Volume 1
Os Protetores
“Você foi uma tola!”
Meus pés se mexiam mais do que eu podia perceber, pareciam ter vida própria. Tudo o que lembro é de Merovak se mostrar bem na minha frente num instante, e no outro eu já estava correndo meio à mata próxima do cemitério que se conectava ao parque do reino.
— Pode me criticar depois que eu sair viva dessa! — eu arfava pelas pequenas colinas adentrando a mata.
— Não fuja, majestade. Isto é necessário. Correr apenas a deixará com medo, paranoica e irracional. Se desorientará o suficiente para eu abatê-la.
— S-Sombra, você disse que está aqui para ajudar, não é? Faz algo! Alguma merda!
Corro por alguns metros com galhos e folhas batendo no meu rosto, sem olhar direito tropeço numa raiz de árvore e caio com força no chão.
Sinto meu nariz sangrar, minha testa acertou fortemente o chão me deixando tonta por uns instantes, mas mantive minha consciência. Vejo-o se aproximar, sua espada ansiava por sangue. Meu sangue. Me arrastei o máximo que pude para longe deste, mas ele estava mais próximo, seu ar imponente e silencioso me amedrontava, meu coração estava quase saltitando para fora da minha boca. Não havia mais para onde fugir. Fui uma completa idiota, agi por impulso querendo me distanciar para não ao fazer se machucarem perto de mim, mas agora, sem apoio ou ajuda alguma, irei pagar com sangue.
Vendo-o de perto, ele é tão ameaçador quanto me lembrava: seu rosto coberto por uma máscara lisa com textura incomum, metade do seu cabelo rastafari preso e a outra cobria metade da máscara. Metade de seus braços cobertos por um manguito até suas mãos completado por um conjunto de roupa experimental e aparentemente militar, a sua espada dourada fora brandida até acima do seu cabelo. Ele junta as duas mãos para realizar o último golpe, em postura firme.
— Mãe… desculpa.
Fecho meus olhos. Ouço o vento cortar pensando no mesmo instante que ele me perfurou, não pude estar mais enganada. Ainda me senti por inteira e sem corte algum, mas houve outro som, de metais cerrando, outra espada entrou em batalha uma enegrecida com um alinha vermelha no meio como uma fita. Este me protegia do ataque. Vejo do meu lado outro homem, um cujas roupas mostram ser um andarilho por volta dos 30 anos. Ele tinha o mesmo estilo de cabelo que Merovak, mas mais curto. De onde ele veio? Por que ele me protegia? Fiquei, pois, esperançosa de que após isto ele aceitaria meus agradecimentos como pagamento.
— Corre!
Ele me ordena.
Sem pensar duas vezes, me retiro e volto a correr sem rumo.
O andarilho consegue afastar Merovak com um contra-ataque de sua espada.
Merovak se endireita e de refere ao seu inimigo.
— Sabe que você não será aquele a me impedir de ir atrás dela.
— Bom, posso tentar. — O andarilho rebate se colocando de novo em posição de ataque.
Ambos partem para a batalha.
⸗⸗⸗
Corro por mais uns metros e me escondo detrás de uma árvore. Eu estava desesperada, com medo e perdida. Eu hiperventilava e olhava para o horizonte. Me coloco em posição fetal com as mãos tampando as orelhas.
“O que eu fiz? O que eu fiz?”, eu repetia na cabeça.
Meu coração palpitava, eu não conseguia me acalmar, não estava no controle, eu sentia que estava para surtar até sentir uma mão aterrissar no meu ombro, uma enorme com a intenção amigável pelo que senti. Levanto a cabeça e me viro.
— Vai ficar tudo bem, pequena.
Temporizador! Mal pude acreditar quando o vi agachado me dando apoio, sua presença me deixou mais calma, mas o desespero de ter um assassino nas minhas costas ainda me deixa aflita.
— Você… Você é o…
— Sim. Sinto muito por me apresentar nesse momento, tentei fazer com que sua mãe me apresentasse formalmente no funeral, mas tornou-se difícil. Peço desculpas.
— Como me achou?…
Temporizador conta que mamãe o contatou após eu sumir da casa, deu-lhe uma pista e que chegou no local minutos antes de eu partir, e Marionete estava carregando Lilith para fora com o braço dela por cima do seu, bem na porta do castelo e explicou minha possível localização.
