Volume 1

Capítulo 8: Uma Frutinha Por Vez

21/10 - Ciclo das Rosas  - Taverna do Quati Dourado

Acordei com uma assombração me encarando, ao menos era o que Nystin parecia naquele momento. Os olhos vermelhos e mais profundos que o habitual, cabelo bagunçado e coberto pelo que eu esperava ser barro. A assombração brincava com o líquido dentro do cantil dependurado entre seus dedos enquanto acariciava Quanty com a outra mão. Não sabia se deveria fingir que nada vi e voltar a dormir pois ainda estava escuro lá fora ou se deveria dizer algo para quebrar aquele silêncio esquisito. Por alguns bons minutos, fingi estar dormindo, por outros bons minutos, fingi não ver a assombração ali, por mais alguns bons minutos, tomei meu café com olhos no meu pescoço e pelos últimos bons minutos, troquei de roupa no banheiro com olhos na porta, até que quando enfim saí de lá, a estátua ruiva quebrou o silêncio dizendo em rouquidão:

— Akai foi pra casa.

— Mas já? Pensei que fosse partir em uma semana, o que aconteceu.

Depois de um tempo em silêncio, disse:

— Um imprevisto, teve que voltar para a cidade.

— Que pena, queria ter mais tempo para convencer ele a me doar um pouco daquele café especial, é difícil dobrar aquele cara, ele é casca dura, sabe? Her… em que posso ajudar o senhor? Talvez um café? Tenho certeza que o Tyan adoraria aproveitar o café da manhã com o senhor. 

— Não vou abrir a taverna hoje. E sinceramente, não estou com tempo para conversa fiada. Responda de forma direta e objetiva, entendeu? A lagartixa me disse o quê você queria fazer quando crescesse, agora, quero ouvir da sua boca, palavra por palavra. 

— É meio vergonhoso dizer isso assim… — infelizmente fui interrompido pela Assombração Ruiva. 

— Rápido e objetivo, garoto. Qual parte você não entendeu? Eu até poderia explicar, mas não tenho tempo nem lápis de cor para isso. 

Depois de bons segundos que pareceram boas horas, traguei coragem suficiente para expor esses sentimentos da única forma que conhecia. 

Corri para minha mochila e tirei uma velha pasta com folhas soltas e disformes, folheei pelas páginas preenchidas por garranchos infantis e mais maduros até encontrar o que buscava. Me virei para Nystin que observava com certa curiosidade e disse: 

— Acho que ainda não estou pronto para contar essa história com palavras, mas se está curioso, essa aqui é a razão dos meus sonhos… desculpe pelo garrancho… 

Logo, Nystin estava com algumas páginas em mãos, páginas essas que não esperava compartilhar com alguém tão cedo, mas ainda era melhor do que me embaralhar com as palavras e arriscar que arrancassem minha cabeça. A história que só tive coragem de escrever dois anos antes…

 

 

O Velho Traquinario e Seu Aprendiz. 

“Há muito tempo atrás, quando o relógio da velha casa ainda batia e os pássaros no telhado ainda cantavam, havia um velho muito rabugento, tão rabugento, mas tão rabugento, que mesmo chupando mil limões, nenhuma de suas rugas carrancudas trocariam de lugar. O velho era sozinho em sua casa e dizia não ligar, parecia gostar do silêncio e assim repetia todos os dias quando lhe perguntavam sobre sua solidão.

 As crianças diziam que a casa do velho era assombrada e que se seus brinquedos caíssem dentro daqueles muros, não haveria salvação. Suas bolas nunca mais pulariam e seus dragões de papel nunca mais voariam. Tinham certeza de que se algum dia, um deles caísse lá dentro, nunca mais veriam seus pais. Os adultos não faziam muito esforço para contrariar as crianças, pareciam evitar encontrar com o  velho a todo custo, inventavam mil e uma desculpas para não passarem na frente do portão vermelho. 

Mas uma criança era diferente das demais, mais estranha eles diziam. A criança parecia não ligar para as baboseiras, achava besteira como as pessoas agiam perto do velho, dizia para si mesma que um senhor tão pequeno não poderia fazer mal nem mesmo a um cachorro, quem dirá a uma criança tão ligeira quanto ela. Então, um dia, criou um plano mirabolante, daqueles infalíveis que se cria para dominar o mundo. Decidiu que iria provar das pomarolas que cresciam naquele pomar e que não havia nada e nem ninguém nesse mundo que poderia impedi-la. 

Escalou a cerca viva com os dois braços, um de carne e o outro de gesso, passou de moita em moita na ponta dos pés para que não encontrassem ela alí. Esperou que uma nuvem cobrisse o Sol e correu para o pé de pomarola, escalou o primeiro que encontrou, tirou sua redinha da mochila e começou a colher uma por uma. 

O garoto puxava uma frutinha azul do tronco da árvore, e a frutinha logo começava a voar com suas asas adocicadas, mas não eram tão rápidas quanto sua redinha. Ficou nessa por um bom tempo, até que uma das frutinhas o mordeu, pobre garoto, logo aquela onde esqueceu de procurar por abelhas metidas a vespas, foi aquela que acabou com sua diversão. O garoto até tentou segurar o grito que batia em seus pulmões, mas não teve jeito, em pouco tempo, já estava caindo da árvore, galhos partindo, pássaros grasnando e uma criança gritando.

Talvez tenha sido o som dos galhos quebrando, talvez tenham sido os gritos do garoto, talvez tenha sido o acaso ou quem sabe os pássaros chamaram o velho de dentro da casa, mas naquele momento, quando o menino sentiu que poderia voar, um aperto forte o segurou. 

Quando foi ver, o garoto já estava dentro da casa assombrada, enrolado em um cobertor e tomando chá com sabor de jasmim, mesmo que não gostasse de chá e nem de jasmim. 

Ficou ali, vendo o velho preparar algo na cozinha, com medo de virar jantar ou de nunca mais ver seus pais, mas sabia que se gritasse ou voltasse a chorar acabaria com outro galo na cabeça, o garoto sabia que não se deveria enfrentar um dragão velho e amargo, principalmente um que tinha uma bengala. 

Quando o dragão enrugado voltou com uma maletinha e uma caneca fumegante em mãos, disse: 

— Posso saber o que na terra fez você pensar que invadir a propriedade alheia seria boa ideia? Ou melhor, quem come pomarola que não voa? Não é óbvio que teria algo de errado? 

—...

— Que foi? Comeram sua língua? Ah sim, a abelha… bota a língua pra fora, o chá já deve ter feito o trabalho.

—... Hum Hum. 

— Não vou arrancar essa língua azul, se acalme. Quero tirar esse ferrão antes que sua língua caia. Vamos, diga ah. 

Depois de muita luta para convencer o pequeno da língua azulada, o velho finalmente saiu vitorioso com um ferrão preso entre os dentes da pinça. Já o garoto, saiu aliviado, com a língua desinchada e com uma enorme toranja presa entre os dentes da boca. 

— Prontinho, agora seus pais não vão me dar dor de cabeça. Então pode tratar de ir saindo ligeirinho, tenho coisa melhor pra fazer do que ficar cuidando de um ladrãozinho melequento como você. Vamos, vamos — disse o senhor carrancudo enquanto dirigia o menino com tapinhas nas costas. — E acho bom não te ver roubando meu pomar novamente, entendido? Ótimo. 

 

 

Logo ali, no último cômodo entre a cozinha e a porta, onde deveria ficar a sala de estar, foi onde o garoto viu o mundo parar pela primeira vez, queria que aquele pequeno trajeto entre uma porta e outra nunca acabasse. Viu nas prateleiras o que pensava ser impossível, milhares de histórias repousando na madeira e no papel, chamando por seus dedinhos curiosos, clamando para serem lidas. Numa tentativa de atender aos seus pedidos, o garoto perguntou: 

— T-todos esses livros são do senhor?

— Ah, então você fala, já estava pensando que o ferrão tinha estragado sua língua, mas sim, são todos meus, por que?

— ★São tão brilhantes★ Os da mamãe não brilham assim, são todos velhinhos e bem marcados e são tão pouquinhos…

— Gosta de livros pirralho?

— Mais que tudo no mundo… exceto a mamãe… e o papai… e torta… e mel, mas tirando isso, mais que tudo no mundo inteirinho.

— E qual é o seu preferido? Aposto que é o pequeno polegar. 

— Nop, meu favorito é o Paladino Sol, ele com certeza é mais legal que esse tal de plolegar! Ele sai por aí batendo nos vilões e salvando as princesas! Conhece ele?

— Não esperava que sua mãe fosse ler algo assim para você, tem muitas palavras difíceis nesse livro. A propósito, é polegar, po-le-gar, não plolegar. 

