Volume 1

Capítulo 2: Onde a Água Começa a Fluir

28/09 - Ciclo Glacial - Vigésimo primeiro ano do reinado Thorem. 

Pulei bem cedo da cama, afinal, era dia de folga na taverna do velho Natã. Acredite, quase nada faria meu pai fechar e quando digo quase nada, me refiro a nevascas atingindo o vilarejo. Mesmo assim, ainda lembro dele entrando em casa com pequenas estalactites congeladas no bigode enquanto sorria de orelha a orelha por conseguir vender algumas tigelas de sopa. Então, não havia tempo a perder, tinha colocado na cabeça que iria terminar de explorar a floresta naquele dia, nem que isso fosse a última coisa que eu fizesse. 

Desci as escadas com pé ante pé, para evitar chamar atenção desnecessária e receber algum trabalho chato antes de sair. Não que isso tenha funcionado, já que, quando me faltava apenas um pé para dentro de casa, fui puxado pela alça da mochila por um braço grosso que me tirou do chão.

 — Aonde pensa que vai? — Era para minha infeliz surpresa, papai me olhando nos olhos como quem levanta um gatinho. 

— Ali, fazer umas coisas importantes… 

— Oras, devem ser mesmo importantes, tão importantes que fizeram você esquecer os sapatos e as calças! — Sua voz era um misto de risada e gozo, mesmo que tentasse continuar sério. 

— Eita!!! Já volto!

Depois de uma rápida troca de roupas e alguns puxões de orelha, finalmente estava pronto para sair, ou era o que eu pensava… 

— Miguel! Antes de sair, tenho algo para te dar.

Quando olhei para trás, encontrei uma linda senhora com alguns poucos fios brancos na cabeça e um sorriso que só aqueles olhos azuis poderiam dar. Logo atrás dela, estava meu pai com o bigode meio torrado. Os dois seguravam um pacotinho azulado. 

— Miguel, achamos que já é hora de arrumar um pouco mais de responsabilidade, então, aqui, do seu pai e meu. 

Ela me entregou o pacotinho, que prontamente desembrulhei. Encontrei ali um caderninho de capa escura e um lápis vermelho preso entre as páginas. Meu pai pegou o tecido que embrulhava o conjunto e começou a enrolar em meu pescoço. Em poucos segundos, eu já estava me sentindo mais quentinho. Papai parecia orgulhoso e meio nostálgico quando dava alguns passos para trás a fim de me ver melhor. 

— ✯ Feliz Aniversário, querido! ✯ — Eles me parabenizaram em conjunto. 

Não éramos muito ricos, então, festas e presentes eram bem raros. Tão raros que ainda andava por aí com o canivete que ganhei em meu aniversário de seis anos. Como não estava esperando ganhar nada, aquilo me pegou de surpresa! Mal pude conter minha alegria quando pulei nos braços deles para um abraço de urso. 

Eu sabia que aquele cachecol que me aquecia, significava muito mais que um simples pedaço de pano, era um sinal de confiança. Meu pai nunca tirou aquilo do pescoço, aquela foi a primeira e única vez.

— Esse aqui vai te aquecer nos piores momentos, filho. É o abraço da sua mãe e o cascudo desse seu pai! Se entendeu, cuide bem dele. 

— Obrigado, de coração! Vou cuidar bem deles! 

Pouco tempo depois, papai tentou me contar como aquele cachecol era da sua época servindo como soldado na capital, mas já havia ouvido aquelas histórias milhares de vezes. Mamãe percebendo minha cara de desespero, logo pediu que eu entregasse algo à vizinha da frente com uma piscadinha de canto de olho.

E assim eu saí pela porta atrás de aventura, praticamente pulando de alegria. Com um caderninho no bolso e um cachecol enrolado no pescoço. 

Depois de passar correndo meio que cumprimentando todo mundo pelo caminho e desviando de um ou outro cachorro acorrentado, finalmente cheguei à floresta que cercava a vila, onde rapidamente me enfiei de cabeça.

Já havia percorrido várias vezes aquelas trilhas e não querendo me gabar, mas já me gabando, tinha desenhado um mapa de quase toda a região, com a velha mina de carvão, a cachoeira no fim do bosque e a velha casa assombrada no alto da campina. Embora não tenha encontrado nada realmente aventuresco nesses lugares, acabei criando gosto por descobrir coisas novas. 

Meu objetivo para aquele dia era como a galinha dos ovos de ouro. Bem próximo à vila, havia um lago cristalino que, de acordo com os bêbados da taverna, era o lar de algum monstro terrível que habitava as ruínas. Meu pai dizia ser o covil de um mago maligno, daqueles que sacrificavam criancinhas. Mamãe disse que costumávamos comemorar o festival das rosas lá, mas que depois de uma chuva muito forte, o lugar ficou caro para consertar, então deixaram assim mesmo. Tudo isso só colaborou para que eu tivesse cada vez mais vontade de explorar aquele lugar, mesmo que as coisas nunca colaborassem para isso. Quando não era um resfriado, era uma tempestade repentina que me impedia de ir lá, mas aquele dia seria diferente, eu podia sentir. 

Aproveitei a tranquilidade da manhã para ir rabiscando as coisas que encontrava pelo caminho, fosse uma pedra diferente ou um tronco caído. (É sempre bom saber o caminho contrário.)

A viagem foi tranquila até bem próximo do lago. O único acontecimento estranho foi já haver alguém lá. Eu não podia ver direito graças à neblina, mas tinha certeza que alguém estava sentado em uma rocha. Chamei pelo sujeito, mas sem resposta, chamei de novo, mais alto dessa vez, mas obtive o mesmo resultado.  Pensando que provavelmente o cara era surdo ou mal educado. Talvez os dois. Cheguei mais perto, só para encontrar uma velha estátua de monge sentada com as pernas cruzadas. 

Não lembrava de haver monges por ali, isso é, tínhamos Padre Phillipe, mas ele só era careca, não um monge.

Fiquei um tempo encarando aquela escultura. Ela me trazia um ar de paz e serenidade, mesmo estando coberta por musgo, ainda parecia poder sair por aí pregando sermões a qualquer momento.

O monge tinha os olhos no horizonte. Era impossível não olhar também, e que felicidade me atingiu quando olhei para lá. O Sol refletia na água cristalina do lago, iluminando tudo ao redor, deixando mais evidentes as rochas e restos de construções em pedra que se projetavam para fora do lago. Os ricos detalhes criavam uma linda aquarela de luz e sombra que ia até onde os olhos podiam alcançar. Se fosse para descrever aquela cratera em poucas palavras, eu diria mil e uma vezes que se Deus é um pintor, aquela era com toda certeza uma de suas melhores obras. 

Não me aguentei, pedi licença para meu companheiro rochoso e amarrei a corda que trazia na mochila bem firme em sua cintura. Com isso, comecei a descer um passo de cada vez os degraus de pedra que ziguezagueavam pela encosta. Lá embaixo, amarrei a outra ponta da corda em uma pedra bem grande.

O lugar era ainda mais bonito de perto. A água era tão limpa que eu conseguia ver vários peixes passando pelas rachaduras nas pedras. Algumas construções estranhas se erguiam na rocha, outras pareciam pontes. Tudo isso circulando um palanque bem no meio do lago. Por sorte, havia um caminho de pedras até lá, não que eu não soubesse nadar, mas arriscar morrer para algum monstro marinho desconhecido não fazia meu estilo. 

Fui saltando de pedra em pedra, até chegar à primeira torre e de lá, comecei minha exploração. Passei por uma torre de cada vez, procurando por qualquer coisa minimamente interessante. Para minha infelicidade, não encontrei nada que valesse a pena levar para casa, só alguns desenhos de raposas e lobos com um olho na testa espalhados por toda parte. Já que não tinha dado sorte com as torres, decidi ir para o prato principal, o palanque no centro do lago. 

De todas as construções, aquela era a mais gasta. O chão estava coberto de arranhões e sujeira, e eu mal conseguia distinguir os padrões na pedra. Sabido como eu era, improvisei uma vassoura com algumas folhas da margem do lago e comecei a varrer o que seria naquela noite, meu acampamento. 

Valeu muito a pena, já que depois de limpar tudo, encontrei um lindo emaranhado de símbolos e linhas rodeando todo o tablado, com inúmeras figuras de crianças dançando e tocando música.

Com a barraca erguida, uma fogueirinha me aquecendo e um milhão de estrelas me cobrindo, deitei completamente exausto no centro do palanque, admirando aquele lindo céu.

Logo quando estava quase dormindo, senti algo descer sob minha cabeça com um audível "tuck". Debaixo do travesseiro, encontrei uma figura de Y meio torta encaixada no chão. Logo em seguida, as rochas que formavam o piso começaram a brilhar com um azul pálido e simplesmente começaram a despencar sob meus pés, tentei com todas as forças me agarrar em algo, mas assim como na árvore há muito tempo atrás, só pude ver o chão chegando cada vez mais perto, e tudo apagando em uma dolorosa escuridão…

 



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