— Tudo limpo! — diz uma outra voz. Eu conhecia essa voz. — Shaw está fazendo o máximo para atrasar Merovak.
Era ele, é o Erik surgindo de uma das árvores, aterrissando próximo de nós.
Meu coração se aliviou e soltei um ar preso nos meus pulmões junto a um sorriso esperançoso. Nossos olhos se encontram e ele solta um sorrisinho tímido, contente em me ver. Mais uma vez esqueci do mundo naqueles pequenos instantes, sua face carregava o olhar simples que me encantava. Temporizador nos alertou para partirmos, nos despertando do transe de 10 segundos. Ele levantou procurando algo em uma das suas bolsas na cintura. Erik e aproxima e estende a mão para mim.
— Vem, vamos te tirar daqui.
Ele estendeu a mão. Ele estendeu a mão para mim! Meus olhos brilham sem notar e estendi a minha, sua mão áspera e macia apertou a minha com firmeza e me puxou, levantando-me.
Sem notar, eu estava boquiaberta, meus olhos o fitavam e brilhavam como uma menina boba, me senti com 14 anos de novo.
— Tudo bem? — ele estranha.
— Sim. Digo... está tudo ótimo. — Minha voz sai suavemente de um jeito tímido.
É claro que aconteceu um clima entre nós ali, fitamos um ao outro por uns segundos até meu salvador atravessar a árvore na qual me escondi, ele fora arremessado fortemente e sua espada voou cortando o vento, fincando numa outra árvore mais atrás. Nós três viramos nossos olhos para o inimigo que levantou a espada apontando para mim, ele inclina o rosto com intenção de atacar.
— Shaw! — Erik diz, virando para o rapaz no chão. — Levante-se, temos que ir.
— Cuidado!
O Carniceiro surge num piscar de olhos disferindo um golpe. Erik, com seus reflexos incríveis reagiu e me empurrou para longe da área do corte. Caio do chão gemendo, quase desloco meu ombro com a forte queda, meu braço esquerdo começa a tremer, adormecendo. Merovak se aproxima, minha expressão de medo extremo o motivou ainda mais, saber que eu estou por um triz é o seu combustível e é o que ele queria, me amedrontar, quase como se isto fosse diversão para ele ou um passatempo doentio que ele aprendeu a tirar proveito de como torturar suas vítimas psicologicamente até o sangue delas ser derramado.
— S-sai de perto! O-o-ou eu acabo com você... — minha falsa ameaça não engava nem mesmo um esquilo.
Minhas pernas não conseguiam me afastar mais rápido que seus passos, imponentes, pesados e sem pressa alguma, pois, ele sabia que eu não conseguiria fugir a tempo. E ele tem razão. Ele ergue, mais uma vez, sua espada para mim juntando as mãos.
“É meu fim.”, pensei.
Antes que suas mãos se encontrassem, duas outras mãos a impedem de prosseguir com seu objetivo. Esticadas como um elástico impedindo Merovak, Erik me salvando mais uma vez. Shaw, meu salvador, pula pelas costas do Carniceiro que perde o equilíbrio e cambaleia para trás, isto dá brecha para Temporizador me puxar para fora do perigo. Enquanto corre, me põe nas suas costas e me leva como um filhote para longe, minhas mãos agem sozinhas e rodeiam seu pescoço e se seguram.
— Temos que levá-la para longe! Segure-se.
Ele corria desenfreadamente, como alguém deste tamanho consegue correr feito um touro? Eu me chacoalhava, mas conseguia me manter firme em suas costas, o vento pressionava contra o meu cabelo o jogando para trás a todo momento, árvores vinha e iam num piscar de olhos na velocidade que estávamos.
Erik e Shaw tentavam ganhar tempo lá atrás, o máximo que conseguiam, prendiam-no, batiam e o esfaqueavam, mas o Carniceiro não se dava por vencido, seu vigor não diminuía e ele estava conseguindo se soltar daquela luta, o atraso não seria tolerado por ele. Os ataques coordenados dos dois contra Merovak foram previstos e neutralizados; golpes rápidos e certeiros em pontos do corpo foram necessários para enfraquecer Shaw, Erik fora surpreendido com o arremesso do seu amigo, ele o salvou, mas esses instantes foram o suficiente para Merovak voltar à perseguição.
— Ah, caramba… — ele comenta com Shaw nos seus braços.
