Dívida a Quitar Brasileira

Autor(a): The Mask


Volume 1 – Parte 1

Capítulo 6

Tomava goladas rápidas mais um copo de café, por mais que, de tão quente, estivesse quase derretendo sua garganta. Sentiu falta do seu açúcar pela manhã, então adoçou dezesseis vezes sua xícara, com a pequena colher de chá da sala de descanso. Dezesseis vezes para cada copo. Este era o seu quinto.

Estava ansioso, elétrico, aterrorizado. Suas mãos tremiam e seu olhar repousava continuamente no relógio de sua sala. Havia tomado tanto café que seus olhos mal eram capazes de focar no ponteiro das horas. No entanto, sabia que não tardava muito das nove horas… talvez já fosse dez horas da manhã na verdade…

E se já forem 11… 

Perdia a noção do tempo. Quando seus olhos finalmente foram capazes de focar, sequer haviam se passado das oito. Fazia menos de uma hora que havia chegado ao escritório. Já tomei tudo isso de café? O tempo não passava, os segundos estavam se dividindo e se multiplicando, como um horrendo monstro hermafrodita. Sua cabeça caía sobre o próprio peso, não de sono, obviamente, mas devido a pensamentos pesados demais para que seu consciente fosse capaz de aguentar. 

Faltavam cento e dez horas para a casa ser tombada… Digo, quase cinco dias. Mais perto do que ontem, mais distante do que nunca. 

Quanto mais se pensava nisso, mais seus cabelos caiam, aumentando ainda mais as entradas de sua testa. Não era o nervosismo que fazia seu cabelo cair, mas sim suas próprias mãos, que puxava tufos e mais tufos de cabelo de maneira involuntária. Era irritante e inconveniente. Se sentia preso, amputado e incapaz. Num impasse onde ele deliberadamente se colocava por conta de um mero e enorme e lindo palácio… 

Sequer era capaz de mal dizer aquela casa, como se fosse algum tipo de blasfêmia terrível. Aquele lugar é perfeito, e nada pode ser melhor do que morar numa casa como aquela. Uma morada tão linda e divina que transformava comunistas em liberais-democratas. 

Delírio. Não percebia que uma pessoa havia abandonado aquela casa. Ou percebia, mas apenas ignorava a sensação incômoda de que algo estava errado naquilo tudo. Como pode algo estar errado com relação aquela casa? Se algo está errado ali, então nada nunca estará certo!

Rindo deste pensamento tolo e secando a própria testa suada, notava mais uma vez o quão abafada era sua sala. Se virou então para a janela de seu próprio escritório e percebeu, engolindo em seco, que ela ainda estava emperrada. 

Foi repentino o som de batidas à sua porta, mal teve tempo de dar a permissão para que o visitante entrasse quando a entrada foi escancarada. Esqueceu-se de trancar seu escritório, ele notou. Seu chefe era quem havia batido, e ele surgia com um enorme sorriso no rosto, animado e encorajado a ganhar algo. 

—Samu… — Ele começou a dizer. Era o único no mundo que chamava Goldberg desta maneira. O banqueiro nunca havia dado essa honra para ele. — …acho melhor você se sentar. — Continuou, se sentando na cadeira de Samuel. A mesma onde o banqueiro havia se sentado quando viu o anel de jadeíta de Lorenzo e as fotos da casa de Pascal. — Trago boas novas.

A contra gosto e hesitando, Samuel se sentou na cadeira onde os clientes normalmente ficavam. Ambos os assentos eram do mesmo modelo e aparência, no entanto tinham uma enorme diferença. 

A cadeira onde os clientes se sentavam, Goldberg notava agora, tinha marcas na parte inferior. O nervosismo de todos transparecia de alguma forma e todas estas se acumulavam ali, abaixo dos braços e do próprio assento. Pessoas que tentaram barganhar ou burlar as regras de um contrato sem furos e que por poucas palavras não estavam permutando a própria vida quando assinavam. 

Inevitavelmente sentiu esse nervosismo se acumular no seu próprio sistema e se lembrava, mais uma vez, que nunca havia dito para seu chefe que queria comprar a casa de Pascal. 

— Qual a boa… — Disse, tentando fingir tranquilidade. Abriu um sorriso largo enquanto dizia ao mesmo tempo a palavra — …Chefe!

 — Tenho um trabalho novo pra você. — Ele disse, ignorando o sorriso esquisito de Samu. — Escute essa, nosso corretor, você conhece ele né?

— O Mi…

— Isso, o Tim. — Disse ele, o cortando. Parecia apressado, como se estivesse atarefado. Este não era o nosso corretor substituto…? — Ele disse que estava ocupado demais… algo sobre um trabalho de uma vida sabe. Baboseira assim. 

— Enten…

— Então ele cancelou a checagem que ia fazer na casa de Pascal. Lembrasse dela, não é?

— Claro que me…

— Pois é, e acabou que não tem mais ninguém que possa ir verificar e de fato… apreçar a casa, sabe? 

— E quanto ao Mitchell? 

— Você conhece o Mitchell?

— Claro que conheço, ele que apurou todas as casas que tombamos nos últimos meses. 

— Foi o Mitchell não é…

— É, foi ele. — Goldberg pontuou isto, estranhando a forma como aquilo pareceu verdadeiramente surpreender e calar seu chefe. Seu silêncio era palpável e a forma como olhou para todas as direções do cômodo fez Samuel se perguntar se ele não estava pensando em uma solução para aquele dilema.

— O Mitchell foi demitido. — Ele correu para dizer, estalando os dedos quatro vezes logo depois. — É, É… O Mitchell foi demitido. 

— Por que ele foi demitido?

— Ele transou com a minha irmã…

Houve um silêncio inconveniente logo em seguida que essas palavras foram ditas, como se nenhum dos dois de fato acreditasse nesta frase. Que enorme baboseira.

— Ele transou com a sua irmã?

— Ele transou com a minha irmã…

— Eu não sabia que tinha uma irmã.

— É de terceiro grau, por isso nunca ficou sabendo dela… 

— Como é…

— Mas não importa. — Ele continuou, estalando os dedos mais uma vez, tentando retomar a atenção do banqueiro, como se em algum momento daquela conversa estranha ele tivesse se distraído. Era esquisito ver o seu chefe agindo daquela forma. De fato, pouco o conhecia e ouvia muito de vários colegas de trabalho sobre ele. Mas não eram de fato próximos. Trabalhavam juntos há alguns anos e Samuel tinha a sensação que o homem se importava apenas com dinheiro e tudo que rodeava este assunto. — O que importa, Samu, é que você vai lá fazer este serviço, para determinar o real valor da casa, contabilizando e descrevendo tudo que está lá dentro.

— Senhor, entendo mas…

— Você vai se sair bem, relaxa. — Seu chefe continuou a dizer, adivinhando que Samu estava prestes a dizer que não possuía qualquer formação para fazer algo como aquilo. — Basta descrever e contabilizar tudo o que ver pela casa, com os mínimos detalhes. Entendeu?

— Entendi… 

— Que bom. — Ele respondeu, se levantou e caminhando para fora da sala, como se o assunto estivesse acabado. — Sei que não é formado nisso, mas vai se sair bem.

— Antes disto, chefe. — Chegou a hora. — Posso lhe fazer duas perguntas?

— Por quê duas? 

— São bem simples, sério. — Samuel disse, tentando distanciar de sua cabeça o quão seca estava sua garganta e a quantidade de suor que saia da palma de suas mãos. Talvez fosse de fato um assunto simples e pouco complexo para o chefe do banqueiro, mas Goldberg sentia que quebraria o próprio pescoço se ouvisse uma má notícia quanto a seu desejo de comprar a casa. 

Já temos um comprador, ele é um criolo milionário, acredita? Ele imaginava seu chefe dizendo, com um sorriso enorme e mostrando o belíssimo anel de jadeíta em seu dedo. Ele não possuía nenhum adorno desse tipo no momento, claro. Com exceção das de ouro, que no momento pareciam baratas e falsas como bijuteria. 

— Ande logo, homem! Qual sua dúvida?

— Seja sincero comigo… — Talvez eu devesse suavizar o assunto, antes de perguntar. — O que aconteceu pro Mitchell e o Tim recusarem irem até a casa? — Samuel perguntou, esperando que esta seria uma simples pergunta. Talvez estejam doentes, as leis trabalhistas têm sido um verdadeiro inferno para ele. No entanto, ele nada disse. Suspirou com força e olhou para cima, com os ombros cansados. 

— Não colou a história da irmã, né?

Obviamente que não. Se imaginou dizendo isso, com toda a seriedade e todo o orgulho que o imaginário mundo de sua cabeça poderia oferecer. 

