Volume 1
Capítulo 5: Um Passo Por Vez
01/10 - Ciclo das rosas - Alguma Caverna Enchuvarada
Acordei chamando por meu pai, mas ninguém respondeu o chamado.
Estava deitado no chão de uma caverna, enrolado em peles grossas e usando roupas que não lembrava ter vestido. O som de chuva era forte do lado de fora e pela escuridão, provavelmente já era noite. Tudo que iluminava aquele lugar era uma fogueirinha lambendo a pouca lenha que lhe alimentava.
Suspirei aliviado por tudo aquilo ter sido um sonho, mesmo que o curativo na cabeça e o cachecol rasgado tentassem me contar outra história.
— Eu não faria isso se fosse você — disse uma voz do fundo da caverna quando tentei tirar os curativos — sua mãe teve muito trabalho para estancar isso aí.
— Minha mãe? Meus pais estão aqui? — Tentei me levantar, mas o cansaço e a dor eram demais para isso.
— Calma, garoto, calma. Se apressar não vai melhorar as coisas, mas fique tranquilo, vou lhe explicar o que aconteceu.
A voz foi se aproximando de mim até tomar forma ao meu lado, uma forma corcunda apoiada sobre um cajado. Olhando melhor, a figura tinha um rosto arredondado, coberto por pequenas escamas que formavam um sorriso inquieto, isso ficava mais claro com os olhinhos pretos ao lado da cabeça. O corpo dele também era coberto por escamas, exceto pelo casco que cobria todo o seu torso. Aquilo era de fato, uma tartaruga bem grande.
— Hoho, garoto corajoso. Normalmente se assustam quando me veem — disse com um sorriso — prazer, me chamo Akai, vou cuidar de você por um tempo.
— É… prazer… Miguel.
— Relaxa, eu não mordo. Aqui, seus pais pediram para lhe entregar isso.
Akai tirou um envelope dobrado do casco. Logo reconheci a letra tremida de Natã que se transformou em pequenas letras redondinhas e bem delineadas. Assim dizia a carta:
Ler aquilo tirou tanto peso dos meus ombros que senti poder sair flutuando a qualquer momento. Fosse a dor ou o medo, tudo simplesmente evaporou no ar, deixando para trás apenas uma sensação de felicidade tão grande que nenhum livro teria palavras suficientes para descrever. Só me dei conta das lágrimas caindo como a chuva lá fora quando as palavras começaram a borrar no papel. Akai pareceu entender o que eu sentia, já que não falou comigo até que as lágrimas parassem.
— Vamos sair cedo amanhã, acho melhor dormir, rapaz. Recomendo chegar mais perto da carroça, o Manchado dá um ótimo travesseiro aquecido.
☼
Diferente de Akai, não consegui dormir. Passei a noite toda em claro, os pesadelos faziam o trabalho de me acordar sempre que fechava os olhos. Era sempre o mesmo sonho. Em um segundo, estava correndo pela floresta e no outro, estava com meu pai ensanguentado nos braços. Eu sabia que não poderia fazer nada, além de estar lá com ele, por ele, segurar sua mão… mas o que mais me machucava era que ele parecia orgulhoso, dizendo palavras mudas enquanto a luz se esvaia de seus olhos. Depois, aquele sorriso aparecia na minha frente, rindo da dor, me encarando na escuridão, desdenhando da situação… Era só quando ele nos engolia que eu finalmente acordava, com o peito em chamas e todo suado…
Na terceira tentativa já não aguentava mais, então, puxei “Guerras de Sangue e Sal” da mochila e comecei a emergir nas dunas do deserto, esperando que o sol escaldante limpasse minha mente. Quem escreveu aquele livro sabia o que estava fazendo, tudo era ricamente descrito, contando detalhe por detalhe cada lenda e acontecimento na areia escura do deserto. Uma das lendas chamou minha atenção, mesmo sendo simples e sem lâmpadas mágicas ou vermes gigantes escondidos na areia. Ela era mais ou menos assim.
“Os pássaros me contaram uma curiosa história, vinda de uma terra antiga, onde a areia lustra as espadas e o vento seca o mar.
Nessa terra insalubre, onde os cactos passam sede, nasceu um pequeno milagre. Ninguém esperava que em um buraco empoeirado como aquele, nasceria um sorriso de esperança.
Nasceu naquele dia, uma menina, com olhos de rubi e uma risada de milhões. A criança trouxe alegria para sua casa, encantou todos que por ali passavam.
O tempo como sempre, fez seu trabalho, nutriu e fez crescer dotes naquele lar. Logo a pequena começou a falar e não demorou para com os pássaros começar a cantar. Com sua voz, outro milagre floresceu, um broto da areia nasceu. Em poucos dias, o lugar foi renovado, o que antes era deserto, agora era oásis. As plantas nasceram com a canção, trazendo consigo frutos de montão, comida para se esbaldar, comer até cair no chão. Da areia fluiu a água, da água vieram os peixes e dos peixes mais comemoração. Dizem as estrelas que a festa durou semanas, o vento conta ter durado meses, já luna poderia jurar de pé junto que foram anos de emoção.
As dunas do deserto mudaram, e a menina que agora era moça continuou alegre e contente. Em todo lugar a música era uma só, fosse na padaria ou ferraria, todos cantavam em uníssono uma canção, rezando aos ventos por amparo, não para si, mas para aquela dama, a sua senhora, que mesmo de cama, continuou sorrindo.
O que eles não sabiam era que o vento também cantava, implorava ao ceifador para a menina deixar, gritava e esperneava, jogando sua capa no ar…
As estrelas brilharam forte naquela noite, pareciam escorrer do céu, assim como as lágrimas que molhavam o chão. Poucos perceberam, mas dentre as estrelas choronas, nasceu uma estrelinha cor de rubi, que até hoje, observa de longe o seu lar.
Dizem que quando a noite está quieta, pode-se até mesmo ouvir a estrela cantando com o vento…”
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O conto de Lídia, a flor do deserto.
☼
04/10 - Ciclo das Rosas - Um chalé aconchegante.
Viajar com Akai é divertido à sua própria maneira, para uma tartaruga ele fala bastante, então nada de longas seções de silêncio constrangedor. Passamos a maior parte do caminho com ele me contando sobre o trajeto até aqui, sobre as cidades que passou e os perrengues que encontrou pelo caminho. Aprendi um pouco sobre ele com nossas conversas, descobri que ele coleciona chás exóticos e contos de investigação, além de odiar palhaços por algum motivo.
Demos muita sorte de encontrar esse chalé escondido nas montanhas. O casal de idosos que cuidava do lugar foi super hospitaleiros conosco, até nos cederam um quarto para passarmos a noite. Foi bom poder dormir em uma cama de verdade.
Partimos bem cedinho pela manhã, com alguns Dracos de prata na mochila e com a carroça mais leve. Manchado parece feliz com isso.
06/10 - Ciclo das Rosas - Uma velha cabana abandonada.
Me pergunto quanta chuva ainda vamos encarar, já é o quarto banho que tomamos em menos de dois dias e pelo visto, ainda iremos tomar muitos outros. Ao menos Akai conhece vários jogos para dias chuvosos, o problema é que ele é bom até demais, até agora não ganhei uma mísera partida de truco contra ele.
Além dos jogos, Akai me ensinou um pouco, coisas como o melhor tipo de chá para ocasiões formais, receitas para acampamento e o mais interessante, como escrever feitiços! Não que eu tenha insistido para que me ensinasse quando vi o escamado acendendo a fogueira com uma única folha de papel. Infelizmente, parece que não tenho mão para escrever feitiços, não importa o quanto eu rabisque o papel, não consigo criar nem uma mísera faísca, mesmo depois de tomar aquele chá horroroso.
Talvez com mais prática eu consiga algo, mesmo que Akai continue dizendo que se não funcionou na primeira, não irá funcionar nas outras tentativas.
10/10 - Ciclo das Rosas - Meio Caminho Andado
Acabamos de deixar o último resquício humano para trás, daqui pra frente tudo que nos aguarda é estrada e montanhas por todo lado. A boa notícia é que tenho bastante entretenimento na mochila e o acervo de causos do Akai está bem longe de acabar.
As coisas têm sido bem tranquilas até agora, nada tentou fazer churrasco do Manchado ou sopa de tartaruga. Tenho quase certeza que nada tentou nos devorar por causa do cadáver na carroça, até porque, qualquer coisa que cheire a enxofre não parece ser muito apetitosa. Ao menos afasta os mosquitos.
Falando em sopa, não esperava que Akai fosse tão bom na cozinha e olha que os ingredientes se resumiam a carne seca e alguns vegetais, diz ele que o segredo são os temperos e muita paciência, mas eu nunca vi paciência ser tão gostoso ou alecrim ter sabor de felicidade. Também descobri algo com gostinho de pôr do Sol, um café escuro, aveludado, que esquenta o coração e dança no estômago, só de pensar já começa a dar água na boca, akai diz ser só café, mas café nenhum tem aquele sabor e eu não sei como pude viver tanto tempo sem saber da existência dele. Se tudo der certo, ainda convenço ele a me dar um saco desse pozinho mágico antes da viagem terminar.
Terminar a viagem… No ritmo em que estamos agora devemos chegar lá em pouco menos de uma semana. Akai falou bastante sobre esse vilarejo, embora a maior parte fosse sobre chá e tinta, mas o que chamou minha atenção foi esse amigo do Akai que mora lá, um tal de Nystin, pela forma animada que o escamado fala parece ser gente boa. Acho que as palavras exatas foram “um desgraçado com coração, mas ainda um desgraçado” e “tão gentil quanto dor de dente”, nada atrativo, mas é com essa dor de dente que vou morar, e por um bom tempo, três meses para ser preciso, então é bom saber o que me espera, isso é, se o pombo correio chegou até ele…
15/10 - Ciclo das Rosas - Correio
A resposta de Nystin finalmente chegou por pombo correio, só não esperava que o pombo fosse tão estranho, o coitado era tão roliço que mais parecia uma galinha em miniatura. Depois de deixar a cartinha no chão, o bichinho ficou ali parado, respirando pesadamente. Podia jurar que a qualquer momento ele iria tirar um lencinho do bolso para limpar o suor.
Depois de comer um pouco de pão e bicar meu cantil, o pombinho saiu voando. Achei estranho ele fazer “pcó!” antes de voar.
A carta dizia que ele me receberia lá, contanto que eu trabalhasse para isso. Akai se recusou a ler o resto da carta em voz alta, ao ponto de queimar o papel na fogueira e depois cuspir nas cinzas com uma cara amarrada. Achei melhor deixar por isso mesmo e não impedir Akai de chutar terra pro ar por quase uma hora até se acalmar…