Diários de uma Apotecária Japonesa

Tradução: Noelle Tokito

Revisão: Kessel


Volume 2

Capítulo 4: Peixe Cru

— Xiaomao, posso tomar um momento do seu tempo? — perguntou Gaoshun, quando Maomao estava prestes a voltar para seu quarto depois de encerrar o trabalho do dia. O mestre que compartilhavam, Jinshi, evidentemente cansado de seus próprios esforços, foi diretamente tomar um banho após a refeição.

— O que houve? — perguntou Maomao, ao que Gaoshun hesitou por um instante, alisando o queixo para disfarçar, e, por fim, soltou um longo suspiro. — Há algo que gostaria que você analisasse. — O auxiliar de Jinshi parecia ter ainda mais rugas na testa do que de costume naquele dia.

O que Gaoshun mostrou a Maomao foi algo escrito em uma coletânea de tiras de madeira, que ele desenrolou sobre a mesa. Maomao as examinou atentamente. — Um registro de um incidente antigo — observou ela. As tiras relataram o caso de um comerciante que havia sofrido intoxicação alimentar há cerca de dez anos. A vítima teria consumido baiacu.

Maomao engoliu em seco, cobiçando. Argh, bem que eu gostaria de comer um pouco de baiacu.

Visivelmente irritado, Gaoshun a observava. Maomao balançou a cabeça e apagou o sorriso do rosto.

— Na próxima oportunidade, levarei você para comer algo do tipo — disse Gaoshun, embora acrescentasse, de forma incisiva, que fígado de baiacu não seria servido.

Maomao ficou um pouco contrariada com isso (os verdadeiros apreciadores sabem desfrutar daquela sensação única!), mas, de todo modo, nada como a perspectiva de uma boa refeição para motivá-la em um projeto. Começou a examinar os materiais com atenção. — Posso perguntar por que estamos olhando isso?

— Há muito tempo, meu trabalho acabou envolvendo esse caso. Um antigo colega meu voltou a mencioná-lo, porque ocorreu recentemente um incidente bastante semelhante.

Esse antigo colega seria de antes de Gaoshun se tornar eunuco? Então ele realmente tinha sido um oficial militar ou algo assim.

— Bastante semelhante? — disse Maomao — Em que sentido? Ela deixou de lado, mentalmente, a questão sobre o passado de seu companheiro. Francamente, estava mais interessada no envenenamento do que em ouvir falar da vida de Gaoshun.

— Um burocrata comeu um prato de baiacu cru ralado com vegetais e agora está em coma.

Em coma? Maomao não gostou do que ouvira. Gaoshun nunca foi do tipo que usava eufemismos, e ela duvidava que tivesse começado justamente agora. Lançou um olhar discreto ao rosto dele. Ele trazia o mesmo vinco na testa, a mesma expressão um tanto cansada de sempre, mas parecia também estudá-la da mesma forma que ela o observava.

— Com licença, mestre Gaoshun, mas poderia me dar mais detalhes? — Apesar da franqueza, Gaoshun não vacilou; apenas assentiu lentamente, com as mãos ainda ocultas nas mangas.

— Sim, claro. Ficarei feliz em lhe contar, Xiaomao. Tenho confiança de que você sabe onde está se metendo. — Ela não tinha certeza se aquilo era um elogio. O sentido, no entanto, era claro: mantenha a boca fechada. — Além disso — prosseguiu ele —, será que eu poderia simplesmente encerrar a história aqui?

Que provocador. Ele sabia perfeitamente que a curiosidade de Maomao já estava atiçada. — Por favor, continue — pediu Maomao, franzindo a testa ao perceber o quanto Gaoshun parecia divertir-se com a importância repentina que ganhara para ela.

Gaoshun apontou para as tiras de madeira e disse: — No caso atual, o prato incluía pele e carne de baiacu, quase cruas, apenas escaldadas rapidamente. A vítima consumiu o prato e caiu em coma.

— Carne? Quer dizer, não os órgãos internos?

— Exato.

O veneno do baiacu não podia ser eliminado pelo calor, mas estava concentrado principalmente nos órgãos do peixe, sobretudo no fígado; a carne propriamente dita era consideravelmente menos perigosa. Maomao teria imaginado que qualquer caso de coma devido a baiacu quase certamente envolveria consumo do fígado. Seria possível que tanto veneno tivesse se acumulado na carne? Dependendo da variedade exata do peixe e do ambiente em que fora criado, a carne podia, ocasionalmente, ser tóxica. Ela não tinha provas suficientes para afirmar uma coisa ou outra, de modo que não podia descartar a possibilidade.

