chamar o médico.
Após uma breve conversa com a secretária, que estava posicionada atrás do balcão na sala de espera, a enfermeira se dirigiu rapidamente para uma grande porta dupla no final do corredor. Edward estalava os dedos, pressionando-os com a outra mão, enquanto buscava algo para distraí-lo. Pensou em ouvir uma nova música em seu celular — milagrosamente intacto após o acidente —, mas sua atenção foi capturada pela televisão suspensa em um dos cantos da sala.
— Boa tarde. — Um repórter bem vestido mantinha um semblante sério. Sua figura decorava a vista da entrada de uma grande ponte, e com uma voz grave continuava. — Hoje a cidade de Overhill foi surpreendida com um caso trágico! Dois jovens foram encontrados sem vida nas margens do rio, logo abaixo da ponte principal que liga até o popular destino. A perícia confirmou que a causa da morte não foi afogamento. Foram identificadas diversas marcas de agressão, principalmente na garota. O detalhe mais chocante e cruel é que seus olhos foram retirados. Este é, sem dúvida, um caso de brutalidade sem precedentes na história desta região.
— Sempre há tempo para tragédias… — disse um dos pacientes que se mostrava inquieto em seu assento próximo ao pai e filho.
Antes que pudesse se perder no caso bizarro e na forte fala que chegou até seus ouvidos, a enfermeira retornou com a intenção de levá-los para a área de emergência. Assim que atravessaram a grande porta dupla, revelou-se um extenso corredor alinhado com oito consultórios. No final do corredor, um elevador destacava-se, enquanto os últimos quatro consultórios eram claramente identificados como reservados para casos emergenciais.
Acanhado acompanhou os dois adultos tentando ao máximo desviar seu olhar das circunstâncias em sua volta — sempre detestou, por sentir medo, o ambiente de um hospital. Manteve o foco para seus pés e de forma repentina já se encontrou próximo a entrada do consultório.
— Bom, o médico responsável a partir daqui é o doutor Jefferson. Fiquem à vontade!
A enfermeira ajudou na acomodação para rapidamente pedir licença e deixar a sós os pacientes.
— Boa tarde, como vocês estão? — Jefferson levantava, fazia questão de cumprimentar com aperto de mão cada um de seus visitantes. — Me atualizaram sobre a situação de vocês, mas preciso ter certeza de suas queixas.
— Bem tive alguns arranhões, minha perna ficou presa em uma parte obstruída do carro, mas não sinto nada de diferente.
— Certo, vamos fazer alguns exames para conferir. — Anotava rapidamente em sua ficha. E com uma voz calma continuou. — E você garoto, está sentindo algo?
— Hm… quando acordei senti uma forte dor de cabeça mas agora está tudo bem — respondeu tentando manter a seriedade e o foco para com o médico. Desejava resolver da maneira mais rápida possível.
Alex de imediato tossiu de forma indiscreta, buscava atiçar o próprio filho a falar mais detalhadamente sobre seus sintomas. Apesar de parecer desconexo, o simples gesto do pai fez com que Edward se sentisse desconfortável. Soube claramente o que necessitava dizer, porém reviver cada detalhe era torturante. Engoliu seco, antes mesmo de seu pai roubar seu lugar de fala, decidiu falar. Com a visão mais embaçada respondeu:
— Bom, isso foi quando acordei. Mas durante a viagem eu tive duas crises meio estranhas. — Começou a gesticular em busca de encontrar maneiras para explicar aquele fenômeno tão estranho. — De repente fiquei sem ouvir nada, nenhuma voz nem a minha mesma. Depois de um tempo eu voltei a escutar tudo mas do nada comecei a ouvir diversas vozes diferentes uma em cima da outra. — Os gestos se tornaram mais frenéticos assim como sua fala. — E… e… e parecia que nunca iria parar, minha cabeça estava prestes a explodir, mas novamente tudo ficou bem.
A respiração ofegante apenas exaltou seu anseio em tentar destrinchar todo seu anterior desespero. Sentiu-se mais leve, todavia ainda mostrou-se insuficiente para o pai, que de forma dura direcionou suas palavras mais uma vez.
— Você está esquecendo de detalhes importantes!
Ed se enxergou cada vez mais cabisbaixo, carecia de algum tipo de escape. Devagar balançou sua cabeça como repulsa da atitude que tanto era cobrada — mostrou-se incapaz de compreender de onde vinha toda a vontade de seu pai em fazer com que ele ressuscitasse todas suas vergonhas.
Atentou-se aos trejeitos de seu filho para então encontrar uma nova resposta afiada.
— O que foi? Precisamos falar sobre isso, meu filho — disse levantando os ombros. Esperou alguns segundos e quando percebeu que nenhum relato sairia da boca de Ed, decidiu continuar. — Bom, doutor ele após tudo isso avistou de forma desesperada uma garota—
Edward sabia perfeitamente o que seria discutido ali, mas se recusava a ouvir as palavras de Alex. Perdido em seu próprio mundinho, sua mente insistia em reconstituir cada detalhe da tragédia, buscando algum tipo de sentido ou apoio. “Todos os detalhes, todos os relatos... eu realmente sou o culpado, certo?” A dúvida o corroía, e ele permaneceu em silêncio, imóvel, até que a voz firme do doutor o chamou novamente à realidade.
