Volume 1
Tumulto
Hoje foi o dia em que iriam interrogar Erik, e, claro, eu não perderia isso por nada no mundo se dependesse de mim. Infelizmente o destino me levou para outro caminho, um caminho na qual eu odiava: era o dia para eu escolher um pretendente.
Diferente de mim, Karen escolheu seu pretendente há seis meses quando fora planejado a reunião do Conselho às formalidades para apresentar seus pretendentes e o casamento é agora daqui a três meses. Dois vêm do Norte e mais dois daqui do Sul. A escolha é planejada conforme as especificações determinadas, e um banquete sendo servido no salão de festas para os convidados logo após o início da cerimônia de seleção ao demonstrar suas capacidades e maestria com testes. Era entediante e vergonhoso, mas divertido vê-los fracassar. Antes da Karen escolher seu pretendente, intercalam a cada 6 meses para demonstrarem seus respectivos primogênitos e selar acordos de comércios em benefício mútuo. Eu sempre me entediava e gemia como um morto-vivo até a hora da refeição na qual eu pegava minha refeição e fugia dos pretendentes rejeitados.
Dessa vez eu sabia que não poderia escapar.
Eu sempre neguei os pretendentes que me vinham, alguns de outras terras distantes com seus navios sofisticados; presentes dignos de elogios e cargas servindo como amostras para a futura, possível, parceria. Sempre recusei a todos. Vejo esta cerimônia como uma futilidade e desculpa para me prender a um relacionamento na qual eu não queria fazer parte. Sei que é necessário, apesar das contradições entre meus pais e a mim, principalmente do rei.
A cerimônia será no final da tarde. Todos os quatro pretendentes estavam alojados e com os serviços prestados. São eles, parte do seu esquadrão pessoal de guarda costas e um ou dois familiares. Eu estava no meu quarto sendo preparada, posta em pé sobre um banquinho de braços esticados enquanto duas criadas faziam os preparativos finais para a cerimônia de abertura e, em seguida, a seleção dos pretendentes.
Elas me apertavam, maquiavam-me e me penteavam para parecer o mais natural e atraente possível. Mamãe bateu na porta abrindo apenas uma frecha para ver como estava ficando. Meu olhar refletiu do espelho de três lados para ela, fitando-a com desconforto da situação.
Mamãe estava sorridente em quão bela eu estava ficando: vestido vermelho escuro com relevos dourados em flores, uma fita foi posta atrás das minhas costas rodeando minha cintura, os saltos simples e elegantes em tons de dourado e com prata servindo de decoração.
Uma das criadas acaba apertando mais na minha cintura; a outra me pôs a coroa dourada cintilante com um losango de diamante posto no meio, a coroa para no meio da minha testa.
As criadas saíram.
Me olho no espelho, sentindo-me como uma carne pronta para ser assediada e comida visualmente pelos cães de suas terras sedentos por um posto de tamanha importância.
Finalmente fiquei pronta.
Ergo minhas mãos para perto do meu rosto enquanto cutucava as cicatrizes em runas. Coçava ambas as mãos na falsa esperança de que elas poderiam sumir a tempo da cerimônia, mas não sumiram. Sinto uma pontada no estômago, talvez fosse o vestido apertado, como uma faca me penetrando com velocidade tento esconder a dor da mamãe a todo custo.
Mamãe logo se aproxima de mim, elogiando-me naquelas roupas apertadas, justas e com um decote nas costas. Escondo as mãos permanecendo de costas para ela. Trocávamos olhares através no espelho em minha frente. Mamãe estava com metade do cabelo serpenteando sua cabeça em tranças e se juntando em um nó apenas para formar uma trança maior com flores servindo de enfeite, a outra metade do cabelo estava solto com algumas presilhas e joias para enfeitar o cabelo. Seu belo vestido verde era realçado por uma estola de pelo de raposa com alguns anéis na sua mão aterrissada sob meu ombro. Seu rosto estonteante e belo estava reluzente com a maquiagem simples e elegante para a ocasião.
Ela estava muito linda.
Meu olhar era de desconforto, ela sentia isso apenas vendo. Ela me acalma e tenta me animar de alguma maneira para eu aliviar a tensão do momento.
— Quando foi com o seu pai — ela diz. —, fiquei extremamente nervosa durante a cerimônia inteira.
— O que? Eu não acredito. Você? — solto uma leve risada junto a ela.
— É sério! Tive que parar a cerimônia duas vezes para eu ir ao banheiro lavar o rosto de tão nervosa eu estava. E cá entre nós — ela cochichava. — Quando dancei com seu pai naquele dia, pisei duas vezes no pé dele.