⸗⸗⸗
Temporizador nos tirou do cemitério, me pôs no chão me dando a falsa sensação de que estava seguro. Ele olhava para conferir se suas suspeitas estavam corretas, mas o silêncio da noite era tão nítido quando o que os ouvidos captam. Apoiei-me numa árvore para recuperar o fôlego, o caminho sendo chacoalhada mexeu com meu estômago que embrulhou diversas vezes pelo caminho quase vomitando antes que eu pudesse descer. Por sorte, não aconteceu.
— E agora? — pergunto.
— O que quer dizer?
— O que acontece se nos livrarmos dele? Vai me levar de volta?
— O que a fez pensar nisto?
— É que eu só supus que…
— Não é muito inteligente a levar de volta para sua mãe, é o mesmo que retirar a carne do animal na jaula e entregá-la de volta em outro canto da mesma jaula. Tirá-la do reino é nossa melhor aposta. — Temporizador continua a chegar à retaguarda. — Não era isso que você estava fazendo?
Ele tem um ponto. E mamãe provavelmente percebeu também assim que acordou e viu minha cama vazia. Não quero colocar mais pessoas em perigo por conta de um assassino desgraçado na minha cola. Ele me deixou sem palavras, me calou abruptamente e assim me mantive por um tempo, olhei para meus pés como quem sentisse vergonha pelo que fez: fugir pensando que os manteria seguros de mais tragédias como a mais recente no castelo. Cruzei os braços com timidez, as mãos tocavam meus cotovelos e meu rosto tornou-se tímido.
— Garota — ele se apoiou no joelho. Suas grandes mãos aterrissaram em meus ombros como um conforto. — Muitos de nós fazemos o que achamos melhor para com os seus. Fazemos baderna, barganhas e decisões desesperadas, mas superar a vergonha e as enfrentar é o que realmente importa. Vamos tirá-la daqui antes que ele a alcance.
Sua voz — grossa e com uma espécie de filtro robotizado — passou um tom de esperança para me acalmar, funcionou por um breve tempo até ele chegar.
— Comovente. Mas terei o sangue dela nem que eu a cace pelo continente todo. Nem pude falar com você direito, velho. Encolheu ou sou eu quem estou com a memória turva desde a última vez? Tinha a impressão de você ser um pouco maior.
— Não vai ter a garota.
— Aqueles dois eram fortes. Eles eram dois, você é apenas um e está protegendo a magricela azeda de quem preciso.
— Então venha buscar.
⸗⸗⸗
Lilith estava de volta no bar, desta vez em outro, estava no balcão, sentada enquanto choramingava, murmurando sobre o que houve entre nós duas para o barman. Um tempo depois do funeral, Lilith tentou conversar melhor comigo, me consolar como sempre fez em momentos delicados como esse. Ela se manteve disposta esses anos para mim, e eu para ela, mas desta vez fora diferente. Eu estava a caminho da carruagem quando fui abordada por ela querendo dar-me um ombro amigo. Porém, meu momento de solidão e luto tomaram minha língua e falou por mim, interrompi sua fala para dizer que não podíamos mais continuar com nossa amizade, com nossa irmandade de tanto tempo com um assassino na minha cola e que ela deveria se afastar de mim por tempo indeterminado, terminei dizendo que isto não era um pedido, mas uma ordem de sua princesa. Vendo agora, fui insensível com tais palavras à minha melhor amiga que se afundou no álcool e à vida noturna.
— Entende? — ela diz ao barman que a ignora. Seu tom bêbado afastava qualquer um que estivesse próximo — Sempre estive lá para ela. Quando ela sofreu um corte no queixo eu estava lá para ela! Ou… quando ela teve seu primeiro período… EU ESTIVE LÁ PARA ELA. Ela me ajudou com tanta coisa — ela aperta a alça do copo de vidro. — E agora me trata assim? Quem precisa dela?! Ninguém…
Ela pega seu bracelete, nele marcava nossas escrituras, isto a fez chorar de vez enquanto passava os dedos nos rabiscos lembrando de todas as vezes que nunca largamos as mãos, até agora.
— Quem eu quero enganar?… Eu preciso de você sim… me desculpa, Ayla…
Ela deita a cabeça sob o balcão, chorando. Soluçava enquanto o barman apoiou por um instante suas mãos no ombro dela por sentir pena. Uma amiga de coração partido e exilada da vida da amiga, se sentia como u chiclete usado que é mastigado e jogado fora. Se sentia no fundo do poço. O barman parecia que ia dizer algo, mas fora ofuscado pelo quebrar da parede. Temporizador atravessou o bar, de dentro para fora, até o outro lado, arremessado com brutalidade e quebrando as vidraçarias e caindo na rua de pedra lisa. Lilith se espantou com o arremesso caindo no chão, viu o agressor passar pelo bar, andando sem pressa e com a espada em mãos bufando pelo caminho.