— Edward vou te levar para o local de exames, vamos conseguir realizar alguns ainda hoje mesmo. Não precisa se preocupar, eles são simples e estamos fazendo isso apenas para descobrirmos como ajudar você ainda mais. E agora… você Alex… também temos alguns para fazermos… bem tranquilos e também vou pedir para tratarem seus ferimentos leves.
— Doutor me desculpe, estou muito bem. Logo, sinto que o mais importante agora era ficar próxima de minha esposa. Onde ela está?
— Vamos primeiro aos exames, depois—
— PRECISO VER ELA AGORA! — Ergueu-se de forma violenta, empurrava até mesmo a cadeira que estava sentado. Retomava sua ferocidade, deixando todos da sala assustados.
— Desculpe, mas é necessário passar por essas etapas. Eu entendo seu desequilíbrio. — Jefferson levantou e de forma calma chegou próximo ao seu paciente assustado. — Minha função aqui é tentar amenizar as dificuldades, justamente por isso gostaria de saber como vocês estão primeiro antes de detalhar toda a situação. Mas de imediato, posso dizer que ela está sendo tratada e seu quadro obteve uma melhora.
Constrangido, o pai pediu desculpas de forma desajeitada. A notícia, apesar de carecer de detalhes, conseguiu motivar os dois familiares. Dessa maneira, seguiram rumo em busca dos devidos cuidados.
O relógio digital, embutido na pequena televisão do elevador, marcava 13:33. O horário fazia Edward perceber que já havia passado mais de uma hora sendo examinado — mais de uma hora sem qualquer notícia sobre sua mãe. Ele fixava o olhar no display que indicava os andares, mas os números pareciam congelados, e essa sensação apenas tornava sua respiração mais difícil. Inquieto, tirou o celular do bolso, na esperança de encontrar alguma mensagem importante. No entanto, como das outras vezes, a tela continuava vazia.
Diante dele estendia-se um novo e amplo corredor, alinhado com salas de cirurgia, cada uma com cadeiras dispostas na área externa. Diferente dos corredores anteriores, este pulsava com movimento: médicos e enfermeiros passavam apressados, carregando pranchetas, equipamentos e um senso de urgência que preenchia o ambiente.
Edward apertava seus passos à procura de seu pai. À primeira vista uma cena roubou sua atenção: duas enfermeiras conversavam tranquilamente sobre novos relatórios de pacientes. A cena, aparentemente banal, era perturbada por um idoso, agachado próximo a elas, que lutava contra fortes tosses. O desconforto o invadiu imediatamente. "Será que só eu estou percebendo isso?" pensou, enquanto uma sensação de inquietação crescia em seu peito.
Chacoalhou a cabeça e acreditou que a cena era algo corriqueira para as enfermeiras — precisava descobrir como estava a situação de Joe. Enxergou seu pai sentado, abatido, e assim correu em sua direção.
— Pai, fiz todos os exames. O médico disse que está tudo bem, mas ainda vamos descobrir novos detalhes posteriormente. Mas como está a mãe? — Ofegante, sentou do lado de seu pai.
— Ótimo meu filho…
O coração de Edward acelerava, existia tristeza na voz de Alex. Com a garganta seca e com pequenos tremores nas mãos, notou que estava relutante sobre seus próximos atos. Gostaria de perguntar como sua mãe estava, mas as palavras não encontraram nenhuma forma de sair de sua boca.
Incapaz de confrontar a situação, o garoto assustado apenas observou seu pai. Este que vagarosamente olhou para a luz da lâmpada do teto, o forte brilho ajudou no surgimento de uma tempestade em suas pálpebras.
O filho abriu a boca algumas vezes, mas novamente nada saiu. Estimaria pedir desculpas, o peso da culpa voltou com ainda mais intensidade, mas sentia que isso ainda seria em vão. Assim, o choro mais uma vez deu as caras, a sensação do vazio contaminava seus corações. Independente de ainda ser o início da tarde, o dia havia sido finalizado com um desvio na rota da viagem de Joe.
Nota do autor
Do fundo do meu coração, meu muito obrigado!! "Edward The Guide" hoje consta com mais de 2k de visualizações e isso me deixa imensamente grato e já realizado. Esta obra esteve no meu bloco de notas durante anos e quando se iniciou 2024 eu prometi a mim mesmo que tiraria essa ideia do papel. Tenho muita sorte de ter conhecido alguém tão foda quanto o Guilherme (Gizada/Lenuu) que decidiu ajudar nessa minha busca por um sonho, para mim você sempre será um monstro nas artes!!
A todos vocês que passam por aqui, novamente agradeço. Agradeço pela atenção, disposição e zelo por algo que eu tanto deposito de mim. Nunca será apenas sobre números, o mais importante sempre será o privilégio de poder alcançar PESSOAS!! Apesar do início um pouco mais lento, peço que continuem acompanhando a obra. Garanto sempre buscar me tornar um escritor melhor.
Hoje é dia 24 de dezembro, quero desejar um excelente natal para cada um de vocês!! Fiquem próximos de quem vocês amam, não deixem de acreditar na vinda de dias melhores. Seguimos em frente, o sol sempre nos alcança. Que continuemos sendo nós mesmos, alimentando sempre esse sonho de criar.
Próxima semana (31/12) teremos uma arte especial de fim de ano
- Gusty