Quando comera baiacu, fora sempre a carne menos venenosa. Bem, quase sempre, de vez em quando lhe dava na cabeça colocar um pedacinho de fígado na boca, mas era um jogo perigoso. Recordava-se bem da madame obrigando-a a beber água até quase revirar o estômago do avesso.

— Para ser sincera, não vejo nada de incomum até agora — disse Maomao.

— Bem, há um detalhe que ainda não mencionei — disse Gaoshun, sacudindo lentamente a cabeça e coçando a nuca como se estivesse envergonhado. — Os cozinheiros envolvidos no preparo dos pratos insistem que não usaram baiacu. Nem desta vez, nem no incidente de dez anos atrás.

Gaoshun agora franzia o cenho abertamente, mas Maomao apenas passou a língua pelos lábios. Aquilo estava se tornando mais interessante a cada minuto.

Havia vários pontos em comum entre os dois casos. Para começar, tanto o burocrata do caso atual quanto o comerciante do antigo eram apreciadores de iguarias exóticas. Em ambas as ocasiões, consumiam pratos de peixe cru ralado com vegetais, cuja carne havia sido escaldada rapidamente em água fervente. Contudo, ambos estavam acostumados a comer peixe totalmente cru. O sabor fresco do peixe cru podia ser maravilhoso, mas a carne não cozida frequentemente abrigava parasitas. A maioria das pessoas não gostava, e em algumas regiões comer peixe cru era até mesmo proibido.

Comedores ousados, como as vítimas em questão, estavam habituados a consumir baiacu. E, embora negassem publicamente, alguns deles, por vezes, deixavam deliberadamente um pouco da toxina no peixe para desfrutar da sensação de formigamento que ela produzia.

E ainda eram julgados por isso! Filisteus, pensou Maomao. Ela acreditava que as pessoas deviam ser, em linhas gerais, tolerantes com as preferências alheias, ao menos quando se tratava de comida.

Nenhum dos cozinheiros que haviam preparado os pratos contaminados admitia qualquer irregularidade; ambos eram categóricos em afirmar que não tinham usado baiacu. E, ainda assim, os homens que comeram tais pratos acabaram vítimas de intoxicação alimentar. Vísceras e pele de baiacu foram encontradas no lixo da cozinha e apresentadas como evidência, mas o fato de que os órgãos internos estavam inteiros e intactos era entendido como prova de que nenhuma parte deles havia sido consumida.

Eles levaram essa investigação realmente a sério, pensou Maomao, sentindo-se estranhamente impressionada. Sabia que havia funcionários demais no mundo que se contentavam em incriminar alguém com base em indícios circunstanciais ou, se necessário, provas forjadas.

Ambos os cozinheiros afirmaram ter usado baiacu em seus preparos no dia anterior aos incidentes, mas não no próprio dia. Com a estação tão fria como estava, não se surpreendia que o lixo pudesse ficar acumulado por vários dias, ao contrário do verão, quando era descartado com mais regularidade. O prato em questão teria sido feito com outro peixe, cujos restos também foram encontrados no lixo.

Então não é, obviamente, uma armação de algum oficial, refletiu Maomao, mas isso não significa que os cozinheiros estejam dizendo a verdade. Infelizmente, não havia testemunhas das refeições. Temendo irritar a esposa com suas escolhas culinárias extravagantes, o administrador frequentemente fazia suas refeições sozinho. O cozinheiro levara o prato, mas o criado do oficial apenas o vira comer de longe e não conseguiu identificar exatamente que peixe havia sido usado.

Além disso, a vítima só sucumbiu depois de terminar bem a refeição, quase meia hora após tê-la concluído. Um criado que levava chá o encontrou com espasmos, respirando com dificuldade, os lábios azulados.

Os sintomas correspondem, sem dúvida, à intoxicação por baiacu, pensou Maomao. Mas as informações dadas por Gaoshun simplesmente não eram suficientes. Decidiu desistir de raciocinar sobre o problema até conseguir mais detalhes com o eunuco. Murmurava para si mesma: — O que diabos poderia ter acontecido? — quando um rosto irrepreensivelmente belo surgiu ao seu lado. Maomao sentiu os músculos do rosto se contraírem reflexivamente.