— É… é ele…
Lilith congelou de medo, ele passou por ela com apenas alguns poucos metros de distância. Seu coração palpitava. Seus olhos não desgrudaram dele indo até o Cavaleiro Atemporal que me protegia entre seus braços. Ele abre como um grande casulo e caio para fora tossindo um pouco. Minha cabeça estava zonza e não conseguia ter forças direito para me levantar. “Corra, saia daqui.”
Lilith observava, mas seu corpo não obedecia à sua vontade de ir me ajudar a sair do perigo. Carregada de raiva, por um instante ela se negou, tratada como uma qualquer e descartada, para que ela ajudaria a ex melhor amiga que disse que não queria ter mais nada com ela? Não era problema dela, de fato. “Isso é problema dela”, pensou mal-humorada. Apertou as mãos e estreitou a sobrancelha, isto não era mais coisa na qual ela deveria se preocupar, afinal é apenas a sua ex melhor amiga em perigo de morte. Seria sua tomada de decisão final, mas uma voz ecoou na sua mente, a fez repensar sobre tal decisão, apesar de ter dito para ela se afastar, ela ainda era sua amiga e agora seria o momento de provar que eu ainda podia contar com sua ajuda.
— Vai desistir agora?
Merovak chuta a espada de Temporizador para perto deste. O Cavaleiro agarra a arma branca, ele mexe num dos ombros como se estivesse o alongando. Com uma mão, ele brande a espada rapidamente o chamando para o combate da mesma forma que um toureiro instiga o touro para o duelo. O homem robusto, então, se põe na pose de batalha e solta, calmamente, um suspiro. A poeira baixou completamente com um observando o outro avançar com prudência.
A batalha retorna com o embate de dois lutadores habilidosos, o ranger do metal e o clangor das espadas dançantes, manobras de espadas incríveis e tão habilidosas que fariam os guerreiros e guardas do castelo ficarem boquiabertos de inveja; de um lado um assassino cuja reputação é afiada como sua lâmina escura e detalhes ondulados em dourado no centro, sua espada fina corta o ar com elegância e precisão; do outro, um homem visto por sua filantropia e pioneirismo na ciência, sua visão esperançosa de mundo é grandiosa assim como sua espada, de porte grande e prateada, sua espada de um gume chega até alguns centímetros acima da cabeça do Temporizador com a extremidade da ponta cortada na vertical. O embate é extremo, quem sabe também não seja apenas uma batalha física, mas mental para ver qual dos dois terá o descuido de abrir uma brecha para o outro, seus passos são eficientemente rápidos e precisos como uma costureira experiente em seu tricô.
— Fuja! — berrou o Cavaleiro num tom preocupante.
Tateei minha bolsa suja e pus meus pés para trabalhar mais uma vez. Passo a alça pelo pescoço e não olho para trás. O Carniceiro conseguiu ver minha fuga e logo se esforçou para escapar do embate. Em um movimento rápido zapeou a espada do Cavaleiro no chão criando gelo até seu punho, ele salta por cima deste, mas seu tornozelo é agarrado pela outra mão do Temporizador. Este criou uma falta esperança de que teria o impedido, mas o engenhoso vilão perfura alguns de seus dedos. Isto o libertou. Assim deixa o Cavaleiro agonizando de dor enquanto tentava se libertar a tempo.
Merovak volta à perseguição.
⸗⸗⸗
Vielas, o bairro ao oeste do reino é considerado as mais pobres e periféricas do reino, com praças malcuidadas, ruas esburacadas e com encanamento de esgoto borbulhando para fora nas laterais das pistas onde ficam as depressões na terra que levam para áreas de lixo e alagamento quando chove. O bar onde estávamos estava de encontro com o início das vielas, as casas de madeira e amontoadas refinavam o ar de miséria e podridão saindo do esgoto. Lembro-me bem de já ter os visitado antes e ter feito apelo para que meus pais tomassem providências dignas para estas pessoas, mas não sei dizer se tentaram algo ou se descartaram a ideia por causa do povo que reside aqui ser muito exigente e teimoso. Pelo caminho, trombo com algumas pessoas que mal me reconhecem por eu estar correndo pelas ruas estreitas. Passo por uma padaria cujo vidro sujo reflete minha silhueta e a de meu perseguidor em cima das casas. Sua corrida por cima não era tão funcional, mas por ser ágil conseguia manter-me no seu campo de visão suficiente para manter a perseguição.