Nós gargalhamos, por um instante havia mesmo esquecido da cerimônia que me aguardava. Nós duas encarávamos o espelho com nossas bochechas quase se tocando. Mamãe solta um suspiro suave logo depois.
— Escute. Eu sei que você está nervosa e não gosta da ideia de casamento arranjado, é estranho e sem sentido eu sei. Contudo mesmo que escolha algum deles isso não vai te impedir de fazer o que você quiser. Apenas quero o melhor para você. Sabe disso, não é? — Eu assentia com a cabeça. — Se dependesse de mim, isto tudo estaria sob sua decisão para você fazer o seu destino, mas o Conselho fala outra coisa..., mas não deixe que isso desvie suas motivações, está bem?
Ela desvia o olhar para o espelho por um instante. Então, diz:
— Você ainda vai ajudar muito o nosso povo e nosso reino. Sei disso. Agora vamos. Se tudo ocorrer bem, depois da cerimônia podemos pintar as unhas juntas.
— Posso escolher a cor?
— Não force, ok? — ela sorri levantando uma das sobrancelhas.
⸗ ⸗ ⸗
Lá embaixo, no calabouço, estava sendo preparada uma outra câmara de contenção. O Viajante — Erik — estava sendo levado até esta, na qual havia uma mesa de madeira escura e duas cadeiras de ferro. Uma das cadeiras havia dois ganchos na sua base para prender as algemas que o segurava. O rei estava no corredor falando com os responsáveis pela organização. Seria uma espécie de interrogatório, a câmara era retangular com suas janelas cobertas por um espelho espião[1] para verem do outro lado.
O rei debatia com os organizadores onde estava a pessoa responsável para interrogar o suspeito. "Está a caminho, majestade." um respondeu.
No corredor ecoava passos frequentes de alguém. Eram passos pesados, certamente a pessoa utilizava botas. Chega tal pessoa determinada para fazer o interrogatório. Estava com sua prancheta em mãos, jaleco casual de laboratório; seu grande cabelo crespo rodeava seu rosto escondido por uma máscara dourada contemporânea simples e sem emoções. Sua postura e comportamento de longe eram percebidos como uma pessoa séria e comprometida com o trabalho técnico no seu laboratório sem tempo para brincadeiras ou distrações.
— Marionete — diz o rei. — Tem certeza de que este seu experimento irá fazê-lo falar?
— Tenho certeza de que o procedimento funcionará. Se ocorrer conforme o roteiro, ele falará; embora eu duvide de que ele diga algo de útil dadas as circunstâncias da qual eu mesmo tentei arrancar algo dele nessa semana conforme o relatório de ontem. Contudo, estou convicto de que desta vez ocorrerá como previ nos meus testes. O Programa de Inovação e Atenuação Tecnológica tem garantia.
— Hmm. Prossiga — o rei falou, retirando-se.
Marionete prepara alguns pequenos equipamentos. Erik é trago em uma maca inclinada sob correntes de pressão, mãos, pés e pescoços presos. Estava sendo constantemente sedado. Marionete fita-o por uns instantes antes de terminar de se aprontar.
Com rapidez, colocam-no dentro da câmara ainda com as correntes. Suas mãos com cicatrizes estavam algemadas na mesa riscada, pouco a pouco ele acordava. A luz da câmara atravessa seus olhos intensamente, ele levanta seu rosto antes apoiado em cima da mesa, seus olhos ainda ofuscados olhavam ao redor freneticamente. Ele aperta os olhos três vezes antes de retomar a visão. Logo estava percebendo estava acontecendo ao olhar melhor a câmara, a mesa e a porta na sua frente.
Uma sirene soa. A luz acima da porta de ferro liga com este se abrindo.
Marionete entra na câmara com alguns papéis na sua prancheta e um dispositivo pequeno em mãos no tamanho de um mísero controle remoto. Ela se senta na frente do Visitante ajeitando a cadeira e suspirando levemente por debaixo da máscara. Larga a prancheta na mesa com o controle ao lado, suas mãos estavam também em cima da mesa, roçando uma na outra.
— Você tem um nome? — Marionete começa a entrevista.
O rapaz, nada falou, seu olhar era de desconfiança para cima do cientista o observando de cima a baixo. Ele o estranhava e se afastou um pouco. Suas mãos se retraíram, fechadas e firmes. Marionete deu um tempo para ele responder, de fato o respondeu, e disse:
— Sim... eu tenho um nome
— Que bom. Vamos começar por aí, que tal me dizer seu nome?
⸗ ⸗ ⸗
O salão estava repleto de diversas famílias, todas em seus cantos distintamente visíveis com suas cores e bandeiras, suas atas conversas faziam as bandeiras penduradas chacoalharem, o mar de cabeças uma batendo na outra, angustiadas e inquietas. Eu estava no terceiro trono menor. Trono esse madeirado com detalhes de ferro; as sobreposições e entalhes enfatizavam o desenho da árvore da nossa família no encosto dos tronos. Me apoiava no meu braço entediava em vê-los todos ali esperando o anúncio da minha mãe para que o evento começasse. O tédio estava me acompanhava, esse angustiante sentimento para que tudo terminasse o quanto antes; algumas famílias se exibiam para outras, achando-se superior a suas adversárias. "Que infantil", eu pensei.
Para minha surpresa, Lilith surge do meu lado, cutucando meu braço sutilmente.
— Lilith?
Ela manteve o rosto para frente enquanto fez um sinal de silêncio com o dedo e um sorriso por trás me olhando de canto.
— Vir ver a Princesa Katarina escolher um possível parceiro assim de perto não é para qualquer um não, ok? Eles acham que sou sua dama de companhia, logo eu: uma mera Axolitna — ela sussurra comigo enquanto ri. — Aliás, você está em vários jornais no reino inteiro, o povo quer saber se dessa vez vai ter um pretendente ou se a princesa real vai continuar teimosa.
Eu me encolho de braços cruzados para dentro do trono, emburrada. A dor no estômago persistia, assim eu também fazia escondendo a dor.
— É claro que vou continuar na teimosia. Caramba, eu já disse que não quero me casar. Tem jeitos melhores de fazer parcerias em outros cantos, qual o problema desses burocratas do reino?
Minha tolice era diversão para Lilith, gargalhando baixo do meu lado. "Como se eu fosse me deixar levar por um homem qualquer dessas famílias", pensei. "Não duvido que esses também sejam ruins no arremesso de tronco ou na escalada de argolas"
De supetão surge a minha mãe com o rei, meu pai, sentando-se nos seus tronos, em pé ela anuncia o início da cerimônia abrindo os braços para o céu com um sorriso no rosto olhando para todos.
— Sejam bem-vindos! Que grande dia!
Sua voz bela chamou atenção de todos calando as intermináveis vozes, as rixas sessaram, dedos apontados se abaixaram e lanças se acalmaram. Este foi o único momento na qual vi diferentes famílias, mesmo com inimizades, se acalmando para competir pela minha mão. O constrangimento que eu sentia era quase tão maior quanto a atenção que a grande rainha Hella de Homeworld recebia.
Por um instante o silêncio contaminou aquele gigantesco salão.
— É uma honra recebê-los aqui, hoje.
⸗ ⸗ ⸗
Próximo à câmara pesquisadores, cientistas e seus assistentes fazias catalogação do que ocorria dento daquele cubículo de contenção o vidro era refletor, então quem estava por dentro não via o que havia por fora. Marionete continuava seu trabalho com cautela e sendo cuidadoso com as perguntas.
— Veja, sei que isto tudo está sendo um percalço que você está enfrentando, basta cooperar e será mais rápido e fácil, Erik. Você assustou o reino inteiro quando chegou e causou um alarme gigantesco para todos nós. Não quer se justificar?
Erik, o Viajante, não proferiu mais nada para o cientista. Seu rosto era de poucas amizades, cara fechada e sem contato visual. Marionete manteve a calma, mas este fora o ponto final que o fez pegar o controle com gentileza e começou a cutucá-lo. Pois, Erik suspeitou e olhava os dedos agitados do seu interrogador.
— Sabe como seu povo surgiu, Erik? Os pais contam às crianças que surgiram da revolta dos assistentes dos Feiticeiros, pois estavam destinados a sempre ficarem para trás sendo apenas serviçais do verdadeiro homem que semeava o caos nas aldeias, assim se rebelaram.
Erik recebe uma alta voltagem vinda da coleira no seu pescoço. A descarga o faz se retrair e cair sobre a mesa, uma leve camada de fumaça sai de si enquanto exibia espasmos. Marionete se levanta da cadeira suspirando e vai até seu ouvido:
— Eles mentiram. Nunca houve uma revolta, nunca houve assistentes. Foram apenas importunos causados pela arrogância e um pequeno espírito indomado ao descobrir um poder incompreensível. — Ele terminou.
Marionete vai para perto da janela à direita do Viajante, seu olhar frio da máscara era refletido enquanto continuava a pesquisa perguntando o motivo da sua chegada. O rapaz mantinha a palavra.
Outro choque percorreu seu corpo com mais intensidade. Ele grunhia de dor se retraindo e contorcendo e suas roupas improvisadas estavam quase queimando pelas bordas. Os de fora ainda catalogavam tudo.
— Por favor... — ele implorava no chão com sua voz falhando.
A iluminação falhou por milissegundos, mas Marionete não percebeu, manteve a pergunta acreditando que ele estava escondendo algo ainda, precisava de estímulo, apenas.
*BZUUUMMM*
— Por que está aqui nestas terras, nômade? Invasão? Perseguição?
— Do que você está falando? Eu não invadi! Apenas, fui chamado...
Ele começou a tossir.
— Chamado?
Suas tosses viam com respingos escuros.
—Quem o chamou? — Marionete olhou por cima dos ombros, inquieto.
*BZUUUMMM*
— Por favor... — ele se tossia.
*BZUUUMMM*
— Quem!?
As luzes piscavam levemente, estava difícil não se perceber. Estavam ofuscantes. Piscavam como se a energia estivesse no seu fim. Aquilo não era normal, piscavam, rapidamente, quase estourando.
— O que?... — Marionete estranhava.
Erik parecia que estava tendo espasmos. Não podia ver direito, pois com o estado atual da luz era quase impossível. Ele estava jogado agonizando de dor pelas descargas fortes. Grunhidos ecoavam da sua boca com uma sombra viva emanando dele como um casco transparente e obscuro, surgindo das suas veias e saltando para fora.
— O que está acontecendo, o que você está fazendo?... — Marionete via as luzes piscando freneticamente, isso acontecia até mesmo fora da sala da câmara. — Chamem, os guardas...agora! — Marionete comunicou à equipe batendo no vidro temperado.
Erik crescia aos poucos. As luzes desligavam e ligavam com um aspecto amedrontador, o Viajante criava massa corporal agressivamente; nas suas costas cresciam inúmeros espinhos. Os braços pesavam e cresciam com a ponta dos dedos se afiando. Ele se erguia naquele piscar de luzes estroboscópico como uma montanha sombria. Seu corpo era estranho, a cintura esguia logo se alongava mais acima do corpo. Era como ver a morte e o nascimento de uma criatura, um pesadelo vivo, um ser cuja criação seria como a própria fúria de Ínnumar, o Deus Criador.
Aquele já não era mais o Erik.
As luzes ocultavam a real criatura que ele estava se tornando. Ele ruge com som estridente, grave, como se diversas pessoas estivessem gritando ao morrer. Ele joga a mesa acertando Marionete que cai assim como sua máscara.
Marionete, no chão, arrastava-se para trás. A criatura tinha seus pés bípedes divididos em três dedos pontudos e tinha um cheiro pútrido.
Os alarmes ecoaram por fora, gases foram acionados na sala acima criatura que se virava para o cientista. Marionete recupera sua máscara caída.
*BAM*
Um punho bateu no vidro rapidamente.
E outro. E outro.
Os enormes punhos da criatura queriam se libertar.
*RROOAAAARRRR!!*
Seu rugido ecoou ao logo da câmara que se desfez rapidamente após suas garras rasparem e quebrarem os vidros facilmente. Ele rugiu mais uma vez mostrando-se para fora da neblina densa de gás com uma pose imponente. É um monstro sem face com uma grande boca de dentes serrilhados cobertos de saliva ardente; as placas do seu rosto saltam conforme ele rugia mostrando a carne interior. Sua cor lembrava uma obsidiana, mas a textura da pele parecia queimada por todo seu corpo de aparência raquítica. Ele pula e começa sua matança desenfreada e brutal, desmembrando e arrancando partes dos cientistas com a boca em meio escuro. Devorava algumas partes e seguia com a carnificina frenética. Marionete estava no canto, do que sobrou do cubículo, paralisado testemunhando o horror sanguinário. Seus colegas mortos, assistentes com membros amputados numa poça de sangue com o peito perfurado. O laboratório estava pintado de vermelho do teto ao chão, o respingo das mortes cobria sua roupa e seu pescoço. Ele desejava fugir, mas não tinha condições de se quer se mexer dali com aquela criatura vil a solta em seu frenesi de carnificina.
Ele se manteve ali enquanto a criatura fugia.
● ● ●
[1] Vidro de perspectiva unidirecional laminado, usado por ter isolamento acústico de vidro oco, o que pode impedir que o observado ouça a conversa do observador.
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