— Com sua licença, poderia não fazer caretas para mim? Isso me fere. — O cabelo de Jinshi ainda estava molhado; Suiren tentava secá-lo com uma toalha, exclamando: — Oh, céus — enquanto a água pingava por toda parte.

Maomao forçou-se a retomar uma expressão normal. Parecia que estava quase vibrando de aflição.

— Você estava certamente prestando atenção em cada palavra que Gaoshun dizia — comentou Jinshi. Ele não parecia divertido.

— Estava apenas tão atenta quanto qualquer um estaria quando o orador tem algo interessante a dizer.

Jinshi pareceu escandalizado. — Ora, um momento. Quando eu falo, você nunca... — Não conseguiu nem terminar a frase, mas, por ora, Maomao não se importava.

— Já está tarde — disse ela. — Se não precisar mais de mim, senhor, vou me retirar. — Inclinou-se educadamente para Suiren, ainda enxugando o cabelo de Jinshi, e saiu apressada do aposento. Jinshi parecia querer dizer mais alguma coisa, mas Suiren ralhou: — Não se mexa. E Maomao não ouviu mais nada dele. Estava um tanto exasperada consigo mesma por agir tão fascinada, de forma quase impotente, com o caso da morte de uma pessoa. Perguntava-se o que seu pai pensaria dela enquanto voltava ao quarto.

No dia seguinte, Gaoshun trouxe para ela um livro de receitas. — Estas são cópias das receitas que o cozinheiro preparava com frequência. Os criados testemunharam que a maioria das refeições servidas a seu mestre vinha desta coletânea. Esta é a receita que o cozinheiro afirma ter seguido. — Ele pousou o caderno sobre a mesa e abriu-o em uma página com instruções para peixe cru levemente escaldado e depois ralado. Maomao o examinou, acariciando o queixo.

A receita mandava servir o peixe com legumes picados e levemente avinagrados. Algumas anotações rabiscadas indicavam modificações no vinagre, mas, no geral, não havia nada de incomum. Listam-se diversos molhos avinagrados diferentes, presumivelmente para se ajustar à estação e aos ingredientes disponíveis. Quais peixes e vegetais seriam usados não estava especificado em detalhes.

Hm. Maomao continuou a acariciar o queixo. — Isso não responde à questão crucial do que realmente foi usado — disse ela.

— Receio que seja verdade.

Jinshi observava Maomao de longe, curioso, embora não parecesse se divertir. Trazia consigo frutos de longan, que partia e comia distraidamente. As sementes escuras e secas surgiam a cada estalo. O longan era semelhante à lichia, mas menor, normalmente um fruto de verão. Quando seco, era muito valorizado na medicina tradicional.

— Ainda não descobriu? — perguntou Jinshi, apoiando os cotovelos inquietos na mesa e olhando para Maomao. Estava claro que queria participar da conversa. Gaoshun franziu o cenho, mas não chegou a repreendê-lo. Alguém deveria lhe dar uma lição, pensou Maomao, encarando friamente Jinshi enquanto ele se apoiava de modo indelicado sobre a mesa. Nesse momento, alguém arrancou o longan de sua mão.

— Meninos que não sabem se portar como cavalheiros ficam sem petiscos — disse Suiren, rindo abertamente atrás dele. Apesar do riso, Maomao sentiu a tensão no ar. Não conseguia afastar a sensação de que enxergava nuvens tempestuosas se erguendo atrás de Suiren. Seria estranho descrevê-la como possuidora da aura de uma guerreira experiente?

— Sim, sim — disse Jinshi, franzindo as sobrancelhas, mas retirando os cotovelos da mesa e retomando a postura adequada.

— Muito bem. — Suiren assentiu, devolvendo-lhe a fruta. Até então, Maomao supunha que Suiren fosse apenas uma velha carinhosa, mas, ao que parecia, podia ser rígida quanto à etiqueta.

Mas estavam se desviando do assunto. Era hora de voltar ao ponto principal.

— Esse incidente ocorreu recentemente, não foi? — perguntou Maomao.

— Há cerca de uma semana — respondeu Gaoshun. Durante a estação fria, esse prato costumava ser preparado com pepino, mas, nessa época do ano, seria preciso encontrar outro ingrediente.

— Posso supor que foi feito com nabo e cenouras? — Havia apenas alguns vegetais disponíveis no inverno. Cada ingrediente tinha sua estação, um período em que podia ser melhor apreciado.

— Hm... O cozinheiro disse que usou algas marinhas — disse Gaoshun.

— O quê?! — exclamou Maomao, abrindo a boca em surpresa. — Disse algas?

— Sim, algas marinhas — confirmou Gaoshun. Algas também eram um ingrediente comum na medicina tradicional. E, de fato, fazia certo sentido aparecer nesse prato em particular.

Mas um gastrônomo daqueles não iria querer qualquer tipo de alga. Queria algo diferente. Especial. Os cantos da boca de Maomao se ergueram; suspeitou que os dentes da frente estivessem aparecendo. Jinshi e os outros a olhavam boquiabertos.

Ainda sorrindo, Maomao voltou-se para Gaoshun: — Talvez eu pudesse inspecionar a cozinha da casa em questão. Se for possível? — Não tinha certeza se ele aceitaria a ideia, mas não custava tentar.

Gaoshun agiu rapidamente, e já no dia seguinte Maomao tinha tudo de que precisava para entrar na cozinha onde o problema havia começado. Disseram-lhe que obter a permissão fora simples, já que o inquérito oficial estava concluído.

A propriedade ficava no noroeste da capital. O quadrante norte da cidade era ocupado principalmente por funcionários de alto escalão, e a região estava repleta de casas esplêndidas. Ao chegarem à mansão em questão, a esposa da vítima (supostamente definhando de estresse) estava adormecida, então um criado os guiou pela casa. A esposa já dera sua aprovação, disseram.

Um criado, refletiu Maomao ao entrar na cozinha. Gaoshun havia designado outro oficial para acompanhá-la, mas ele passava a maior parte do tempo observando-a com desconfiança. Claramente não apreciava a tarefa, mas, como Gaoshun lhe ordenara, ele obedeceria, e isso bastava. Maomao não estava ali para fazer amizade, então tanto fazia.

O homem era militar, mas jovem. Seu corpo não tinha o porte de um soldado veterano, embora seus movimentos fossem bruscos e eficientes. Sob as sobrancelhas cerradas, o rosto era viril, apesar de ainda guardar traços juvenis. Parecia estranhamente familiar, pensou Maomao. Estava prestes a entrar na cozinha quando um homem veio correndo até ela, muito irritado.

— O que pensa que está fazendo? Não pode simplesmente perambular por esta casa! Saia já daqui! Quem deixou essa ralé entrar?! — Agarrou o criado pela gola.

Maomao o fulminava com o olhar quando o jovem que a acompanhava deu um passo à frente: — A dona da casa nos deu sua permissão. E isto é um assunto oficial. — Maomao aplaudiu mentalmente o tom calmo, porém firme, com que ele utilizou com o recém-chegado exaltado.

— Isso é verdade? — O homem relaxou o aperto no pescoço do criado. Entre tosses, o servo conseguiu confirmar.

— Então, podemos prosseguir? Ou há algum motivo para não o fazermos? — perguntou o oficial jovem, ao que o homem respondeu com um som de desprezo, cuspindo: — Pff! Que me importa?

Mais tarde, o criado explicou-lhes, pedindo desculpas, que o irmão mais novo do oficial em coma administrava a propriedade no lugar da esposa debilitada; fora ele quem os abordara.

Então era isso, pensou Maomao, reconhecendo, porém, que não era apropriado intrometer-se em assuntos de família, deixou a questão de lado. Em vez disso, passou a observar a cozinha. Como temia, o cozinheiro já havia limpado seus utensílios; no entanto, à exceção do peixe, que fora descartado antes que começasse a apodrecer, a maioria dos ingredientes ainda permanecia.

Ela começou a vasculhar o cômodo e, lá no fundo, sobre uma prateleira, encontrou o que procurava, bem à vista de todos. O que Maomao descobriu, salgado e guardado em um pequeno pote, trouxe-lhe um sorriso. — O que é isto? — perguntou ela ao criado. Ele espiou dentro do pote, a expressão indicando dúvida. Então Maomao pegou um pouco e o mergulhou em uma jarra de água. — Reconhece agora?

— Ah! É aquilo de que o patrão gostava. — O servo informou que o patrão comia disso o tempo todo; não podia ser veneno. Sua senhora confiava nele, e não parecia estar mentindo.

— Ouviu o homem. Andem logo e vão embora — cortou o irmão mais novo, irritado. Ele observava Maomao há algum tempo e parecia fixado especialmente no pote que ela investigava.

— Sim, claro — disse Maomao, colocando o jarro de volta no lugar e escondendo um punhado do conteúdo na manga ao fazê-lo. — Nossas desculpas pela perturbação. 