Sabia que logo meu vigor para correr terminaria e teria que parar para respirar um pouco. Sombra me mantinha atualizada sobre o paradeiro do nosso Carniceiro e me dava dicas para onde seguir e dobrar. Admito que ela estava melhor do que eu em senso de direção. O som dos trovões me alertava para a chuva a caminho da cidade e logo a visão seria turvada pela chuva, talvez isso me desse vantagem, mas o problema é ficar viva. Sem notar, estava subindo as vielas.
“Cuidado!”, berrou Sombra criando um impulso e me joga para o lado. Uma adaga acerta um barril assim que sou empurrada, e outras seguem meu trajeto, me senti como um animal sendo preparado para o abate, a carne sendo amaciada para o corte. Ao dobrar bato com um muro mediano de madeira, a estrutura é um pouco mais alta que eu, mas é possível realizar um salto. Sem perca de tempo, dou uma última olhada para trás e salto para ir para o outro lado, entretanto assim que meu corpo sobe para a extremidade do muro uma das adagas acerta meu ombro. Caio com tudo no deslizamento que não percebi, tombo e rolo para baixo e mais abaixo, a lama formada pelo esgoto grudou na minha pele e meu corpo, meu cabelo, preso se soltou com a queda e, no fim, a adaga se fincou profundamente na minha carne. O deslizamento me joga para o lixão da cidade, a terra úmida e fétida tomou meu nariz assim que levantei o rosto, admito que foi um pouco difícil abrir os olhos com a lama.
Um lugar de pilhas e mais pilhas de resíduo de todos os tipos, apenas largados neste pedaço da cidade que ninguém se importa, um lugar sem vida e alma e que é tratado como qualquer coisa, é ótimo, pois, para aqueles que buscam algum item de valor por, em alguns casos, ter rubis quebrados, peças de montagem e chapas de metal para ferreiros. O lugar, imenso, transmite um tom acinzentado e despótico com fumaças das máquinas sempre em funcionamento poluindo não apenas o ar, mas o espírito das pessoas que moram por perto. Lembro-me de ler, numa das aulas com Paracelso, que o bairro do Oeste é o bairro com mais dados sobre doenças como pneumonia, sarampo e outros. Claro que isto provavelmente é causado pelo lixão, anos de acúmulo teve suas consequências, mas isto nunca foi devidamente comprovado.
Me escondo pelas pilhas assim que vi Merovak descer pela ladeira, meus olhos espreitavam o desconhecido dali enquanto meu coração palpitava amedrontado, meus ouvidos atentos ao chamado do vilão para me amedrontar e meus pés de moviam devagar para não fazer barulho.
“Acha que aqui é um bom lugar para se esconder?”
— Acha que eu queria vir para cá? Segui cegamente suas orientações lá atras e agora é minha culpa de acabarmos aqui? — sussurrei.
“Precisamos achar uma saída, até onde pude perceber, a saída principal está distante e seu braço ainda está com a adaga.”
— E o que quer que eu faça?
“O retire. Retire ou pode ficar pior”
— Por acaso quer que eu morra por falta de sangue?
“Isto se chama exsanguinação. Agora pare de ser frouxa e retire essa merda do seu ombro.”
“Estou morta de vez, agora.”
Sua arrogância me impulsionou a obediência. Viro-me de costas para a pilha, limpo meu rosto e respiro fundo, com a mão esquerda agarro suavemente o punho fincado no ombro direito e já sinto um leve desconforto, sinto a extremidade do ferro e com calma estico-o para fora, o sangue escorre brutalmente enquanto engulo grito e dor, presos na garganta. Enfim o retirei por completo. Minha mão estremece e meu ombro adormece. Meus lábios inferiores tremem e minha respiração acelera mais uma vez enchendo meus pulmões.
Ouço-o se aproximar.
Ele surge, mas lá há apenas mais pilhas. Ele pisa no chão e nota a poça se sangue, sua frustração se torna interesse. As gotas seguiam cruzando amontoados de lixo e ferro. Logo ele me encontraria.