— Mamãe não leu para mim. Aprendi sozinho, eles nunca querem ler pra mim. Mamãe diz ser sem tempo e papai sempre pula as cobrinhas. Mas quem é esse tal de pequeno po-le-gar?

— Você leu aquele livro sozinho? Haha, duvido muito! E cobrinhas?

— É verdade! Li tudo sozinho, mais de uma vez! Sim, cobrinhas, aqueles tracinhos entre as frases, as que dão tempo de respirar.

— Para de mentir pirralho! Aqui, se você puder ler tão bem, leia isso aqui e me conte o que mais gostou! E não são cobrinhas, são vírgulas, vír-gu-las! Ok? Ótimo, agora TCHAU!

O menino com o braço de gesso foi expulso com a porta no rosto. Saiu de lá, segurando um livro fino com o pequeno polegar escrito na capa. Sem ter muito o que fazer, voltou para casa saltitando e com o nariz vermelho. 

 

 

O menino com o braço de gesso voltou para onde foi expulso com um curativo no nariz e um livro sob o braço. Bateu na porta que agrediu seu nariz e esperou pelo dragão ranzinza. O velho apareceu por uma fresta entre a porta e o batente, vestindo camisola e um chapeuzinho de tecido. Quando viu o menino, abriu a porta um pouco mais e perguntou o que o garoto de gesso queria. Já o garoto, esticou os bracinhos que seguravam um fino livro enquanto dizia:
— ★Gostei muito dessa história, mamãe disse que me daria um par de botas de sete léguas se eu me comportasse esse ano! Aqui, muito obrigado pelo livro!★

— Mas já? Pensei que fosse demorar pelo menos até depois de amanhã. Sua mãe deve ter lido esse para você, volte depois de ter lido esse outro! — Disse batendo a porta o mais forte que pode. 

— Já disse que leio sozinho!

O menino de gesso voltou para casa mais uma vez saltitando com um livro um pouco maior nos braços e um sorriso vermelho no rosto. Passou pelo poço da cidade, correu pela padaria da esquina e se jogou para dentro de casa.

 

 

O garoto foi e voltou, dia sim dia não, ia e voltava com um sorriso no rosto e uma nova história nos braços. Sempre que chegava à porta do dragão, logo tratava de dizer ao velho como suas histórias eram boas, falava sobre pirlimpimpim e capuzes vermelhos, contava sobre a Lua que amava o Sol e sobre guarda roupas mágicos. O velho não percebeu, ou fingiu não notar, mas aos poucos, foi deixando o garoto entrar em sua casa. Logo, o menino que enfim se livrara do gesso, começou a fazer parte de sua rotina. Quando se deu conta, estava conversando sobre cavaleiros e dragões com um garoto com dez vezes menos sua idade e metade da estatura, mas o garoto parecia não ligar, quando começava a falar sobre um novo livro, se tornava outra pessoa, dizia o velho que mais parecia um adulto cantando histórias do que uma criança falando bobagens juvenis. 

E assim foram os dias, o garoto de carne e o dragão sorridente passavam os dias armando traquinarias por aí, caminhavam pela vila, passeavam pelo bosque à procura de castanhas junto de Jasão — o velho cão do dragão, — acampavam com as estrelas de cobertor e não se cansavam disso. Viviam felizes e sorridentes. 

As crianças riam ao ver o que o velho ensinava ao garoto, diziam que de nada servia o nome das estrelas ou quantas formigas comia um tamanduá. Já os adultos, se preocupavam com o que o garoto ensinava ao velho, diziam ser muito perigoso que alguém em sua idade fizesse tais cambalhotas ou que alguém em sua idade não deveria correr atrás de dragões de papel, mas se qualquer um perguntasse à dupla sagas, ambos apenas gargalhariam ao ouvir tais coisas. 

E assim foram-se os dias. 

 

 

Mas tudo que é bom dura pouco, ao menos os anos que se passaram pareceram pouco aos olhos do garoto. Num belo dia nevado, o velho dragão não pode mais correr e dançar. A cama parecia o abraçar cada dia mais forte, sua pele começou a esquentar como o fogo na lareira e suas palavras foram perdendo a força. O garoto tentava tudo que podia para fazê-lo se alegrar, contava histórias, fazia chá de jasmim e sobre tudo queria conversar, mas as coisas não pareciam melhorar. 

Foi então, que em um dia desses, criou um plano mirabolante, daqueles infalíveis que se cria para dominar o mundo. Se enfiou na biblioteca como sempre fazia quando o dragão queria descansar e começou a procurar pela forma de ajudar. Passou por literatura, poesia, agricultura e medicina, mas em nenhum desses encontrou o que queria. Foi então de livro em livro, por fantasia, bruxaria e alquimia, mesmo nesses nada de bom encontrou, nada parecia poder curar o velho dragão da língua azulada. Foi quando ouviu na porta alguém bater, calmo e tranquilo, três batidas e um assobio, não podia ser outro que não seu amigo, o padre que ficará de visitar o velho senhor. 

Quando o garoto a porta abriu, viu o homem vestido com batina e colarinho.

— Padre, pensei que o senhor viria mais tarde, ele ainda está dormindo, sabe?

— Eu imaginei pequeno, mas tinha uma caminhada a fazer e com esse frio todo, só essa velha lareira para me esquentar. 

— Oras minha cabeça, onde enfiei a educação? Não quer entrar padre? O senhor deve estar congelando nesse frio.

— Seria um prazer, meu filho, adoro uma boa conversa quando tenho que esperar, mas me diga, como anda Traquinario? 

— Vai bem padre, tosse mais a cada dia, mas ainda tem força para me ameaçar com a bengala e quando não acha a bengala, acha a velha espada. Esses dias têm sido os piores pra ele… mal saiu da cama hoje e talvez não saia amanhã.

— Infelizmente, meu filho, é nessas horas que nossa fé é testada. Às vezes Deus parece criar doenças sem cura ou feridas que não saram para nos testar. Nossa única opção nesses momentos é não perder a fé e rezarmos por um milagre, talvez assim possamos trazer paz para quem mais precisa.

— Pois é seu padre, às vezes só um milagre para nos ajudar… milagre… 

Para o garoto, foi como se aquelas sete letrinhas entrassem no buraco de uma fechadura e começassem a girar e girar, tirando lá de dentro, uma gota de esperança e sabedoria, talvez fosse a última gota que o garoto tivesse, ou talvez aquela fosse a primeira que teria. De uma coisa ele sabia, não tinha tempo a perder, tratou de aconchegar o padre perto da lareira e de colocar Jasão para lhe fazer companhia, depois, atravessou a porta rápido como um raio em tempestade de verão. Correu pelas ruas, se jogou pelos portões, trupicou sobre as pedras no caminho até se jogar para dentro de casa. 

Dentro de casa, não saldou pai nem mãe, não os viu alí ou não teve tempo de comprimenta-los, só tinha tempo de pular na velha estante da sala e abraçar aquele velho livro, o mais fino dentre todos, o mais velho dentre eles e aquele que menos leu entre os demais. Correu os dedos página por página, atrás do que queria, até enfim achar o segredo que seu coração buscava, logo alí, na sétima linha do sétimo parágrafo da sétima página, encontrou naquelas poucas linhas o que seu coração buscava, encontrou naquelas poucas linhas, um poema que assim dizia:

“Em seis dias o mundo formou, do vazio fez verbo e ao verbo deu vida, fez do verbo terra e céus, fez do verbo vida e morte, do verbo fez tudo e tudo era o verbo. Disse para si no sétimo dia que tudo aquilo era bom e se pôs a descansar, sonhou com como o tempo seria, sonhou sobre como a vida dançaria, sonhou como o céu acabaria e com cada sonho que teve, uma lágrima derramou, cada lágrima que na terra se formou, deu lugar a coisas maravilhosas”

Folheou por mais páginas e encontrou a lista dos sonhos já encontrados, mas em nenhum deles viu saúde, encontrou água no deserto e calor no flagelo, mas cura alguma alí encontrou. 

A esperança do garoto não se apagou, voltou a correr, dia sim e noite sim, passou por toda pedra e tronco, mina e cachoeira a procura daquele sonho, mas o tempo passou e passou, fez as escamas do dragão caírem uma a uma, levou seu vigor e seu último sopro. Mesmo com todo esforço, o garoto com o coração de gesso ajuda não encontrou. Dizem que até hoje corre pelos bosques à procura de um sonho para um velho dragão…”

Nystin não me disse nada sobre o que leu, só saiu do quarto depois de fazer sinal para que eu o seguisse.



Comentários