Ela saiu da cozinha, mas podia sentir os olhos dele cravados em suas costas.

— Por que simplesmente recuou daquele jeito? Você nem sequer se opôs — disse o jovem militar a Maomao, no caminho de volta, dentro da carruagem. Ela se surpreendeu com sua iniciativa de conversar.

— Oh, não acho que tenha recuado. — disse Maomao, tirando da manga o punhado de algas salgadas e colocando-o delicadamente em um lenço. A manga estava encharcada de sal com gosto repugnante, mas o jovem provavelmente ficaria incomodado se ela sacudisse ali mesmo. — Isto é estranho. É um pouco cedo demais no ano para colher esse tipo específico de alga. Mas não creio que uma peça salgada do ano passado pudesse ter durado tanto tempo. — Não, aquele ingrediente estava completamente fora de estação.

— Isso me leva a pensar que não foi colhido por aqui — prosseguiu. — Talvez tenha sido obtido no Sul, por comércio, por exemplo. Você sabe de onde poderia vir isso? Saberia?

Os olhos do jovem se arregalaram. Parecia compreender o que ela insinuava.

Restava apenas a tarefa de Maomao.

No dia seguinte, a pedido dela, Gaoshun providenciou uma cozinha para seu uso. Ficava em um dos escritórios burocráticos do pátio externo, com acomodações para passar a noite. Maomao havia preparado tudo no dia anterior; agora, começou a cozinhar. Bem, “cozinhar” era exagero. Apenas passava as algas na água para retirar o sal. Um processo simples, mas, dadas as circunstâncias, achou melhor não usar a cozinha do prédio de Jinshi; por isso pediu outra.

Dois pratos estavam diante dela, já preparados. Dividira as algas furtadas em duas porções e as deixara de molho. Agora estavam com uma cor verde profunda e rica.

À sua frente estavam Gaoshun, o oficial que o consultara sobre o caso, o jovem soldado do dia anterior e, por algum motivo, Jinshi. Maomao imaginou que Suiren o repreenderia novamente por meter o nariz onde não era chamado.

— Descobri que tinha razão — disse o soldado. As algas haviam sido importadas do Sul. — Perguntei ao criado que vimos. Ele disse que, de fato, nunca se comia esse tipo de alga no inverno. Fiz perguntas a outros servos também, e as respostas foram praticamente as mesmas.

O estranho na sala, o homem que consultara Gaoshun sobre o incidente, balançou a cabeça: — Já falei com o cozinheiro sobre isso. Ele disse que é o mesmo tipo de alga que sempre usou. Jura que não pode ser venenosa.

Na verdade, Maomao concordava: era o mesmo tipo de alga. Mas havia uma diferença. — Uma delas ainda pode ser venenosa — disse Maomao. Com os hashis, pegou um dos pedaços da travessa. — Digam-me, as pessoas do Sul comem normalmente esse tipo de alga? Ou será que um funcionário gourmet importou amostras secas da terra natal da planta, pensando que poderia lucrar?

— E que problema haveria se ele realmente tivesse feito isso? — perguntou Jinshi. Naquele dia, não trazia o tom leve, quase informal, que às vezes demonstrava. Talvez fosse por haver outras pessoas presentes. Gaoshun parecia sereno como sempre, mas os outros dois oficiais mostravam certo desconforto diante do radiante eunuco.

Maomao girava os hashis de forma quase brincalhona ao responder: — Existem maneiras de transformar um veneno em algo não venenoso.

Várias, na verdade. Enguias, por exemplo, eram normalmente venenosas, mas retirando o sangue e as aquecendo o bastante, tornavam-se comestíveis. Outro exemplo: esse tipo específico de alga precisava ser tratado com cal virgem. Das duas porções diante deles, uma fora tratada com cal virgem; a outra, não. No momento, Maomao segurava nos hashis o pedaço que deixara de molho em solução de cal durante a noite. Deu uma grande mordida, para desespero dos presentes. Todos se agitaram ao redor dela.

— Vou ficar bem... acho — disse Maomao. Na verdade, só conhecia a teoria; não tinha certeza de que uma noite fosse suficiente para neutralizar o veneno. Era mais um teste importante para ela.

— Você acha?! — esbravejou Jinshi.

— Ora, acalme-se. Tenho um emético bem aqui. — Mostrou a bolsinha de ervas pendurada no pescoço.

— Isso não é um pouco de confiança demais?! — retrucou Jinshi. Um instante depois, Gaoshun a segurava em um abraço por trás enquanto seu mestre lhe forçava o remédio goela abaixo. Assim ela terminou sua demonstração, vomitando diante de quatro homens importantes. Encantador. Um belo espetáculo para uma jovem ainda solteira.

Pior ainda, o emético induzia o vômito pelo gosto horrível, um péssimo acompanhamento para algas.

E eu querendo provar que as algas eram seguras, pensou Maomao. Limpou os restos estomacais, recompôs-se e então disse: — Eis a questão, do meu ponto de vista: quem sugeriu ao comerciante importar essas algas salgadas? — O mercador viajara a uma terra estrangeira, onde não havia o costume de consumir aquela planta, apenas para obtê-la. Presumivelmente, sabia ao menos do risco potencial. — O homem que caiu em coma por causa delas colheu o que plantou.

Mas... e se houvesse algo mais? E se o risco de envenenamento já tivesse sido previsto?

Lá vou eu especulando outra vez.

Dez anos antes, houve um caso semelhante. E se aquilo tivesse dado a alguém uma ideia, uma inspiração? Maomao não podia afirmar se os dois casos estavam de fato ligados. Mas, quanto ao atual, confiava em sua intuição. Todos ali eram inteligentes; não precisava dizer mais nada, nem pretendia. Ela era alguém de importância mínima. Não desejava refletir sobre a culpa de ninguém em particular.

— Entendo — murmurou Gaoshun, lentamente, como se compreendesse aonde ela queria chegar.

Aliviada, Maomao respirou fundo, então pegou as algas da outra travessa e as comeu.

E assim, pela segunda vez naquele dia, foi forçada a vomitar, diante de um Jinshi pálido e seus companheiros.

O culpado revelou-se ser o irmão mais novo do burocrata em coma. Quando descobriram onde comprara as algas, mal conseguia confessar rápido o bastante. Maomao estava certa em desconfiar da forma como ele a observava na cozinha. Era como se tivesse dito abertamente que havia algo ali que não queria que vissem.

Sua história era comum: com o filho mais velho vivo e saudável, o mais novo ficava esquecido. Maomao e os outros chegaram a se decepcionar ao constatar um motivo tão banal.

Contudo, um problema permanecia. O homem estava disposto a cometer um assassinato por essa mágoa trivial, mas como soubera das algas venenosas? Ele alegou que um frequentador de seu bar favorito comentou sobre isso em meio a uma conversa. E ninguém, nem mesmo Maomao, sabia se fora mero acaso ou algo mais profundo.

Enquanto limpava tudo, Maomao resmungava sobre o fato de que não tivera chance de comer a alga tóxica. Mas não adiantava chorar sobre leite derramado ou algas regurgitadas. Decidiu pensar em outra coisa.

Ahh, em que usarei meu precioso novo ingrediente?

A estranha erva que brotava de um inseto dançava em sua mente. Quando estava prestes a tomar todos os seus pensamentos, sacudiu a cabeça: precisava manter o foco. Estava em serviço. Ainda assim, não conseguiu deixar de sorrir ao pensar naquele inseto seco nojento, com o cogumelo acinzentado brotando dele. Só de imaginar as possibilidades, talvez preparar um vinho medicinal, ou transformá-lo em pílulas, já se enchia de alegria.

Essa felicidade exagerada fez com que, para sua própria vergonha, saudasse o dono da sala com um enorme sorriso. No instante em que reconheceu Jinshi, e o olhar chocado que ele lhe lançava, Maomao abaixou os olhos.

Aposto que isso não foi nada atraente. Devagar, desconfortável, ergueu o olhar para ver Jinshi batendo a cabeça contra uma coluna. O som lembrava um pica-pau. O barulho trouxe Gaoshun e Suiren correndo.

Gaoshun parecia lançá-la um olhar de reprovação. Não foi minha culpa! Protestou Maomao em silêncio. Seu mestre é que não bate bem. Silenciosamente ela fazia beiço, mas tudo o que disse foi: — Bem-vindos de volta. — Pelo menos podia se portar educadamente.

Jinshi vinha passando dias especialmente longos no trabalho ultimamente. Alegava que havia muitas coisas a resolver. Nesse caso, talvez devesse ter estado trabalhando no outro dia em vez de espionar os experimentos de Maomao.

A opinião de Jinshi sobre a pessoa com quem tivera de lidar recentemente para concluir seus deveres não era nada lisonjeira: — Pode-se dizer que não nos damos bem. Ou, no mínimo, que temos uma grande divergência de opinião. — Suspirou ao aceitar um pouco de vinho de frutas de Suiren. Todos na sala tinham alta tolerância a Jinshi, mas, se alguma jovem o visse naquela situação, provavelmente desmaiaria imediatamente. Um eunuco realmente muito problemático.

Então havia alguém capaz de manter uma opinião divergente de Jinshi. Isso já era impressionante por si só.

— Existem algumas pessoas com quem nem eu consigo lidar facilmente — admitiu Jinshi.

A pessoa em questão era, ao que parecia, um oficial militar de alta patente, homem de intelecto aguçado, mas de caráter nada ortodoxo. Gostava de implicar, levar visitas aos escritórios alheios, entrar sem aviso, desafiar a jogos de shogi, distrair com conversas banais e, de toda forma, impedir que a papelada fosse carimbada pelo maior tempo possível.

E, naquela ocasião, Jinshi era seu alvo. Tivera de entretê-lo por boas duas horas diárias, o que o obrigava a compensar depois.

O rosto de Maomao se contorceu. — Que velho eremita desperdiçaria o tempo assim?

— Velho eremita? Ele tem pouco mais de quarenta anos. O pior é que termina seu próprio trabalho antes de vir me importunar.

Um homem na casa dos quarenta, excêntrico, de alta patente militar? Essas características lhe soavam familiares, mas Maomao teve a nítida sensação de que recordar exatamente por quê não traria nada de bom. Decidiu, então, esquecer o assunto. Infelizmente, esquecer não diminuía a exatidão de seu mau pressentimento.

○●○

— Acredito que o assunto de que o preocupava já tenha sido aprovado — disse Jinshi, oferecendo a seu convidado indesejado aquele sorriso etéreo de ninfa. Foi preciso um esforço genuíno para não fazer cara feia.

— Ora, claro que foi, mas contemplar flores no inverno é tão difícil... Pensei que isso seria a melhor alternativa. 

Diante de Jinshi estava um homem de meia-idade, com barba por fazer e um monóculo. Um vagabundo, se é que se podia chamar assim. Vestia uniforme militar, mas sua constituição lembrava mais a de um funcionário civil, e seus olhos semicerrados, semelhantes aos de uma raposa, carregavam em igual medida inteligência e loucura.

O nome do homem era Lakan, e ele era um comandante militar. Em outra era, talvez tivesse sido considerado um dragão adormecido, uma grande mente estratégica à espera de ser descoberta, mas, naquela época, não passava de mais um excêntrico. Vinha de uma boa família, mas, mesmo já com mais de quarenta anos, permanecia solteiro; adotara um sobrinho para cuidar de sua casa.

Lakan se interessava por três coisas: Go, Shogi e fofoca. Estava disposto a envolver qualquer pessoa em uma dessas conversas, mesmo que elas não demonstrassem interesse algum. E o motivo de ter se tornado uma pedra no sapato de Jinshi, ultimamente, era o fato de Jinshi ter contratado uma jovem como criada, ligada à Casa Verdigris.

A situação era apenas o que era, mas não podia soar bem aos olhos da sociedade alguém tomar para si uma moça de um bordel. Sim, nominalmente ela era apenas sua criada, mas o que as pessoas iriam pensar? Esse oficial amante de boatos espalhara a história da nova aquisição de Jinshi até que o exército estivesse plenamente convencido de que o eunuco a havia comprado para tirá-la da prostituição. E era difícil dizer que estavam totalmente errados.

Jinshi deixou o falatório do velho intrometido (de onde ele tirava tantas histórias?) entrar por um ouvido e sair pelo outro enquanto carimbava os documentos que Gaoshun lhe trouxera.

Até o momento em que Lakan disse algo inesperado: — Eu mesmo já tive uma amiga na Casa Verdigris, sabia? Alguém de quem eu era muito próximo. — Jinshi jamais soubera que ele tivesse qualquer interesse em assuntos carnais.

— Uma cortesã? Como ela era? — perguntou, o interesse despertado (muito para seu desgosto).

Lakan sorriu e despejou um pouco do suco de frutas que trouxe em um copo. Reclinando-se em um sofá, parecia estar relaxando em seu próprio aposento. — Ah, ela era uma grande dama. Excelente jogadora de Go e Shogi. No Shogi eu conseguia enfrentá-la de igual para igual, mas no Go... ah, eu estava sempre perdendo.