Cheguei na área das máquinas, engenharias em cubos e cilindros cuspindo chama, pressão e fumaça. Pequenos funcionários autômatos pegavam pequenas pilhas e jogaram na esteira que comia os restos e transformava em material reutilizável, o que não pode ser usado é transformado em carvão reciclável. A estatura dos pequenos chega até meu joelho, de corpos finos eles possuem a cabeça achatada lembrando uma semente com um olho de vidro dividindo a face. Seus corpos são finos, mas resistentes se movimentando com esferas de ferro, já enferrujadas, na sua base. Ao passar por alguns, um bate no meu tornozelo e causo um estrago na sua pilha que ele acabou de fazer. Ele resmunga numa linguagem que não conheço e volta ao trabalho. Em suas cabeças há o nome de série autômata deles: JULL’s. Minhas desculpas foram completamente jogadas naquele mesmo lixo que ele carrega.
— Eu sinto muito… — meus olhos o veem trabalhar.
“Sabe que ele não se importa, não é? Trabalhar é o que importa a eles, afinal.”
Logo voltei a andar. Sombra se projeta através da minha sombra pelos seus olhos brancos.
— Eu sei, mas é que… sei lá, senti-me na obrigação de pedir desculpas…
“Igual quando pediu desculpas ao Senhor Mãozinha no início da sua adolescência?”
— Em minha defesa, aquele dedo era grande demais para ser um dedo mesmo! E eu estava…num período hormonal gigantesco…
— Ser perseguida a deixou traumatizada a ponto de ter eu falar sozinha para, então, se acalmar?
Falou o Carniceiro no topo de um monte de lixo próximo. Me assusto e as palavras fogem da minha língua. O vejo com a espada em mãos parecendo uma figura fantasmagórica na lua daquela noite, sua presença é impactante e sinto uma forte presença, sinto uma alfinetada no estômago e meus pés travaram. Chamo Sombra sutilmente, mas ela sumiu nas sombras novamente, deixando-me só com o Carniceiro.
— Seu vigor é bom, princesa. Mas já chega. — Ele desce de cima. — Me faça o favor e tente não fugir mais, certo?
— P-por que quer me matar? Eu já estou ferida, pegar este meu sangue vazando não lhe basta?
O vilão bufa, frustrado mais uma vez. Passa a mão pelo cabelo e descendo até o pescoço suspirando, e diz:
— Veja, não é de seu sangue o necessário. Um caçador de verdade não caça simplesmente por caçar, ele tem um propósito para com o animal abatido, conseguir sua carne, couro e o necessário. Ter seu sangue é como abater a ave por uma mísera pena. Não, Não.
Ele se aproximava.
— O que preciso — ele continuou. — é de sua essência. Sua faísca de espírito e corpo para então o trazer de volta. Ele consertará as coisas…
E então me tornar mais uma vítima? Eu me negaria se pudesse, por sorte Temporizador chegou o empurrando com o ombro para a pilha o nosso lado, a estrutura caiu derrubando pilares de ferro, chapas, e outras coisas.
Soltei um ar de alívio com um sorriso se voltando para Shaw e Erik que chegaram a tempo.
— Como me acharam?
— Depois de subir o bairro — Erik diz —, achamos rastos de adagas, na visão de cima a vimos aqui com o gótico aterrado ali.
Meu instinto me fazia querer pular com um abraço para cima dele, mas seria inconveniente por não nos conhecermos bem, mantive-me quieta. Shaw bufa para irmos embora. Temporizador retorna concordando com a ideia.
— Precisamos sair da cidade. Sem rastros.
— Sem rastros. — Shaw diz com escárnio no tom. — Por que o Erik não faz dessa fez? No outro mundo ele fazia direto.
— Aqui não é a mesma coisa, cara, eu preciso ver pra onde ir, eu cheguei faz uma semana.
— Isso não é desculpa, ‘cê já viu acima do muro.
— Shaw… — Temporizador tenta intervir com a voz arrastada. Ele estava frustrado, como se aquilo não fosse a primeira vez acontecendo.
É divertido os ver discutir, agiam como irmãos, Shaw sendo o mais velho e rabugento. Enquanto discutiam, Merovak surge pelas pilhas, gemendo e contorcido. Seus músculos atrofiaram, e os ossos quebraram. Ele se esforçava para ficar em pé. Parecia uma aberração de circo que se recusou a morrer.
— Saiam… — sua voz saía engasgada. Vê-se uma brecha para um dos seus olhos pela máscara rachada, são cor de mel e com as veias avermelhadas ao redor das pupilas. Seu olhar é selvagem.
Merovak agonizou enquanto seu corpo se recuperava dos ferimentos e para nossa surpresa ele possui um fator curativo: seus ossos se remendavam, músculos se realocavam e tecidos da pele se curavam. Erik e Shaw concordaram no mesmo instante em se ajudar a criar uma fissura de escape. Temporizador lidaria com o vilão até estarem prontos para ir. Desta vez seria uma luta guerreada com os punhos. Suas armas, guardadas teriam que esperar por uma próxima vez. Meus olhos não paravam de piscar visto a complexidade que teria este embate, admito estar curiosa para ver o vencedor e ao mesmo tempo preocupada se o grande Cavaleiro Atemporal perder. Eles se encaram uma última vez, o Carniceiro avança primeiro, atravessando o lixão desenfreadamente. O Cavaleiro com as mãos na altura do rosto parecia descansar a mente, sem ansiedade ou medo, ele controlava a respiração calma a todo o momento esperando o primeiro ataque vir com tudo nele. Claro que esperava o pior, mas sua reputação é bastante conhecida por nós e metade de Ecor, sempre dava um jeito de vencer as lutas. Não seria diferente agora, não é? Sei que a dúvida geralmente não acaba bem, mas ela é sempre recorrente. Mordo os lábios e as sobrancelhas estreitam sob minha testa. O assassino vinha com intenção de matar, de fato. Chegando perto, o Cavaleiro ajeita o pé em posição de batalha e quando chega a hora Merovak é acertado por uma bola de demolição enferrujada.
— O quê?…
“Que luta merda.”
“Agora você aparece?”, penso. Olho em volta e lá está ela, Lilith. A garota estava num velho motor de demolição jogado fora. Pelo visto ainda funcionava. Mostrou metade do corpo para fora do cubículo fazendo sinal. Ela chama por mim e eu por ela. Nunca estive tão feliz em vê-la e tão agradecida, vou, pois, a seu encontro. Ela se desequilibra e cai no chão, ainda estando um pouco bêbada. Depois de ajudá-la a levantar ela me esclarece o que houve. Seu falatório sem fim fora calado com um abraço apetado, solto um sorriso e a levanto por um instante com tamanha felicidade.
— Obrigada. Obrigada!
— É claro, não podia deixar um porra deste matar minha melhor amiga, não é? Se tiver que morrer que seja lutando contra uma criatura incompreensível de outro plano existencial.
— Não poderia imaginar morte mais honrada que esta, minha amiga!
Temporizador me chama, é hora de ir. Meu sorriso se ofuscou, assim que me despedi largue nossas mãos. Mas ao dar alguns passos ela me agarra e avisa que irá junto. Tento a avisar que não podia, mas desta vez ela não aceitaria minhas ordens. Não. Desta vez ela bateu pé e iria com ou sem minha permissão. Solto um sorriso de canto para ela.
— Não dá para segurar muito. Temos que ir! — Alertou Shaw.
Assim que estávamos nos aproximando, o Carniceiro surge mais uma vez, estava preso debaixo da terra, mas estava se soltando pouco a pouco. Nos apressamos e assim que íamos atravessar ocorreu um inesperado.
— Ayla cuidado! — berrou Lilith.
Estas foram a última coisa que ouvi antes de ser empurrada para os braços do Temporizador. Lilith me salvou uma última vez, desviou-me de uma das últimas adagas que o vilão carregava; Lilith suspirou uma última vez antes de ter seu pescoço perfurado bem no vaso onde ligava com o coração. Meus olhos se arregalaram e solto um grito de desespero. Seu corpo cai em uma pequena pilha. Erik berrou para irmos e Shaw entrou primeiro. Temporizador sabia que eu seria pega se eu ficasse pela Lilith. Ver outro membro do meu ciclo de vida morrer na minha frente… A mesma sensação no castelo voltou. O Cavaleiro me agarrou no mesmo instante pelo estômago, me contorço esticando as mãos na direção da Lilith. Meus olhos avermelharam e as lágrimas se soltaram assim que pulamos para dentro da fenda.
Agora Lilith, minha conselheira, minha melhor amiga, minha irmã, está morta…
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios