Volume 1
Capítulo 4: Mas a Aurora Sempre Virá
Décimo dia de viagem - 20/09
Cheguei em Fargas três dias atrás. Finalmente estou livre daquele maldito grupo cirsense, já não aguentava mais todo aquele barulho e minha paciencia para aqueles palhaços já estava por um fio de acabar.
Quanto à cidade em si, é um lugar bem luxuoso, ruas abarrotadas por anões tentando vender artesanato. As construções são o que se espera de uma cidade artesã, vitrais ricamente ornamentados por todo lado, criando uma miríade de belíssimas cores para embalar os becos e avenidas dos mercados. Infelizmente, fiquei pouco tempo na cidade, só o suficiente para abastecer a carroça de suprimentos e dar um bom descanso para Manchado.
Daqui para frente, tudo o que me aguarda são montanhas, bosques e pequenas vilas mineradoras. Espero alcançar Vila Carmim em menos de três semanas, isso se o clima colaborar.
Décimo segundo dia de viagem - 22/09
Começo a me perguntar o que tem de errado com aquele cabeça de fósforo para vir morar tão longe da cidade. Estou agora no sopé da cadeia de montanhas que terei que atravessar, e já me arrependi de ter aceito esse pedido. Até Fargas só encontrei boas estradas e todas minimamente protegidas, mas isso aqui é um pesadelo, passei por meio mundo de buracos e raízes até aqui e tenho certeza que a outra metade está me esperando nessa estradinha que sobe a montanha.
Você me paga Nystin, você me paga…
Décimo quinto dia de viagem - 27/09
Finalmente atravessei as montanhas, foi difícil com só um boi, mas o Manchado nunca me desaponta.
Nesse momento, estamos avançando em direção a uma vilazinha, se não me engano, se chama Remanso do Orvalho, disseram ser um bom lugar para vender algumas ferramentas e descansar o casco. Ainda me restam duas semanas de estrada até alcançar Vila Carmim.
Décimo sexto dia de viagem - 31/09
Ok, as coisas saíram um pouco do controle. Como sempre, parece que sou amaldiçoado, é incrível como tudo de ruim que pode ocorrer, sempre acontece comigo. Tem um pirralho enfaixado na carroça, e como se ter deixado quase toda a mercadoria para trás não fosse suficiente, ainda tive que gastar os pergaminhos de feitiço para evitar virar almoço de sombrio, ao menos, o corpo desse desgraçado vai me render um trocado…
Tudo começou a dar errado quando cheguei em Remanso do Orvalho, era uma vila até que grande, vários pomares espalhados e pela quantidade de fuligem na cara das pessoas, com certeza tinha uma mina por ali. Fui logo para uma taberninha que encontrei por lá, os donos eram um casal gentil, me deram de comer e acomodaram o Manchado muito bem, se chamavam Natã e Luiza. Bati um longo papo com eles e aproveitei para vender alguns produtos com aquele charme de sempre, é incrível como uma caneca que esfria sozinha ou uma panela que não queima a comida deixa as pessoas louquinhas. Até aí tudo bem, uma chuvinha aqui e ali, mas nada que atrapalhasse os negócios.
A coisa começou a ficar preta lá pela madrugada, o chuvisco virou uma chuvarada, que evoluiu para uma trovoada, ou seja, a situação perfeita para um bom livro acompanhado pelo calor da lareira que por sua vez, combina magnificamente com chá de orquídea.
E lá estava eu, envolto nas aventuras de um elfo metido a detetive quando de repente, dentre o barulho da chuva batendo no telhado e os trovões brigando no céu, um sino começou a ressoar. As badaladas aumentaram aos poucos até se tornarem um frenesi ritmado. A rua começou a se tornar barulhenta com pessoas gritando e cães latindo.
A senhora Luiza logo apareceu na sala com um semblante preocupado, mas mesmo assim, encontrou tempo para gentilmente me explicar que as badaladas significavam que todos os moradores deveriam se recolherem em um abrigo no centro da praça.
Pelo machado que seu marido apareceu carregando atrás dela, provavelmente não tinha intenção de se abrigar juntos aos demais. Ele disse que deviam ser goblins tentando invadir a vila e que tudo ficaria bem, também me pediu para que levasse sua esposa para o abrigo, mas sabe? Sempre fui cabeça dura, além de guardar um ou outro truque na manga para situações desse tipo, então respondi que iria ajudá-los como pudesse, já com o cajado em punho.
E assim partimos para a parte leste da cidade, seguindo os homens armados com forcados e facões, acompanhados por poucos guardas empunhando lanças e trajados de couro. Enquanto corríamos para lá, as moradoras corriam para o outro lado, trazendo seus filhos nos braços. Não sei se era a chuva ou os trovões, mas eu podia sentir algo estranho naquela situação, algo pesado no ar pairava na região, e mesmo assim, continuei correndo para os pequenos muros que protegiam o local. Logo o som de luta se tornou audível, ordens eram gritadas aos sete ventos. Não demorou muito para encontrarmos a origem desse estardalhaço.
Diferente do que Natã havia sugerido, não encontramos nenhuma criaturinha verde mal encarada, mas algo muito pior. O cenário era de puro caos, um homem foi lançado vários metros no ar até atingir uma casa, atravessando a rocha que anteriormente era uma parede. Instintivamente, olhei para a direção que o rapaz foi lançado; lá, encontrei algo que esperava ser um sonho, pois se não fosse, muitos de nós, talvez até a vila toda estariam mortos.
Me olhando profundamente, estava uma criatura semelhante a um morcego, com asas esqueléticas, pele coberta por um véu negro e rosto cheio de olhos vermelhos. Na cara da criatura havia incontáveis fileiras de presas alinhadas, formando um sorriso demoníaco.
A fera nos percebeu e começou a avançar, se projetando contra as árvores, deixando grandes marcas onde se apoiava. Sem perder tempo, tirei alguns pergaminhos de mão de dentro do casco e logo os rasguei, felizmente, o feitiço se ativou mais rápido do que aquele demônio. As agulhas congeladas conseguiram segurá-lo tempo suficiente para eu gritar ordens aos homens para que se alinhassem atrás dos muros.
A batalha perdurou por várias horas, perdemos controle sobre os muros e boa parte dos homens estavam gravemente feridos, poucos foram realmente mortos, acho que demos sorte do bicho ser sádico o suficiente para não matar as vítimas na hora,— provavelmente queria brincar conosco o máximo possível.
Quando estávamos a ponto da derrota, com quase todos os meus feitiços gastos e já sem muitas esperanças de afastar aquilo do abrigo no centro da vila, vi Natã sendo atravessado por uma estaca escura, lançada da cauda do morcego. Pouco tempo depois, um grito cortou a tempestade e os grunhidos, era um garoto franzino, com a testa enfaixada e totalmente encharcada de sangue, o resto do corpo do rapaz não estava em melhores condições, parecia poder cair morto a qualquer instante.
Pelo jeito como o rapaz se jogou sobre o corpo do taberneiro, supus ser seu filho que tentava sem sucesso estancar o sangue que jorrava do peito aberto do homem.
Mas o que realmente me surpreendeu foi o que aconteceu depois daquilo: O garoto olhou com ódio para a sombra que parecia se deleitar com o sofrimento, sorrindo ainda mais enquanto enviava mais um trabalhador para a sepultura. O rapaz tirou uma esfera prateada do bolso e começou a correr na direção do assassino de seu pai, infelizmente, seu esforço foi desperdiçado, já que assim como seu pai, um espinho atravessou o garoto.
A criatura foi levando ele lentamente com a cauda até a boca para apreciar seu sabor. O que me surpreendeu e surpreendeu até mesmo aquele demônio, foi que o corpo do menino começou a emitir uma forte luz branca que iluminou por alguns segundos a fria noite, com isso, cegando o morcego e dando espaço para se desprender da estaca que o atravessava, tão naturalmente quando saiu. O mesmo ocorreu com um homem que a pouco havia sido empalado contra a parede, assim como também ocorreu com Natã.
O garoto que agora estava flutuando a uns poucos centímetros do chão, levantou a pequena esfera, cobrindo o objeto com a mesma luz que o rodeava, e com um rápido movimento de braço, mandou a esfera voando diretamente para a boca da criatura que prontamente a abocanhou, esmagando o objeto. Não sei o que era aquilo, mas quando o bicho mordeu a bolinha, uma explosão surgiu, jogando tudo voando para trás com um estrondo, depois disso, o morcego não levantou mais.
Impedi que o garoto caísse no chão quando a luz se apagou. Depois, fui de corpo em corpo procurando sobreviventes e para minha felicidade e espanto, muitos dos homens na região tinham suas feridas cicatrizadas, quase como se nunca tivessem existido, mesmo que os mortos continuassem caídos no chão.
Já vi explosões de mana antes, mas nenhuma com um efeito tão estranho como esse. Geralmente se espera uma parede explodida com uma torrente de água ou um pequeno terremoto, não ter as feridas curadas do nada assim.
Quando tudo se acalmou, expliquei para o casal da taverna o que potencialmente havia acontecido com o garoto e que deveriam encontrar um professor para ele.
Fui pego desprevenido quando me pediram para levar o menino que descobri se chamar Miguel Chandene. Até tentei argumentar que não poderia instruir o menino e que seria melhor que levassem eles mesmos o rapaz para Nubius, mas insistiram tanto que até tentaram me pagar para isso. Obviamente recusei o pagamento e prometi ao menos deixar Miguel com um conhecido que morava em Vila Carmim e que talvez ele levasse o garoto para Nubius.
Depois de deixar a maior parte dos mantimentos e algum dinheiro como doação para as vítimas da situação, parti com Manchado.
E aqui estamos nós, rumando novamente para Vila Carmim…
Décimo oitavo dia de estrada - 01/10
Acho que é meu dia de sorte, logo quando uma tempestade começou a cair, encontrei uma caverna para nos abrigar e como a chuva não parecia que iria parar tão cedo, armei acampamento aqui mesmo. Me preocupo com como o garoto vai reagir… seus pais deixaram algumas coisas comigo, além de uma carta explicando a situação, mas não sei se no lugar dele iria aceitar de bom grado ser levado para tão longe, mesmo que minha casa estivesse destruída.
Ah sim, o garoto acordou…
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