Volume 1

Capítulo 6: Uma Anchova por Vez

18/10  - Ciclo das Rosas  - Vila Carmim.

Encontrei-me sozinho pela manhã e não conseguia encontrar Akai ou Nystin em lugar nenhum. Tudo que me esperava no salão era uma bolsinha escura com um bilhete que dizia: 

“Pirralho, a lagartixa e eu temos algumas coisas para resolver, devemos voltar de madrugada, então deixe uma boa garrafa de café para nós, limpe o lugar e deixe tudo pronto para os clientes, você vai saber quando abrir pelo barulho. Akai disse que você trabalhava em um bar antes de vir para cá, então já deve saber o que fazer. A chave do caixa e da taverna estão na sacola junto com o pagamento pelo couro.”

“P.S. Gosto do meu café como é a vida, escuro e amargo”

Logo 20 moedinhas de prata tilintavam sobre o balcão, não esperava receber nada pela sombra, quem dirá tanto dinheiro assim. Se papai visse isso, provavelmente teria ido na mesma hora para a floresta com um machado em mãos e cifrões no olhos. 

Depois de esconder tudo debaixo do colchão e tomar um café da manhã reforçado, botei a mão na massa. Varri, lavei e lustrei cada cantinho do lugar ao ponto de poder ver meu reflexo no mármore do bar. 

O lugar continuava escuro feito tumba, mas as janelas não abriam de jeito nenhum e olha que eu tentei de tudo, desde alavancas a voadoras, mas nem sinal delas abrirem. Infelizmente, fui impedido de testar um machado que encontrei enfeitando a parede, era um lindo machado por sinal, daqueles que se usa para mandar pessoas voando. O que me impediu foi um barulho estranho vindo da porta da frente, um barulho muito estranho mesmo, mais parecia um rugido do que qualquer coisa. Ao menos pude distinguir algumas palavras abafadas vindo de lá. 

Deve ser esse o barulho… 

Foi só soltar o pino da tranca para ser arremessado alguns metros no ar e pousar graciosamente sobre meu traseiro.

— Nystin, lazarento! Quer que eu morra de fome!? Fiquei plantado lá fora um tempão! — Um senhor alto, pançudo e já com certa neve na cabeça arrombou a porta. O homem segurava uma enxada sobre o ombro e carregava um singelo cachimbo entre os dentes.

— Nystin não se encontra no momento, gostaria de deixar recado? — respondi ainda estatelado no chão — a propósito, sou Miguel, ao seu dispor — completei com uma simples mesura. 

— Oras rapaz, o que faz no chão? Venha, levante-se. 

O homem era forte, me levantou com apenas uma mão e sem esforço.

Logo eu estava do outro lado do balcão esfregando algumas canecas, não que elas estivessem sujas, mas barman que é barman está sempre limpando as coisas. 

 

 

— Ferrugem sempre faz isso, some do nada e me deixa sem café. 

— Acho que esse problema eu posso resolver. Sei fazer um ótimo omelete, e minhas torradas são divinas. Ou talvez o senhor prefira bacon? 

— Senhor está lá no céu, me chame de Tiyan, quanto a comida… Anota aí pra não esquecer… 

 O primeiro pedido a gente nunca esquece, principalmente quando ele é suficiente para alimentar uma família inteira duas vezes. A comida chegava a formar pequenas torres nos pratos, não que isso tivesse impedido Tiyan de devorá-las uma por uma. Passamos um tempo conversando entre garfadas, mas o barrigudinho parecia estar mais interessado nas panquecas. 

— Rapaz, fazia tempo que não comia tão bem… não conta pra patroa em. Foi um prazer, garoto. Manda um oi pro Nystin por mim, te trago um pouco de queijo depois.

Tão rápido quanto a comida sumiu, Tiyan também sumiu, deixando para trás muitas migalhas e oito moedinhas acobreadas que foram prontamente guardadas no caixa. Deixando apenas uma grande pilha de louça para lavar.

 

 

Um bom tempo se passou e nem sinal de novos clientes, algumas pessoas até passavam pela rua, mas todas pareciam ocupadas demais para entrar e dar um oi. Como não planejava ficar olhando para a parede até fechar, decidi ratear alguns livros da biblioteca de Nystin. 

Cheguei no escritório mais rápido que uma fada correndo da chuva. O lugar era bem simples, tendo apenas uma robusta escrivaninha com duas cadeiras estofadas, um singelo bar particular e uma estante com algumas dezenas de universos de papel e tinta. Depois disso, foi só puxar alguns exemplares da estante e encontrar um cantinho confortável no salão para mergulhar no papel.