— É até ridículo dizer isso… — Ele começou a dizer, gesticulando suas mãos junto de suas palavras que, de alguma forma, pareciam escancarar o desgosto que sentia daquela assunto. — Eles recusaram o pedido porque ouviram que alguém morreu dentro da casa! Acredita nisso? 

Seu chefe apenas riu após dizer isto, mas havia algo além ali. Era estranho encarar aquele homem rir daquela maneira, como se sua incredulidade fosse tamanha que em certo ponto, começava a desconfiar de que algo estava errado. Lentamente, sua risada cessou e ele encarou o chão, como se temesse até mesmo olhar para seu funcionário. 

— Eu não falei só com eles dois… — Adicionou, finalmente olhando para Samuel. Ainda estava diante da porta e de alguma forma o calor começava a se acumular no cômodo mais uma vez. Tenho que chamar um vidraceiro para cuidar desta janela emperrada. — Falei com outros sete corretores. Nove homens ao todo, de tantas idades, com tantas experiências… — Ele caminhou de volta para a mesa de centro, e se sentou na cadeira de Goldberg, suspirando de maneira pesada logo em seguida. — Todos conheciam a casa. Todos recusaram o pedido independente do contrato que eu oferecesse. Todos disseram que alguém já havia morrido naquele lugar… Todos disseram para eu largar a casa. — Abriu um sorriso, largo demais para parecer natural. — Que superstição mais tola, não é?

Ele riu com aparente nervosismo, e logo ambos ficaram em silêncio, mas por razões diferentes. Samuel ouviu aquilo, com a sensação de que um objeto sagrado estava sendo blasfemado diante dele. Boatos desgraçados. Vis e vazios. Tantos morrem todos os dias, qual o problema se alguém morreu ali? 

Se coçava, como se seu inconsciente tentasse o avisar, colocando uma pulga atrás de sua orelha. Sentia a tentação de colocar as mãos sob a mesa e murmurar para qualquer divindade o ouvir. Um pouco de sorte para o que está por vir não cairia mal. 

— Mas bem, aposto que com você não vai ser assim, né Samu. — Isto não havia sido uma pergunta, e Goldberg percebeu de imediato. — É só isso? Bem, estarei indo então. 

— Ainda tenho uma pergunta, senhor! — Se apressou a dizer, antes que perdesse a oportunidade e a coragem. O homem apenas se irritou e fazendo um barulho esquisito com a boca, o banqueiro seguiu para perguntar aquilo que vem lhe incomodado todos estes dias. — Eu poderia, senhor… comprar a casa de Pascal?

— Não. — O homem disse de imediato, sem papas na língua ou quaisquer segundas intenções. — Definitivamente não, Samu. Onde arranjaria tanto dinheiro para comprar algo assim?

— Eu ficaria sem salário o ano inteiro se precisasse! 

— E um homem qualquer poderia comprar esta casa de imediato, e eu não precisaria receber este dinheiro ao longo de um ano inteiro. — Afirmou, colocando a mão por cima de um dos ombros de Samuel. Apertou com força, obrigando o banqueiro a prestar atenção ao próprio chefe. — Você compreende que esta casa estará em mãos melhores se forem para alguém que combine com a upper east side. Que tenha dinheiro para gastar… as vezes até mesmo revendendo ela.

— Mas… 

— Não tem mas, Samuel. Eu nunca aprovaria que você comprasse esta casa, que dirá com uma proposta como “fico o ano inteiro sem salário”. Você não ganha pelo ano inteiro para pagar uma casa como essa. 

Era verdade. Uma dura e triste verdade para o banqueiro. Se sentia desiludido com aquele mundo real e doloroso diante dele, se dilacerando sobre a pesada mão de seu chefe por sobre seu ombro. Não poderia ter a casa. Ela seria vendida para outra pessoa com mais dinheiro do que ele… Uma que tem um anel de jadeíta… e eu não.

— Faça seu serviço na casa e se despede, tá legal? Não se iluda desta forma.

Foi com estas ácidas palavras, postas sobre a cabeça de Samuel como se fosse banhado por elas, que seu chefe saiu da sala. Tudo parecia dolorosamente monótono, enfadonho e imutável naquele momento...

O relógio ainda tocava. 

O banco dos clientes ainda estava destruído em sua parte inferior. 

O leve cheiro de café ainda existia pela sala, mais forte por conta do calor. 

No entanto, algo mudou.

A janela agora, para a tristeza do banqueiro, esta permanentemente emperrada. 



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