Derrotar um comandante militar em um jogo de estratégia não era um feito pequeno, refletiu Jinshi.

— Pensei em comprar o contrato dela. Achei que jamais encontraria outra mulher tão interessante. Mas a vida não nos dá sempre o que queremos, rapaz. Apareceram alguns interessados, todos muito ricos, e começou um leilão. O preço subiu às alturas.

— Céus.

Às vezes, comprar o contrato de uma cortesã podia custar tanto quanto construir um pequeno palácio. Em outras palavras, o leilão havia colocado a mulher fora do alcance de Lakan.

Mas por que ele estava contando isso a Jinshi?

— Ela era uma figura curiosa, aquela dama. Vendia sua arte, mas nunca seu corpo. Na verdade, nem parecia considerar seus clientes como clientes. Quando tomava chá com ela, jamais agia como se estivesse servindo a um senhor ou alguém importante. Não, não. Fitava você de cima, imponente, como realeza concedendo audiência ao mais vil camponês. Ora, há aqueles que gostam desse tipo de tratamento, e eles ficavam loucos por ela. Quero dizer, veja só quem fala... é preciso ser um para reconhecer outro, não? Ah, só de pensar nisso me dá um arrepio na espinha!

Jinshi, cada vez mais desconfortável com a conversa, tentou desviar o olhar de Lakan. Gaoshun permanecia imóvel em segundo plano. A boca dele se contraía em uma linha reta, e mordia o lábio com força.

Havia muitas pessoas no mundo que partilhavam das mesmas inclinações de Lakan.

Jinshi não tinha certeza se Lakan percebia o efeito que causava; de qualquer forma, o excêntrico prosseguiu: — Ah, o que eu não teria dado para levá-la para a cama! — Seu sorriso lascivo revelava uma ponta de loucura. — Admito que, no fim, simplesmente não consegui deixá-la ir. Recorri a um esquema desonesto. Basta dizer que, se ela era cara demais para que eu pudesse pagar, tudo o que eu precisava fazer era torná-la mais barata, certo? Reduzir o valor de mercado, por assim dizer.

Atrás do monóculo, o olho de raposa de Lakan cintilava. — Não está curioso para saber o que eu fiz?

Contra a própria vontade, Jinshi se sentiu atraído para dentro da história de Lakan. Era isso o que o tornava tão temível. — Já chegamos até aqui. Suponho que seria um desperdício não ouvir pelo menos o fim de sua história. — Jinshi percebeu de repente que seu tom havia se tornado gélido. Lakan lhe lançou um sorriso malicioso.

— Não tenha tanta pressa, rapaz. Antes, tenho um pequeno favor a pedir. — Entrelaçou os dedos e se espreguiçou longamente.

— E qual seria?

— A criada que você contratou recentemente... Ouvi dizer que é um exemplar bastante interessante.

Jinshi estava a ponto de soltar um suspiro de exasperação: de novo isso? Mas o que Lakan disse a seguir o pegou de surpresa.

— Dizem que ela tem um talento para resolver mistérios. — Lakan não deixou passar o estremecimento que isso provocou em Jinshi. — Tenho um amigo — continuou. — Um ferreiro que costumava produzir peças para o palácio. Mas ele bateu as botas há pouco, sabe? Tinha três aprendizes, mas, curiosamente, não designou um sucessor.

— Oh? — disse Jinshi educadamente, enquanto pensava em como era inusitado Lakan ter um artesão entre seus conhecidos.

— É triste, um mestre artesão que não transmite seus segredos antes de partir. Fico pensando que ele deve ter deixado alguma pista, algo para garantir que sua arte não morresse, mas não encontro nada.

— O que está querendo dizer? — perguntou Jinshi secamente. Lakan retirou o monóculo e disse: — Oh, nada. Nada de mais. Só me pergunto se não haveria algum meio de descobrir quais segredos aquele velho levou consigo para o túmulo. Como, por exemplo, pedir a uma criada particularmente esperta que investigue o assunto.

Jinshi não respondeu.

— Nosso falecido amigo era um sujeito peculiar. Deixou um testamento, cheio de pompa. Faz a gente pensar que devia haver algo mais por trás.

Jinshi continuou em silêncio. Fechou os olhos e soltou um suspiro. Foi tudo o que conseguiu articular: — Não prometo nada. Conte-me sobre o testamento.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora