Volume 1

Capítulo 3: Trazendo Consigo a Tormenta

29/09 - Ciclo Glacial  - Algum buraco escuro.

Não sei se foi a chuva ou os trovões que me acordaram, mas dou graças a Deus por terem. Quando abri os olhos, me encontrei no meio de vários destroços, roupas rasgadas e um corte na testa que não parava de sangrar. Pior que isso, era meu peito que doía como o inferno. O ambiente também não colaborava, mal conseguia ver dois palmos à minha frente, fosse pela visão turva ou pela escuridão que me cercava. Tateei o chão ao meu redor e encontrei minha mochila caída por perto.

— Ufa… Vamos ver o que sobreviveu à queda… — Abri a mochila com um suspiro de alegria, procurando pela corda que sempre levava comigo. — Puta merda! Deixei a porcaria da corda presa na estátua. Burro, burro, burro!

Depois de me acalmar, saquei o canivete da cintura, rasguei um pedaço da camiseta e comecei a enrolar na ferida, que já estava criando uma aquarela com as poças de chuva. Sem o sangue atrapalhando, voltei para a mochila e comecei a tirar minhas coisas de lá até encontrar uma pedra lúmen, que após ser acertada algumas vezes contra o chão, começou a emitir um brilho pálido. Aos poucos, a pedra foi iluminando a área, permitindo analisar melhor minha prisão temporária.

Se não fosse por todos os destroços e rachaduras nas paredes, o lugar poderia até ser considerado bonito. Os pequenos símbolos gravados pela extensão das paredes circulares criavam uma estranha harmonia em meio ao caos. Havia também uma porta cavada na rocha que  levava para um corredor subterrâneo. 

Eu sabia que não poderia voltar por onde vim, as paredes estavam encharcadas demais para isso, também sabia que não poderia ficar ali plantado ou ficaria doente e morreria de frio com a chuva. Então, sem nenhuma ideia melhor, decidi procurar uma saída naquele corredor. Ao menos assim poderia fugir do frio e da chuva. Peguei minha mochila, amarrei o lúmen na cintura e empunhei minha lâmina enquanto adentrava o desconhecido.

 

 ☼

 

Lá dentro, as coisas não eram o que eu chamaria de acolhedor, já que o corredor poderia desmoronar a qualquer momento. Para piorar as coisas, a luz não alcançava o fim do corredor, me deixando sem saber o que vinha pela frente. Acho engraçado como tudo e qualquer coisinha pareciam muito maiores dentro do túnel, fossem os trovões vindo de longe que faziam com que pedaços do teto caíssem, ou os ruídos que vinham do fim do corredor, que sempre pareciam estar no pé do ouvido. 

Quando finalmente saí daquele corredor maldito, me deparei com uma sala estranha, cheia de mesas e armários espalhados. Sobre as mesas, vários recipientes estranhos, uns grandes, outros pequenos, com cobras e outros bichos cheios de dentes repousando em seus túmulos aquáticos. Tudo estava coberto por uma grossa camada de poeira, mesmo os utensílios metálicos presos nas paredes estavam enferrujados e envoltos por teias de aranha. Como se as sombras do conteúdo dos potes me olhando enquanto eu passava não fosse o suficiente, um assobio agudo vindo dos meus pesadelos insistia em sair da porta no fundo da sala, porta essa que eu teria que abrir para sair dali.

A surpresa que tive ao abrir a porta foi no mínimo nojenta, um cheiro pungente invadiu meu nariz, junto com vários ratos que passaram correndo por mim, se perdendo na escuridão da sala anterior. Depois de trincar os dentes para: (a) não gritar e, (b) não vomitar meu almoço. Entrei naquele covil de roedores, que se revelou um conglomerado de jaulas espalhadas por um extenso corredor. As jaulas estavam dispostas em vários buracos nas paredes e/ou penduradas no teto, dentro delas, vários esqueletos de criaturas dos mais diversos tipos estavam firmemente presos por correntes. 

O interior das jaulas era decadente, muitas estavam cobertas por marcas de garra profundamente cravadas nas paredes e nas correntes que prendiam as pobres criaturas.

Devem ter lutado até o último segundo… 

Uma jaula chamou minha atenção enquanto andava pelo lugar. A cena com que me deparei fez minhas pernas travarem no lugar, não importava o quanto eu tentasse, elas não paravam de tremer. Suor frio escorria pelas minhas costas enquanto eu observava aquela prisão, com inúmeras pilhas de ossos empilhadas até o teto, paredes cobertas por marcas de garras tão profundas que permitiriam que um homem deitasse nelas e tudo isso acompanhado por uma grossa camada do que eu esperava ser tinta preta pintando as paredes. Mas isso não era a pior parte, o que mais me preocupava era o grande buraco no teto que havia desmoronado, levando a um túnel visivelmente escavado, que pela água escorrendo pelo buraco, com certeza levava à superfície. A única coisa que mantinha minha cabeça no lugar era a quantidade de pó nas grades, estava rezando para aquilo ser muito, muito antigo. 

Quando joguei uma pedra em direção às grades para ter certeza que não havia nada lá, um grande feixe de luz vermelha iluminou a cela inteira, repelindo a pedra para longe. Eu conseguia ouvir os ratos gritando de terror em seus esconderijos. 

Em um piscar de olhos, eu já estava subindo as escadas no fim do corredor, rezando para não encontrar mais nada potencialmente mortífero no caminho e poder chegar logo em casa. 

Acho que alguém lá em cima ouviu minhas preces, já que as escadas me levaram para o que parecia uma pequena casa. Diferente do terror que foram os outros cômodos, esse lugar era bem confortável, mesmo com as paredes rachadas. A casa tinha móveis de madeira bem decorados e várias pequenas salas, como despensas, banheiros, quartos, uma lareira que acendia sozinha e acima de tudo, uma biblioteca. Ok, ok, não era lá muito grande, tinha apenas uma estante, mas já era suficiente para me fazer esquecer um pouco os traumas do dia.

Fisguei logo um com a capa linda, de um vermelho sangue, cheia de detalhes em dourado e prata. Em letras garrafais lia-se: “Guerras de Sangue e Sal” e em letras miúdas: “Contos épicos do deserto de fogo”. Um título bem chamativo, como todo livro de aventura deveria ter. Tratei logo de colocar meu tesouro na mochila e fazer uma grande nota mental para depois de avisar sobre esse lugar ao padre Philip, ratear os livros para a biblioteca do falecido Senhor Gomes — descanse em paz amigo.

Antes de partir, fiz a única coisa que poderia fazer pelas almas que descansavam nesse buraco escuro e esquisito: orei.

Depois de recuperar o fôlego e trancar muito bem a porta para a masmorra com um sofá, abri a última porta da casa que dava diretamente em uma escada espiralada. A espiral me levou a um pequeno tablado de pedra, semelhante ao que me derrubou nesse buraco, com as mesmas marcações feitas nas paredes e o mesmo “Y” estranho no centro do tablado. 

Depois de dar uma boa tragada de coragem, fechei os olhos e apertei o símbolo. Assim que o fiz, o chão se iluminou em um pálido brilho azul, da mesma forma que os desenhos gravados nas paredes. Com isso, o tablado começou lentamente a subir, deixando a porta para trás e me levando para longe. Aquilo me encheu de alegria, ergui os braços para o céu e gritei o mais alto que conseguia. A sensação era mágica, tinha finalmente encontrado algo digno de se contar e sobrevivido para fazê-lo, além de estar carregando espólios valiosos, era tudo que eu sempre quis. 

Quando a plataforma finalmente parou de subir, me encontrei no que parecia um buraco escavado na terra, com uma pequena porta improvisada feita com a tampa de um barril. Atrás da porta, vi um longo túnel, iluminado por lamparinas de pedra lúmen e trilhos percorrendo o chão, acompanhados por um constante som de metal contra a rocha. Tinha certeza, estava nas minas de carvão.

Fui passeando pelos velhos túneis, seguindo os carrinhos, que vez ou outra, passavam soltando faíscas por todo lado. Nessas andanças comecei a ouvir uma canção abafada vindo dos corredores. Na primeira vez que me perdi nesse buraco de fuligem, fiquei encantado com como todos os trabalhadores adoravam essa música e faziam de tudo para ritmica-la com as picaretas batendo contra a montanha.

Pude avistar uma figura familiar sentada em uma mesinha improvisada enquanto tomava café. 

— Willian!! A vida tá fácil em, tirando um cochilo no serviço! — Meu grito deve ter assustado o pobre anão, já que ele deu um pulo da cadeira e quase derramou todo o café. 

— Miguel, seu pirralho! Que susto, quer que eu vá para Valhalla antes da hora? E o que diabos você tá fazendo aqui de novo? Já te disse que aqui não é lugar para criança!

Willian Plazna Glava, ou só Will pra encurtar, era um senhorzinho de idade, dizia ele já passar dos 180 aninhos. Acabei conhecendo essa figura quando ele encontrou um garotinho sujo de fuligem dizendo que estava procurando a cura para um dragão na masmorra. Will era um cara legal, trabalhava nas minas como a maior parte da vila, mas sempre achava tempo para aparecer na taverna e contar alguma história dos velhos tempos, quando costumava sair correndo atrás de problemas por aí.

Fiquei uns bons minutos conversando com o anão, contei a ele sobre como tinha caído no buraco, sobre meu cachecol, sobre o elevador mágico e várias outras coisas, mas não contei sobre a prisão, tudo isso enquanto ele prestava mais atenção no café borbulhando na caneca. 

Quando uma sineta tocou em algum canto, Will tirou quatro pedaços de algodão dos bolsos e me entregou um dos pares. 

— Coloque nos ouvidos rapaz, vai ser um estouro, hihihi. 

Mal enfiei os chumaços nas orelhas quando um grande estrondo ressoou pela mina, fazendo tudo tremer e pedaços de terra caírem aqui e ali. Meu coração errou várias batidas, tudo pareceu parar no tempo, mesmo que o suor frio continuasse escorrendo por todo meu corpo.

— Will, o que diabos foi isso? — Minha voz vacilou com o gosto amargo que subiu pela garganta. 

— Ah, não se preocupe rapaz, é só o Rutz expandindo a mina com essas belezinhas aqui — disse ele puxando uma esfera metálica da mochila e me entregando. — Esses alquimistas da capital sempre me surpreendem, é só apertar esse botão na parte de cima e arremessar, e em poucos segundos… KABOOOM! 

— D…desde quando vocês estão expandindo a mina assim? — Meu tom de voz ia cada vez mais se tornando uma mistura de apreensão e medo.

— Uma semana? Um pouco mais, um pouco menos, mas por que isso rapaz? A propósito, você tá bem Miguel? Parece até que viu um fantasma, hehe.

As pecinhas na minha cabeça começaram a se encaixar uma atrás da outra e com a última delas entrando no seu lugar, peguei a esfera das mãos do anão e comecei a correr para fora das minas. 

— Miguel! Volta aqui, isso aí é perigoso moleque!

Pedi desculpas e disse que era por uma boa causa, mesmo que o velho Will não tenha ouvido devido a distância.

Quando finalmente cheguei à saída das minas, fui recebido por uma tempestade cheia de raios e trovões cortando os céus, acompanhados pelo badalar incessante dos sinos da igreja. Logo após meu primeiro passo, uma gigantesca bola de fogo escalou as nuvens. Não é preciso ser nenhum gênio para saber que isso não era bom sinal, e para piorar ainda mais as coisas, um uivo… não… seria melhor descrever aquilo como uma risada tão alta que abafou o som dos trovões e atravessou todo o bosque vindo da direção da vila. 

Só me dei conta de onde estava quando perdi um sapato no chão lamacento do bosque, mesmo assim, continuei correndo sem me importar com os arredores. Não percebi os espinhos me rasgando, não percebi o quão frio estava, nem minha testa voltando a sangrar, também não percebi o corpo decapitado do pobre soldado nos portões da vila.



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