O primeiro da pilha era bem antigo, com todos os sinais que um livro amado deve ter, a capa já desbotada pelo uso, o título pedindo por uma nova demão de tinta vermelha e as páginas cheias de anotações perdidas. Na capa, lia-se “Primeira Edição do Bestiário de Criptídeologia”, o livro era cheio de gravuras e explicações detalhadas sobre criaturas fantásticas, desde pequeninas pixies aos gigantescos behemoths, eram todas criaturas que se veria em contos épicos, mas diferente de muitas histórias, o livro não as descreviam como demônios sem coração ou monstros sedentos por sangue, mas sim como animais que aprenderam a usar a magia para sobreviver. 

Quando cheguei à letra S, encontrei algumas longas páginas sobre as sombras, assim como me foi dito, a maior parte eram teorias, umas diziam que eram demônios criados por deuses malignos, outros que eram seres semelhantes aos vampiros ou que surgiam com o acúmulo de miasma, mas uma delas era mais completa que as outras, mais complexa eu diria, ela vinha de um professor da Academia de Estudos Mágicos e Botânicos de Morgenstar, ou AEMB para encurtar. O doutor Skalpel dizia o seguinte:

 “Diferentemente das demais manifestações naturais da mana na fauna e flora, se provou impossível localizar qualquer forma de cristalização natural das partículas de Goiser (popularmente conhecidas como magículas) nas amostras de Tenebris Serpetium, fossem elas derme ou tecido ósseo. Assim como o Dr. Rosarães da AEMB nos mostra em suas pesquisas, também não foram encontrados canais que permitam o fluxo energético pelo corpo da espécime. A grande incongruência nisso tudo é que mesmo assim, as amostras apresentavam uma elevada concentração de energia latente, principalmente energia Skotadica, chegando até mesmo a absorver a energia ambiente, convertendo-a em energia escura. Os experimentos demonstraram uma maior afinidade entre as amostras e energias do tipo: Skotadica, Nerótica e Flógenica, além de uma forte rejeição a energia Fossenica

Talvez seja essa a razão pela qual os espécimes têm se demonstrado tão resistentes aos feitiços.

Ainda continuamos vagando por um escuro desfiladeiro quando falamos sobre como tais criaturas se formam, já que não apresentam nenhum dos requisitos que compõem o espectro metamórfico ou o espectro de criaturas naturalmente mágicas, como a falta de núcleo canalizador ou até mesmo a inexistência de canais para que a energia flua e seja manipulada. As pesquisas recentes têm nos mostrado algumas relações entre tais espécies e o reino espectral, acreditamos que essas semelhanças como a absorção passiva de energia e a concentração natural de mana nos tecidos sejam provas de que tais criaturas possam ser a incorporação de espectros no reino animal…” 

(Se você não entendeu meia palavra do que esse tal de Skalpel escreveu ou simplesmente não teve saco para ler tudo isso, não se preocupe, eu também não entendi nada do que esse cara disse na época e olha que consultei três dicionários. Simplesmente aceitei que não ia ficar sabendo tão cedo o que era aquilo que matamos na vila e passei de página.)

Cansei do livro lá pela letra U, quando começaram a falar sobre Uviulas e como essas raposinhas traziam problemas aos donos de vinhedos. Passei logo para um livro verde, esse não tão gasto e sobre as aventuras de uma moça criada por Lobos Chifrudos… 

 Lá pela hora do jantar, os clientes começaram a entrar um depois do outro.

— Nystin, uma caneca de hidromel! 

— Rum aqui, e uma porção de pastel.

— Um omelete, por favor! 

O lugar passou da água para o vinho antes que eu percebesse. Rapidinho já estava correndo entre as mesas com canecas de cerveja empilhadas sobre uma bandeja. 

Com todas as velas acesas, o lugar não parecia tão assustador, principalmente com tanta gente espalhada. Os homens comemoravam o fim do dia de trabalho com canecas de hidromel e petiscos enquanto as crianças corriam por aí brincando de pega pega e outras coisas. As moças se entretiam com vinho enquanto cochichavam com as amigas. Já as senhoras estavam ocupadas demais impedindo seus filhos de enfiarem um ovo frito maior que suas cabeças goela abaixo em uma única bocada.

— Ei, garoto! Onde o magricela do Nystin se enfiou? — Era um senhor de idade que exibia braços definidos demais para a idade. 

— Opa, logo logo deve voltar, quand… 

— Margricela? Bateu a cabeça, Tonho? Ou só está ficando gagá? Você é sempre o primeiro a correr pra ele quando alguma coisa te ataca no bosque — com um sorriso gentil continuou — A propósito garoto, mais uma taça de vinho, por favor. 

— É pra já! 

Quando as coisas começaram a se acalmar e o álcool a fazer efeito, notei as crianças cercando o senhor com braços de tora. 

— Vovô Totonho, conta aquela histolinha da fadinha da lua? Conta? — Era uma menininha no auge dos seus cinco anos, exibindo seu sorriso banguela e vestindo asinhas de tecido. 

— Minha filha… já não se cansou dessa história? O vovô conta ela toda noite, não acha que as outras crianças querem ouvir outra coisa? — O senhorzinho levantou a criança, deu para ela uma boa cadeira de colo, alinhou a mecha de cabelo rebelde atrás de suas orelhas pontudas e com um sorriso que mal passava de algumas rugas extras, continuou — Por que não deixamos outra pessoa contar uma história de boa noite…? Olha lá o Miguel, ele com certeza conhece alguma história muito boa, não é rapaz?

O olhar de cachorro pidão era generalizado entre os pequenos, não que eu precisasse disso para tirar uma boa história do baú, até porque, conhecia uma muito boa com fadinhas e luas. 

— Hum… Acho que não tem problema, alguém vai querer pedir algo mais? Certo… Então senta aí que lá vem a história…

“Ouçam com atenção essa linda fabulação, que me foi contada por um velho capitão. Sei que é verdade, pois palavra de pirata vale mais que açafrão.

Há muito, muito tempo atrás, quando relógio ainda tinha sombra, vivia em seu barquinho, um humilde pescador. Seus amigos chamavam-o Aluado, pois sempre dizia que teria a lua pendurada em seu anzol.

O menino saía toda tardezinha, ia junto ao seu barquinho, soltando fumaça pelo ar e tudo o que se podia escutar era o choro de sua gaitinha. E lá ia ele, partia chuva e furacão, fosse montanha ou dragão, passava a noite toda perseguindo sua lua. Sempre que via uma oportunidade, preparava o anzol, firmava bem o pé no convés e lançava a isca o mais forte que podia, via a linha percorrer o céu tentando alcançá-la, mas nunca chegava perto o suficiente. O menino pescador até conseguia pescar uma anchova ou outra, mas não era aquela lua, não era a sua lua. O pequeno pescador voltava para casa com lágrimas nos olhos e centenas de anchovas no barquinho. Então dizia entre lágrimas:

 — Não foi dessa vez que eu a pesquei, talvez não seja na próxima, mas um dia eu vou trazê-la aqui.Vou ser o homem mais feliz do mundo e todos vocês verão!

A areia da ampulheta caiu e caiu, com ela o mar subiu e desceu, os peixes foram e vieram e o menino cresceu e cresceu, virou homem. Aluado continuou sempre que podia correndo atrás daquela lua, a sua Luna, como passou a chamá-la.

 O bobo Aluado era feliz naquela noite, feliz como apenas um bobo pode ser, não era para menos, já que sua Luna finalmente apareceu no céu, não mais se escondia, pelo contrário, brilhava a todo vapor. Aluado dizia para si mesmo que aquele era finalmente o dia, como disse em muitas outras noites.

Partiu como nas outras noites, tocando sua gaita e jogando fumaça para o ar. 

As anchovas eram muitas naquela noite; nadavam pelo céu em grande comoção como nunca se viu e talvez nunca mais se veja. Aluado poderia jurar de pé junto e amarrado que as estrelas cantavam para ele, cantavam um sussurro, rezavam em união, pediam ao pescador:

—Jogue seu anzol. 

— Rápido rápido, salve ela.

E assim ele fez…”

Quando menos esperava, fui interrompido pelo relógio batendo dez vezes para nos deixar saber a hora.

— Eita… olha só a hora, acho que vou ter que terminar essa história outro dia… — Disse fingindo o pesar na voz. 

Meu comentário foi recebido por uma saraivada de reclamações infantis e até de alguns adultos.

Quando olhei para baixo para descobrir o que estava puxando minha camisa, me deparei com uma garotinha com orelhas pontudas, asinhas de tecido nas costas e olhinhos de gatinho pidão dizendo: 

— Moço… a gente é folte, não precisa ir dormir ainda. Pode terminar a histolinha — Disse a menina nas pontas dos pés tentando parecer mais alta e forte e só parecendo menos intimidadora a cada centímetro que subia.

Acho que os amigos da pequena fada compartilhavam a mesma ideia que ela, já que acompanharam sua corajosa investida com frases de apoio e polegares para cima. 

Após uma confirmação visual com os pais das crianças, continuei:

— Bom, acho que não tenho outra opção com uma garotinha tão forte assim aqui. Onde foi mesmo que parei? Ah sim, anchovas… 

“Partiu como nas outras noites, tocando sua gaita e jogando fumaça para o ar. As anchovas eram em excesso naquela noite, nadavam pelo céu em grande comoção como nunca se viu e talvez nunca mais se veja. Aluado poderia jurar de pé junto e amarrado que as estrelas cantavam para ele, cantavam um sussurro, rezavam em união, pediam ao pescador:

—Jogue seu anzol. 

— Rápido rápido, salve ela.

E assim ele fez…

“Preparou o anzol, firmou bem o pé no convés e lançou sua isca para o céu o mais forte que pode, o mais alto que pode, o mais longe que pode, o mais que pode. A linha cortou o céu pelas estrelas correndo, voando, dançando até que finalmente a fisgada veio, aquela fisgada finalmente veio, não era sardinha, anchova ou salmão, era sua Luna.

Aluado puxou e puxou, quase caiu no mar o pobre pescador, mas continuou firme e forte, hora puxava, hora deixava a linha correr solta. Luna parecia estar mais perto com cada puxão, e a cada vez, Aluado puxava mais forte, sua Luna finalmente estava chegando, finalmente teria aquele peixe na parede, mas quando o peixe chegou ao barco, deu foi um susto no pobre pescador.

Pendurada pelo vestidinho prateado estava uma menininha, tão pequena quanto a rosa, com ar de princesa e coroa de rainha pendurada na cabeça. Aluado ficou ali, encarando com cara de taxo. O rapaz não entendia como sua Luna tinha encolhido tanto ou mesmo como teria virado uma menina.

O pescador poderia encarar a princesinha o dia todo, mas ela não parecia estar bem, parecia fraquinha, mirradinha e bem branquinha. O pescador não fraquejou, levou Luna para dentro de seu barquinho e deitou a pequena lua sobre a cama que era grande demais. O tempo passou e passou, mas Luna não acordou, tentou lhe dar de beber, mas não tinha copos tão pequenos, tentou lhe dar de comer, mas tinha medo de engasgar a princesa, tentou de tudo um pouco, mas tudo tinha outro mas na frente. Não sabia mais o que fazer, sentou em sua cadeirinha, puxou sua gaitinha e ficou lá, assistindo as anchovas choverem, pulando do céu para o mar.

Foi então, que o confuso Aluado tocou sua canção como sempre fazia quando não sabia que rumo tomar, a canção que seu pai lhe ensinou, a mesma canção que sua mãe adorava, a canção para os tempos de saudade, a canção para os bons momentos, a canção para passar pelo tormento, a canção para alcançar o que não pode ser alcançado, a canção…

Quando se deu conta, as anchovas já tinham parado de chover do céu, talvez fugindo do Sol que nascia no horizonte. Aluado já não tinha mais fôlego para tocar sua gaitinha, já não tinha forças para manter os olhos abertos e quando os abriu novamente não estava mais em sua cadeirinha, nem deitado no chão, mas aconchegado em sua cama. O pescador não entendia como foi parar lá, muito menos entendia quem o colocou ali.

Logo o rapaz estava em pé, e foi em pé que encontrou a princesinha dormindo em sua cadeira, mas a princesinha não era mais inha, tinha crescido do dia para noite, mesmo sem saber como ou porque, Aluado era feliz, pois agora os copos não eram grandes demais e as migalhas não fariam Luna engasgar e nada mais teria um mas na frente. Aluado não percebeu quando a princesa ainda era inha, mas percebeu depois de não ser, que a princesa era linda, tão linda quanto se pode descrever, com a pele clara como a neve, cabelos rosados como as flores do jardim e lábios vermelhos como vinho. O vestido de Luna era cor de arco-íris, hora azul, hora verde, hora amarelo.

O pescador soube naquele momento que seu coração não era mais seu, era de Luna e esperava que o coração de Luna um dia fosse seu. Então esperou que sua amada acordasse para lhe perguntar se ela aceitaria seu coração. Quando Luna acordou, Aluado logo declamou:

 

“Meu Deus do céu,        o que  foi que aconteceu?

Quando os olhos abri, foi que meu coração finalmente bateu.

Quando te vi, meu mundo parou, girou, pulou e rolou.

Só agora minha vida faz sentido, só agora tem cor.

Foi quando soube que tudo iria mudar.

Pois meu coração não é mais só meu.

tem um pedacinho dele

Fazendo tum tum

Em outro

lugar

 ♥”

 

O que aconteceu depois disso ninguém sabe contar, uns dizem que a princesa aceitou o coração do pescador, outros que dizem que ela simplesmente não sabia o que dizer, já eu, prefiro acreditar que o Pescador ganhou o coração da princesa no caminho de volta e que talvez algum dia as estrelas contem essa história...“

 

 

Quando terminei de contar a história, a maior parte das crianças já estava aconchegada em suas camas de colo e provavelmente sonhando com anchovas. Os adultos foram saindo nas pontinhas dos pés enquanto agradeciam por entreter seus filhos, me deixando novamente a sós com algumas pilhas de louça para lavar e muito chão para limpar.

Com tudo limpo e café fumegante repousando sobre o balcão, fui logo para cama enquanto assobiava aquela canção…



Comentários